Entre 1ª de janeiro e 30 de abril de 2021, o Alcoólicos Anônimos (A.A.) do Ceará registrou 76 pedidos de ajuda somente em Fortaleza. Destes, cerca de 45, ou 60%, foram solicitados por mulheres.
De acordo com o coordenador local do A.A. Ceará, que opta por se identificar nesta matéria somente como Ferreira, a pandemia de Covid-19 levou os cerca de 310 grupos espalhados no Estado a realizarem, predominantemente, reuniões virtuais. Ainda hoje, são poucos aqueles que abrem as portas para reuniões presenciais.
Essas reuniões virtuais - em âmbito local e nacional - ocorrem todos os dias e possuem duração média de duas horas, cada uma. Os membros dos grupos, no entanto, têm “livre-arbítrio” para participar de quantas reuniões quiserem e por quanto tempo desejarem, garante Ferreira.
Encontros virtuais viabilizam maior adesão das mulheres
A flexibilidade para ingresso na Irmandade e, sobretudo, o anonimato e a segurança no acesso às reuniões à distância viabilizaram uma presença maior de mulheres no A.A durante o período pandêmico.
“Antes da pandemia, a média de mulheres procurando ajuda na Irmandade dos Alcoólicos Anônimos era bem pequena, em torno de 7% a 8%. Agora, isso aumentou substancialmente para cerca 60%”, estima.
E é motivo de alegria para nós saber que as mulheres também buscam alcançar a sobriedade através dos programas dos Alcoólicos Anônimos”
O coordenador ressalta que, ao longo de 2020, houve cerca de 120 pedidos de ajuda ao A.A. do Ceará. No primeiro quadrimestre deste ano, entretanto, Fortaleza já somou sozinha quase 80 pedidos. A quantidade corresponde a 63% dos pedidos de todo o ano passado.
“De janeiro pra cá, tivemos um pedido de ajuda muito grande e mais de mulheres. Elas costumam falar que o motivo pelo qual nos procuram é porque se sentem mais seguras através da Internet”.
Ferreira detalha ainda que a maioria das pessoas que buscam acolhimento na Irmandade estão na faixa etária de 25 a 45 anos.
O peso do estigma
O estigma social que pesa sobre as mulheres faz com que muitas delas não se reconheçam ou não admitam estar sofrendo da doença crônica que é o alcoolismo.
A desaprovação de comportamentos decorrentes do abuso do álcool, seja por familiares, amigos e/ou colegas de trabalho elevam ainda mais o sofrimento emocional dessas mulheres.
Foi o que aconteceu com a professora universitária, identificada apenas como Adriana, de 44 anos. Mãe, formada em Direito e Filosofia, viu o consumo esporádico de cerveja com os amigos se transformar em um vício. Durante dois anos, chegou a beber todos os dias ininterruptamente.
Eu morava só com a minha filha e não tinha ninguém pra me fiscalizar. A cada evento que eu ia, era uma progressão [do consumo de bebidas]. Comecei tomando uma latinha [de cerveja], depois fui pra duas, três e há quatro anos começaram esses episódios [de abuso do álcool]”
Mesmo sem conseguir controlar o impulso pelo álcool, Adriana percebeu a mudança no próprio comportamento. Sabia que algo estava errado por já ter testemunhado problema semelhante dentro de casa, com o pai.
“Já sabia que era uma doença. Eu estava tentando parar ou diminuir a frequência e não conseguia. Mas continuei e chegou ao ponto de eu beber todos os dias. Ia ao supermercado de manhã e bebia”.
"Ressaca moral"
Após ouvir um “se ajude” da irmã, Adriana resolveu procurar o A.A. em Fortaleza, em julho do ano passado. Desde então, se mantém sóbria. Ela observa que a pandemia levou pessoas a consumirem mais álcool, mas também propiciou mais tempo para reflexão.
“A maioria das pessoas procuram o A.A. não é pela ressaca física, é pela ressaca moral. A física só você sente, mas a moral todo mundo percebe. E ser mulher tem muito mais complicações que o homem. Sua conduta como mãe, sua moral está em jogo”.
Se autodenominando “uma alcoólatra em recuperação”, Ana, de 64 anos, é membro da Irmandade Alcoólicos Anônimos do Ceará há sete anos. A bebida entrou na vida da autônoma quando o ex-marido passou a sugerir o álcool como melhor alternativa para aplacar a sua timidez em reuniões com amigos.
