Mulheres na pandemia: sobrecarga reflete desigualdade de gênero

Dificuldades em equilibrar cuidados com filhos, casa e "home office", durante a quarentena refletem insistente falta de equidade; pesquisadora aponta que divisão desigual das tarefas de casa pode gerar conflitos

Em tempos de isolamento social forçado pela pandemia do novo coronavírus, a dinâmica de várias famílias precisou ser adaptada: antes, com pais trabalhando fora o dia inteiro e filhos passando parte do dia na escola, pouco era o convívio dentro de casa; agora, diante da necessidade de proteção contra a Covid-19, a rotina de muitos passou a se concentrar nos lares. Distanciamento do mundo, aglomeração em casa. O cenário, porém, impacta os membros de forma distinta, e reflete um problema social histórico: a desigualdade de gênero.

Diante da emergência de repensar as formas de convivência, as mulheres são confrontadas com o cansaço e a divisão desigual das tarefas domésticas. "Isso já é um trabalho historicamente de mulheres. Elas já estão acostumadas a ter dupla, tripla jornada de trabalho. Nesse isolamento, o que ocorre é que a própria realidade da sociedade se reproduz", avalia a coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família (Negif), Celecina Sales.

A pesquisadora reforça a noção cultural enraizada de que os afazeres privados, como cuidados com a casa e com a família, devem ser designados para mulheres; enquanto os trabalhos considerados de âmbito público, fora do lar, são apontados para homens.

Ajudar nas tarefas da escola, brincar com os filhos, limpar a casa, fazer comida e ainda trabalhar remotamente são atividades diárias para muitas delas, na quarentena. Para a pesquisadora, é preciso ter cuidado para que, com essa quantidade de obrigações, a casa não deixe de ser um lugar de conforto e acolhimento para se tornar um espaço de conflitos.

"A rotina de casa é muito pesada, muito mais cansativa. Tô morrendo de saudade do meu trabalho", confessa Adriana de Almeida Castro, 48. Apesar de não ter filhos pequenos, a ativista afirma que o trabalho doméstico aumentou com a quarentena. As duas filhas jovens estão sempre em casa, mas "acabam não ajudando".

"Sobra muito pra gente que é mulher, nós somos exploradas em todas as instâncias, pelos filhos também", diz. Além de trabalhar remotamente em um sindicato, Adriana soma à rotina as atividades sociais no bairro Conjunto Palmeiras, Regional VI de Fortaleza - como cozinhar marmitas para pessoas em situação de rua.

Assim como Adriana, a professora Franciane Lima Leite, 34, viu ocorrer uma mudança drástica na rotina, com a necessidade de isolamento social. Sendo mãe solo, ela é a única que cuida das filhas de 4 e 13 anos e, com isso, o horário de trabalho precisa de uma preparação diferente antes de começar. "Eu reservo um tempo, converso com elas, digo 'agora a mamãe vai trabalhar'. Crio algumas estratégias para a pequena não atrapalhar", relata. Franciane considera estar à frente da casa uma "característica da mulher brasileira" e tenta mediar os conflitos para aproveitar o tempo a mais com as crianças.

No Ceará, são dezenas de milhares de Francianes: 47% das famílias são chefiadas por mulheres, de acordo com as entrevistadas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2018, do IBGE. O número aumentou quando comparado à porcentagem da pesquisa de 2017, que mostrava que elas eram as responsáveis por 27,5% dos lares no Estado. O estudo de 2017 também mostra que as cearenses se dedicam aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas por 6,9 horas a mais que os homens.

Sem horário

"Ao contrário do nosso trabalho, que tem horário pra acabar, serviço de dona de casa não acaba nunca", diz a propagandista de produtos farmacêuticos Camila de Alencar Pereira Bispo, 31. Devido ao fato de o trabalho do marido, que é um funcionário de um banco, não ter parado, ela é a única em casa na maior parte do dia. Sem a divisão das tarefas, o desafio tem sido continuar com a rotina de estudos e manter a saúde mental. "Meu esposo chega e já pergunta se tem café. Tenho que estar com tudo pronto. Mas não é bem assim, eu também trabalhei o dia inteiro".

Cozinhar, então, tem sido um refúgio para Camila, que chegou a criar um perfil no Instagram para compartilhar as receitas que tenta fazer durante a quarentena. "Tem que fazer essas coisas, senão a gente pira. Tem dias que eu estou bem esgotada. O maior enfrentamento tem sido o emocional", reconhece a propagandista.

De acordo com a Celecina Sales, o acúmulo de trabalhos pode, de fato, repercutir em prejuízos para a saúde mental das mulheres. A professora também chama atenção para o fato de que, geralmente, quando um parente adoece, é a mulher da família quem cuida. Além disso, trabalhos de cuidado fora de casa são historicamente mais exercidos por elas. Outro exemplo apontado pela pesquisadora de gênero é o das enfermeiras, profissionais que atuam na linha de frente dos esforços contra a pandemia da Covid-19. "É uma sobrecarga muito grande. Isso pode causar outros adoecimentos", avalia

Violência

Durante a quarentena decretada pelos estados, os casos de violência contra a mulher no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, aumentaram em 50% e 30%, respectivamente. A ONU Mulheres, inclusive, alertou para o aumento da violência doméstica em diversos países do mundo. No Ceará, porém, os números seguem na contramão: dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) mostram que houve uma diminuição de 29,11% das ocorrências deste tipo, no mês de março - o primeiro do isolamento no Ceará -, se o quantitativo for comparado ao mesmo período de 2019. Nos primeiros 20 dias após o decreto estadual, a diminuição foi maior ainda, chegando a 52,6%.

Contudo, dados do Disque 180, canal nacional para mulheres reportarem casos de violência, mostram que as denúncias cresceram 9%. Além disso, em apenas quatro dias de quarentena, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Fortaleza registrou 65 pedidos de medidas protetivas de urgência.

Para Celecina, a redução das ocorrências registradas pela SSPDS não reflete uma queda real dos episódios violentos, mas, sim, maiores subnotificação e silenciamento deles. "Acho que as mulheres não estão denunciando, estão aguentando a violência caladas, cansadas. Como na China, na França, esse número aumentou e no Ceará não? É preciso que as mulheres saibam que elas podem continuar denunciando", opina a pesquisadora.