Convívio social drasticamente alterado há mais de um ano. Obrigatoriedade de manter distanciamento físico. Medos inúmeros. Da morte, da dor, do contágio de uma doença ainda cheia de pontos desconhecidos. A vivência da pandemia de Covid tem gerado buscas para tentar equilibrar os diversos efeitos, e dentre eles, aqueles relacionados à saúde mental.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o psicólogo e professor do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), especialista em Psicodrama e em Terapia Familiar, Álvaro Rebouças, explica algumas experiências e discute, dentre outros assuntos, o luto, o isolamento social, os danos à saúde mental e possibilidades para lidar com a realidade atual.
Estamos vivenciando a pandemia de Covid há mais de um ano, e, no atual momento, as mortes são novamente muito recorrentes. Como lidar com esses lutos?
Desde o ano passado nós estamos lidando com um processo de luto, no qual o sentimento é um pedaço. Então, nessa circunstância temos que lidar com uma modificação na própria rotina, na vida das famílias, das pessoas e etc.. Um processo de luto que pressupõe muitas perdas. E uma das perdas é a da vida.
Eu acho que se intensificou muito mais agora e ficou muito mais evidente. Isso é difícil de lidar porque o processo de luto modifica a nossa compreensão sobre o mundo. Modifica o nosso mundo presumido. Ou seja, o mundo que você acredita que está vivendo e o mundo que você vive mesmo. É a compreensão que você tem sobre esse mundo. Então, isso é abalado nessa circunstância.
Nas famílias que estão lidando, acho que a causa do incômodo nem é o processo de luto, na verdade, é o estresse que é lidar com esse processo de transformação. Porque na pandemia surge esse estresse externo que é contínuo. E nesse estresse contínuo é difícil lidar com muitas modificações, com muitas velocidades, com o ritmo de finitude, de morte. Apesar de que a gente lida com isso (morte) cotidianamente, mas ele ficou muito mais evidente.
O que as famílias enlutadas fizeram ano passado, que talvez possamos trazer para o agora?
O que as pessoas, desde o ano passado, estão fazendo, que eu acredito que funciona bem é criar atividades em família, entre as pessoas que moram na mesma residência. Diferentemente do que as empresas acham que a pessoa precisa é de mais trabalho, não é. É de tarefas. O processo de luto se dá em cima de tarefas. Tarefas de organização das funções em razão da pessoa que faleceu.
A pessoa que faleceu tinha funções dentro da família. Muitas vezes, era uma pessoa aconselhadora, a pessoa que reunia, congregava a família. Era quem ajudava na comunicação, ou nos rendimentos, que trazia um pouco da história da família. Ou seja, a pessoa tinha uma função e essa função perdida, geralmente, é assumida por outro alguém da família.
Por isso, a família no processo de luto vai se transformar, justamente, porque ela vai procurar quais são as tarefas que são necessárias, e vai tentar executar. Não para substituir a pessoa perdida, mas para que aquela função continue viva.
O que as famílias têm feito, que eu vejo que tiveram alguns bons resultados, é criar uma rotina, ter tarefas necessárias, as próprias conversas e o abrir-se quando não está bem. Falar sobre isso. O que foi, como foi difícil perder essa pessoa. Falar ajuda muito, porque informa às outras pessoas, como é que você está. E se isso acontece em família, é um grupo inteiro lidando com o apego. Nesse caso, você vai informar em que momento você está no processo, e o outro também.
Há outras ações que podem ser mencionadas?
Outras atividades foram justamente, além de criar essas rotinas, ter tarefas de colaboração. Isso tem ajudado muito. Criar momentos diferentes. Mesmo dentro de um confinamento, tentar modificar, inclusive, o próprio contexto da casa e das atividades que são realizadas nela, ou seja, fazer modificações no espaço. E você criar atividades coletivas. As atividades domésticas ajudaram nesse sentido quando o sujeito realiza elas em conjunto com outras pessoas.
