Fortaleza tem 130 famílias sem moradia adequada

Mais de 1,4 mil buscaram assistência jurídica em 2019 da Defensoria Pública; falta de lugar salubre para residir e pedidos de aluguel social lideram atendimentos de fortalezenses

Viver sob um teto com risco constante de desabar ou sob teto nenhum? O dilema é duro, inimaginável para quem tem paredes firmes, secas e seguras. Não é o caso de pelo menos 130 mil famílias em Fortaleza, que compõem o déficit habitacional da capital cearense por residirem em estruturas inadequadas. De acordo com a Defensoria Pública do Ceará, o número é confirmado pela Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor).

Entre 2017 e agosto de 2019, quase 4.500 atendimentos foram realizados no Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Ceará (Nuham). Só neste ano, foram 1.147, entre pedidos de aluguel social, regularização de ocupações, desapropriações e demolições de domicílios, indenizações, e assistência a famílias expulsas por facções criminosas e a pessoas vivendo em áreas de risco.

A Habitafor confirma, em nota, que o sistema de sorteio eletrônico de moradias populares da prefeitura conta com 160 mil inscrições, e que esse “não representa necessariamente um déficit, mas pessoas que desejam ser atendidas pela política habitacional”. O texto acrescenta que “6.970 unidades habitacionais estão em construção”, e que mais de 22 mil já foram entregues na gestão.

“O programa Minha Casa, Minha Vida não está atendendo às necessidades, e a Habitafor não tem um programa próprio. As entregas de unidades estão muito aquém do déficit habitacional de Fortaleza. A população fica sem acesso, aumenta a demanda por aluguel social, e a Prefeitura não dá vazão, alega que só há 700 vagas autorizadas e que todas estão preenchidas”, pontua o defensor público do Nuham, José Lino Fonteles. 

Desigualdade

A demanda é urgente: todas as Regionais da cidade têm pelo menos um conjunto de famílias vivendo em áreas de risco, conforme o Fortaleza em Mapas, sistema de dados georreferenciados da Prefeitura. Na Regional II, a mais rica, bairros como Meireles e Dionísio Torres não têm moradias neste perfil – mas a pobreza também permeia esses locais. Comunidades como Titanzinho, Pau Fininho e do Trilho, por exemplo, estão, respectivamente, no Mucuripe, no Papicu e na Aldeota.

Os assentamentos precários se concentram, contudo, nas Regionais I, V e VI, as mais castigadas da cidade. É na VI onde fica a Comunidade Santa Rita, próxima à gigante Arena Castelão, e composta por cubículos em que se vive em condições sub-humanas, principalmente após os rastros que da quadra chuvosa de 2019.

Na casa de Francisca Raiane Costa, 22, por exemplo, o banheiro está inundado pela água da fossa, assim como o quintal. Segundo ela, não adianta mais limpar. “Se a gente tivesse opção de sair pra outro canto, já teria ido. Tem casa que o risco tá em cima, toda rachada. Na nossa, tá embaixo, com o chão afundando. A casa é toda úmida. Eu e minha mãe, de 53 anos, todas duas teve chikungunya”, relata.

A situação precária já se estende por três anos, mas “piora em tempo de chuva, a água vai até a sala”. É assim também na casa de Maria Ângela Silva, que vive na Santa Rita há quase 30 dos 48 anos de idade. Divide as paredes rachadas e mofadas, parte já desabada, com o marido, o filho e, agora, a pneumonia. “Meu maior sonho é sair daqui, porque não adianta reformar. É derrubar e fazer de novo, tá tudo afundando. Tenho até medo de ir no banheiro e o teto cair na minha cabeça. Tomo banho é no quintal”, diz, com a tosse constante roubando os resquícios de energia.

Regularização

Entregou, então, a luta por moradia digna nas mãos da costureira Maria Roseli da Silva, 49, que acompanha junto à Defensoria a falta de respostas do Poder Público. Roseli foi uma das fundadoras da Santa Rita, quando, nos anos 1990, o terreno foi designado à construção de um conjunto habitacional. O problema é que as casas começaram a ser erguidas de forma irregular, fora dos limites e sem apoio técnico, de acordo com a líder comunitária. Nenhuma das 90 residências é regularizada.

“Quem construiu tudo foi nós, em mutirão, os esposos e as mulheres. O que a gente quer é que eles tirem as ocupações e façam o conjunto como era pra ter sido, com saneamento, com estrutura”, defende. “Aqui é só a calamidade. Nosso sonho, o que a gente quer e vai lutar pra ter, é ajeitar tudo. Em pleno verão a gente dentro da água da fossa? Nós não pode continuar num negócio. Nós é gente!”, descreve Roseli, com palavras atropeladas de quem tem coisa demais a pedir.

Para o defensor Lino Fonteles, “é evidente que não tem habitação nem aluguel social para todos os que precisam”. “A solução mais viável para os problemas habitacionais de Fortaleza é a regularização fundiária. Muitas famílias preenchem os requisitos: das 10 mil que têm ações aqui, pelo menos 8 mil atendem”, calcula. “É a solução menos onerosa às pessoas e ao Poder Público. Uma habitação não se constrói da noite pro dia, o custo é muito alto, cerca de R$ 80 mil por unidade”, estima Lino, ressaltando, porém, que “algumas famílias estão em áreas verdes e de risco, sendo necessário projetos específicos.” 

Sobre a regularização fundiária em áreas de risco, a Habitafor informa que realiza “melhorias” constantes, bem como reassentamento de moradores. A pasta diz ainda que mais de 5.051 famílias receberam o ‘papel da casa’, 1.039 habitações passaram por melhorias, 1.500 tiveram acesso a saneamento básico e outras 1.200 famílias em situação de rua e assistidas pelas ações de urbanização são atendidas pelo Programa de Locação Social. A Pasta não se manifestou quanto à situação da Comunidade Santa Rita.

Ilegal

Além de descumprir a Constituição Federal e a Declaração dos Direitos Humanos, que asseguram a todos o direito à habitação, a deficiência do cenário em Fortaleza vai de encontro também ao próprio Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHISFOR), no Fortaleza 2040, planejamento de estratégias a serem implementadas a curto, médio e longo prazos na cidade.

Entre os objetivos gerais está “garantir o direito universal à moradia digna, democratizando o acesso aos serviços públicos de qualidade, priorizando programas e projetos para famílias de baixa renda, ampliando a oferta de habitações e melhorando as condições de habitalibilidade”. 

O PLHISFOR pontua entre as diretrizes a “garantia do direito à terra urbana e ao saneamento ambiental”, bem como a “promoção da regularização fundiária dos assentamentos precários e informais”. O plano prevê ainda a “criação de serviços públicos de assistências técnicas nas áreas jurídica, de arquitetura e engenharia para atendimento da população de baixa renda” e a “ampliação da produção e do financiamento habitacional de interesse social”. O que, na prática, é só teoria.