No começo tomava três doses de martini ou licor de menta, me satisfazia. Por continuidade, aquelas três doses já não me bastavam. Eu bebi praticamente uns 25 anos. No final, já bebia na quarta, quinta, sexta, sábado e, às vezes, no domingo”
A decisão por parar com a bebida veio após sofrer uma “ressaca moral muito grande”. “Me senti desmoralizada perante a minha família. Nesse dia tive apagamento e não sei como cheguei em casa. Fiquei sem beber uns dois ou três meses”. Com a ajuda de outro ex-companheiro, membro do A.A., conheceu a Irmandade e se identificou com os relatos.
Assim como Adriana, Ana considera “tudo mais difícil” para a mulher. O que revela uma ainda forte estrutura social machista.“Pra mulher, é mais difícil se identificar como alcoólatra, é mais difícil beber também porque pro homem tudo é normal, mas a mulher todo mundo critica. Eu fui muito criticada pela minha família porque não tinha postura, por ser mulher. Já os homens da família bebem, mas ninguém critica”.
Aumento do consumo na pandemia
Com 30 anos, o estudante Robson teve o primeiro contato com o álcool aos 18. Há cerca de dois meses, participa das reuniões virtuais do A.A Ceará. A busca por ajuda ocorreu após perceber uma alteração no comportamento quando bebia.
“Me tornei uma pessoa irresponsável, até mesmo à margem da lei. Fazia coisas que no outro dia me questionavam e eu não sabia responder. Da terceira cerveja pra lá, eu me transformava”.
No passado, Robson bebia socialmente, mas o vício “progressivo” o dominou. Ainda experimentou trocar o tipo de bebida, mas sem sucesso.
Minhas perdas de emprego foram mais por conta do alcoolismo. Eu não me sentia útil. Sentia muita ansiedade pela aventura de chegar o fim de semana pra encontrar os amigos. Mas no outro dia, sentia aquela ressaca moral que te deixa muito mal”
Embora prometesse a si mesmo que controlaria o vício, Robson não conseguiu. Inclusive, devido à ansiedade de não poder sair de casa durante a pandemia, seu consumo de bebidas alcoólicas "aumentou bastante”.
“Eu sentia um vazio dentro de mim. Eu acho que é um problema da doença [alcoolismo] que nada me preenchia. E não tinha com quem me abrir porque as pessoas não me entendiam e na Irmandade fui muito bem acolhido. Me sinto uma pessoa renovada”.
A.A. Ceará
Antes da pandemia de Covid-19, a Área 27 do Estado do Ceará de Alcoólicos Anônimos reunia cerca de 301 grupos em municípios como Fortaleza, Maracanaú, Itapajé, Itapipoca, Pacajus, dentre outros.
Com as dificuldades impostas pela pandemia, alguns desses grupos foram desfeitos. Segundo o coordenador da área, foi criada este ano uma comissão que vai levantar informações sobre a quantidade exata de quantos grupos existem hoje no Estado, bem como o total de municípios onde a Irmandade está presente. O levantamento, porém, deve ocorrer no pós-pandemia.
Interessados podem procurar ajuda do A.A. no Ceará pelo número de WhatsApp (85) 9 8948-7733. Mais informações e reuniões são disponibilizados no site Alcoólicos Anônimos Brasil ou no portal do A.A. Ceará.
Mais pedidos de ajuda no Brasil
De maio de 2020 a abril de 2021, o número de pedidos de ajuda ao A.A. triplicou no Brasil. Hoje, a média é de 100 solicitações por dia. Os dados, divulgados pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), são referentes apenas a reuniões diárias no link do site oficial do A.A. do Brasil. Portanto, não incluem as reuniões à distância oferecidas pelos grupos, distritos e áreas de A.A.
No período acima mencionado, 1.067 pessoas ingressaram com pedidos de ajuda, sendo 545 homens (51%) e 522 mulheres (49%). A diferença entre os públicos é pequena, de apenas 23 pessoas a mais do sexo masculino.
Na região Nordeste, 128 pessoas da Bahia, Maranhão, Pernambuco e Ceará - o equivalente a 12% do total - pediram ajuda. Nesse caso, as mulheres foram minoria (42), respondendo a 35% dos pedidos nos quatro estados.