E tem também as atividades artísticas. Alguns começaram a cantar, realizar colagem ou atividades lúdicas, como os jogos de tabuleiro. Ter uma atividade também coletiva e utilizar essa criatividade para ter momentos agradáveis em família. Assistir filmes e discutir como é que ocorreu ou como você avalia tudo isso.
Muitas pessoas assistiram vários filmes, várias séries e daí a pouco começaram a pensar em outras atividades que podem ser feitas. Você tem que distensionar o contexto para que você possa sobreviver nele, porque quem está em processo de luto está em um processo de sobrevivente.
Outra realidade da pandemia é a ocorrência de muitas perdas simultâneas, às vezes, diversas mortes em uma mesma família. Como lidar com esses lutos que ocorrem ao mesmo tempo?
Não é só mais um ente querido, são dois ou mais. De fato é um processo muito difícil, porque o processo de luto é de modificação e transformação do mundo presumido, no qual você considera que essa pessoa existia. Com a ausência dela, você vai ter que repensar o mundo que você vive.
Quando você perde mais de uma pessoa, na verdade, elas são referências emocionais, de processos, tanto familiares, como processos até profissionais, por exemplo. Ao perder essas pessoas você é impactado porque em todo processo você morre um pouco também.
John Bowlby, que é um autor inglês, trabalhava com a teoria chamada Teoria do Apego. Ele dizia que esse vínculo emocional é um vínculo de apego, de confiança e de sobrevivência. De que essa pessoa me ajudou a sobreviver. É um vínculo de cuidado, de proteção. Aí você imagina que você tem uma ligação com essa pessoa e essa pessoa falece. Então, um pouco de você faleceu também.
Isso é um trabalho hercúleo. É muito difícil, mas certamente há possibilidade de uma boa elaboração quando você tem uma rede que consegue dar esse suporte.
Então, é muito importante que as pessoas na família, elas falem sobre esse sofrimento individual e elas possam compartilhar e cooperar sobre as dificuldades que estão vivendo, porque daí a pouco elas podem encontrar soluções dentro do próprio grupo de sobreviventes.
O isolamento social é necessário por questão de segurança sanitária, mas não deixa de ter efeitos. Quais impactos sociais são percebidas, desde 2020, por conta do isolamento?
O isolamento é uma medida sanitária correta para que se evite uma propagação rápida (do vírus), só que aí se descobriu que há pessoas que não têm como fazer esse isolamento. Tudo isso pressupõe uma ideia de que a colaboração da população é necessária, mas ela precisa de meios para que isso ocorra.
Geralmente, as pessoas que estavam com essa dificuldade, de fazer um confinamento, eram justamente pessoas que estavam padecendo com questões anteriores à pandemia. Ficou desnudado a dificuldade do Estado brasileiro, de alguns países do mundo, dar conta dessas questões, como as desigualdades sociais. Isso aí é um ponto.
O outro é que verdadeiramente você não consegue abarcar a totalidade da população, porque ela não é homogênea. Então, nessa circunstância precisaria pensar o quê? Pensar em termos de categorias e quais são as necessidades da categoria.
Por isso, precisaria fazer uma avaliação das necessidades dessas pessoas. E daí a pouco, você suprir as necessidades de uma população heterogênea, de forma heterogênea, e não homogênea.
Nós iríamos entender que pessoas de classe média ou de classe mais alta, provavelmente, teriam compreensões um pouco mais semelhantes. Mas pessoas da classe D e E, elas têm muito mais necessidades e não vão poder seguir esse padrão. Ou seja, nós entramos numa compreensão de padrão, que eu acho tão complicada, porque você tira de foco a própria diferenciação e as próprias necessidades específicas dos grupos.
Diante do que se percebe como consequência do isolamento, o que é possível fazer e o que tem sido feito para amparar quem tem mais necessidade?
