Além de enfrentar todo o contexto desafiador de uma pandemia, mais de mil famílias cearenses também vivem diariamente o temor do despejo, de não terem onde morar. Até o último dia 6 de junho, 1.078 famílias estavam ameaçadas de remoção no Ceará, conforme levantamento da Campanha Despejo Zero. No Brasil, ao todo, 84.092 famílias correm o risco de remoção.
Entre 1º de março a 6 de junho de 2021, aponta ainda a Campanha nacional, mais de 14.301 famílias foram removidas durante a pandemia no Brasil, sendo 778 do Ceará. Na Comunidade Juazeiro da Sombra, localizada em uma fazenda no distrito de Manituba, em Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará, há 15 famílias ameaçadas de remoção.
Alguns dos cerca de 50 moradores da comunidade – da qual também fazem parte idosos, crianças e pessoas com deficiência - construíram suas casas e vivem no local há décadas. Porém, nos últimos anos, o anúncio de suposta venda do terreno vem acompanhado de ameaças.
“A gente vem sofrendo ameaças de um suposto comprador, mas [ele] também nunca mostrou documento dizendo que comprou a fazenda, e quer colocar o pessoal pra fora através de liminares. Ninguém pode colocar ninguém pra fora dessa forma, porque a gente está num período de pandemia, a gente não tem pra onde ir”, declara Josias Lustosa dos Santos, membro da Associação Comunitária da Comunidade Juazeiro da Sombra.
Josias vive há 12 anos com a esposa e os dois filhos na comunidade, mas uma liminar o obrigou a deixar a própria casa. “Por resistência”, se recusou a deixar o local, onde passou a viver “de favor” na casa da sogra. E recorreu da ação judicial para a qual ainda espera resposta.
“Já derrubaram até uma casa aqui dentro da comunidade. A gente vem sofrendo vários ataques, ameaças de morte e tudo. A gente não queria sair, queria um acordo”, frisa Josias, que não descarta até mesmo a compra do terreno. “Tem moradores com mais de 60 anos morando na comunidade e essas famílias já criaram raízes aqui”.
Devido à pandemia de Covid-19, o Senado aprovou, há pouco mais de uma semana, a suspensão de medidas judiciais que prevejam o despejo ou a desocupação de imóveis até o fim de 2021. No caso de ocupações, a regra vale para aquelas ocorridas apenas antes de 31 de março de 2021. O texto do Projeto de Lei (PL 827/2020), porém, ainda retornará à Câmara, para aprovação de destaque que exclui os imóveis rurais do âmbito do projeto.
Caso sancionada, a lei pode ser um alento Emanoel Firmino da Silva. Ele, a esposa e a filha, junto a outras 28 famílias, ocuparam um terreno localizado no Eusébio, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). A ação ocorreu em outubro de 2020, período contemplado no Projeto de Lei.
Sem poder trabalhar, Emanoel não conseguia pagar o aluguel de um imóvel. A saída foi montar um barraco de lona no local. “A gente não tinha pra onde ir e ficou [no terreno]. Família desempregada, de baixa renda, situação financeira [ruim] em plena situação de pandemia, desemprego altíssimo, então não tinha como manter”, justifica.
De acordo com Emanuel, gestantes, idosos e pessoas com distúrbios mentais estão entre os membros da comunidade, que reúne hoje 29 famílias. Juntos, dividem o espaço de cinco lotes pertencentes a diferentes proprietários de uma mesma família.
“Era um terreno que se encontrava sem marcação, abandonado, servindo de depósito de animais mortos porque era uma área muito isolada próximo aqui à Lagoa”, afirma, garantindo também sofrer ameaças veladas e constrangimentos, inclusive, de uma iminente reintegração de posse.
“A gente soube informalmente que tinha essa ordem de desapropriação. Não chegou até nós, mas a gente sabe que tem. A gente se encontra temeroso, numa situação de salubridade lá em baixo”.
Caso a família seja removida do local, Emanuel avista como único destino a rua. Onde o risco de infecção pelo coronavírus é elevado. “Eu vou estar sujeito à contaminação e muitas famílias aqui também, isso é óbvio”.
Risco de contaminação elevado
Dados do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, órgão permanente da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, indicam que 2.221 famílias foram ameaçadas de despejo ou despejadas no Ceará. Desse total, 385 foram alvos de ações pelo Poder Público, 299 por particulares, e 1.537 pelo Poder Judiciário. O levantamento reuniu dados até o último dia 15 de junho.
Advogada do Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar, Mayara Justa lembra que estudos já apontam para avanço da contaminação por Covid-19, após processos de despejo em uma comunidade. O cumprimento de uma decisão, acrescenta, pode envolver desde moradores e policiais, até oficiais de Justiça e trabalhadores da Saúde do município. E, portanto, gera aglomerações.
“Não é só a comunidade impactada, toda aquela região, todo aquele bairro apresenta uma elevação do número de contaminação, porque uma remoção nesse contexto de pandemia efetivamente implica em aglomeração na hora e após o cumprimento da decisão. Essas micro aglomerações têm potencial de aumentar a contaminação da Covid-19 consideravelmente”.
Como moradia inadequada e elevação da contaminação se traduzem em “relação de causa e efeito”, é esperada como consequência também o aumento na taxa de ocupação de leitos e no número de mortes pelo coronavírus.
Mayara Justa avalia que as cidades brasileiras, como um todo, vivem uma “segregação socioespacial”, por meio do déficit habitacional, das grandes aglomerações nas periferias e da má qualidade das habitações nesses locais. Com isso, a pandemia se estabelece.
“Nesse novo contexto em que a moradia é o centro e representa a principal recomendação de prevenção ao coronavírus, colocado em 2020 com o jargão ‘fique em casa’, é um contrassenso, uma grave violação dos Direitos Humanos despejar essas pessoas, porque não estaria atentando só ao direito à moradia, que é um direito humano e fundamental, mas também seria uma agressão ao direito à vida”.