Uma das consequências, acho que bem positiva, foi uma redução da quantidade de contágio. Agora, o que ele trouxe de negativo? Uma hiper convivência que ninguém tinha ideia de como é que iria ocorrer. Uma hiper convivência das pessoas por um tempo maior dentro das residências. Eu não posso dizer que foi negativo ou que foi positivo, porque depende de como cada pessoa enfrentou. Por exemplo, tiveram várias famílias que fizeram acertos maravilhosos, que eles não iriam fazer anteriormente, e tiveram famílias com muitos atritos.
Alguma coisa que foi bem positiva foi que as pessoas precisaram, criativamente, descobrir formas de como conviver juntas. Elas precisavam se inventar. Nessa circunstância, essa invenção ou reinvenção da vida familiar e da vida conjugal foi necessária para a sobrevivência em conjunto.
Já aspectos negativos, em 2021, as pessoas estão se rebelando contra as medidas, justamente por não querer voltar para aquela condição (de confinamento). Porque você teve que se transformar de forma muito rápida, em um tempo muito curto. E daí aponta uma série de rebeliões em relação a isso. Inclusive de não aceitação desse ano mais difícil.
A pandemia traz o medo da morte, este medo da morte traz uma tensão, a ansiedade. Certamente traz um monte de frustrações porque você tinha planos e não conseguiu realizar esses planos. E eu acredito que todas essas coisas estão somadas neste ano contra um confinamento. E daí a pouco a dificuldade é lidar com isso novamente porque já foi difícil lidar no ano passado. Então, eu vejo que isso daí foi uma grande frustração.
E agora, como aguentar mais um ano de pandemia? Como passar por essa turbulência e reduzir os danos à saúde mental?
Nós estávamos num processo que é a cara da pós-modernidade, como dizem alguns autores. É justamente esse processo de individualização que, certamente, tem a prática da satisfação própria, pessoal. Acredito que agora nós estamos num processo coletivo de cooperação.
Esse movimento de cooperação é que vai fazer com que nós possamos pensar no futuro. Estamos num momento interessante de avaliação, justamente, disso. O que é que eu preciso e o que é que nós precisamos. Mas, o que nós precisamos é maior do que o que eu preciso.
Vou ter que fazer um equilíbrio entre o que eu preciso e o que nós precisamos. Inclusive, no sentido de ter que abrir mão do que, do que eu preciso para o que nós precisamos. O foco do agora tem que ter a cooperação, o cuidado mútuo, o respeito a mim e ao outro. Então, eu não vou pensar na vacina só pra mim, eu vou pensar na vacina pra nós todos.
Eu também já percebi algumas coisas, que acho que foram importantes nesse momento, uma delas é dar presentes. Aí, você pode dizer: que tipo de presente? Existem presentes que estão sendo dados e eles não estão sendo valorizados. Por exemplo, quando liga para o outro, ou manda lá no WhatsApp dizendo que: eu te amo. Dizer que uma outra pessoa é extremamente importante para sua vida, isso não vai te custar um centavo.
E, certamente, algumas outras coisas, manifestações, como frases marcam a vida de uma pessoa. Então, dar presentes coletivamente é o que podemos fazer agora.
Além disso, você ter realizações como, sei lá um curso que você terminou, que você se inscreveu para fazer e está conseguindo essa superação. Ou seja, ter clareza sobre essa resiliência e dizer, você está conseguindo fazer isto, e daí a pouco nós temos uma conotação positiva sobre a coisa que você está fazendo. É algo que você pode fazer agora.
Outro exemplo, é uma pessoa, uma família, que perde membros, aí nesse caso nos processos de lutos podem dizer o seguinte, ‘olha, nós perdemos uma pessoa querida, mas essa pessoa querida nos deixou alguma coisa importante. O que é? Nós precisamos continuar, porque agora nós devemos por ela’. Nós recebemos uma missão gigantesca que é viver por mais de 300 mil pessoas que se foram.
Então, por isso que eu preciso de muita vida. Significa dizer que temos responsabilidade de viver uma vida que seja uma vida plena. Aquela que você possa dizer que essa vida eu pude compartilhar com os outros e estou satisfeita com o que fiz.