Especialistas em terapias e psicólogos analisam dramas vividos por jovens em seita espiritual em Fortaleza, no momento em que procuravam tratar feridas da alma. As práticas de abusos sexuais, agressões físicas e psicológicas denunciadas por ex-membros da comunidade Afago teriam sido praticadas por Pedro Ícaro de Medeiros, o Ikky, entre 2018 e 2019. Acadêmico de graduação em Filosofia em uma universidade pública, Pedro Ícaro se apresentava como o mestre espiritual da Afago, uma seita sem endereço fixo em Fortaleza.
Em busca de amparo, as vítimas acumularam cicatrizes ainda mais profundas. Elas contam que eram obrigadas a passar por rituais que envolviam a manipulação de órgãos sexuais, ejaculação e agressões em nome de uma falsa recuperação.
Os rituais de violência sofridos pelos jovens foram exibidos na noite do domingo (19) em reportagem do programa Fantástico, da TV Globo. Entre os relatos que chocaram profissionais em tratar as dores da alma estão denúncias de agressão e estupro.
“Não só pra mim, mas para uma roda de pessoas, ele dizia muitas vezes que o p... (órgão sexual) dele era mágico”, disse uma vítima do sexo masculino.
Outro rapaz revelou que Ikky o obrigou a manter relações sexuais. “Eu estava chorando, sangrando e eu esperava dele um pouco de humanidade. O que ele fez foi tirar minha blusa e colocar minha blusa na minha boca para que parasse de chorar e ele pudesse continuar”.
Para o criador e coordenador do projeto 4 Varas, doutor em psiquiatria, Adalberto Barreto, a denúncia revela bem mais do que abusos intoleráveis orquestrados por alguém que se intitula terapeuta. Pessoas sofridas vulneráveis foram atraídas por um desejo de bem-estar e de harmonia consigo e com os outros e são submetidos a caprichos e taras de alguém em que depositaram confiança.
“A partir dos relatos dos adeptos desta pseudo terapia nada descrito é terapêutico. Pois a palavra terapia vem do grego significa acolher calorosamente. Os rituais descritos sugerem bem mais catarses violentas coordenado por um psicopata, práticas sadomasoquistas e abusos por quem deveria ter acolhido generosamente e respeitosamente alguém em sofrimento psíquico. O consentimento de pessoas fragilizadas a submeter-se a certos métodos terapêuticos não isenta o terapeuta de suas responsabilidades. Já que estás pessoas estão fragilizadas e não se encontram em condições de escolher o que é melhor para si”, declara o psiquiatra.
Tratamento
A comunidade do estudante atraía os jovens pelos projetos sociais e cursos terapêuticos baratos, embora estes não tivessem nenhuma certificação válida.
Conforme o especialista em medicina tradicional chinesa, do Mundo Akar, Sandro Marjorie, a terapia holística é uma abordagem de tratamento não médica, que se baseia na teoria de que os seres vivos e o meio ambiente agem como uma unidade. A prática associa as doenças, os desequilíbrios tanto do corpo quando da mente com os elementos ambientais ligados ao contexto natural. “Enfim, a terapia holística trata o ser humano de maneira macro associado a natureza como unidade indivisível”.
Para Sandro Marjorie, a terapia holística é um dos métodos mais indicado para a cura de determinados distúrbios e desequilíbrios da alma. “É um tratamento complementar e precisa ser muito bem conduzido por profissionais qualificação mais consolidada no mercado. O ideal é ficar atento para quem a pessoa está entregando os cuidados com sua alma. Os conhecimentos precisam ser comprovados com validade jurídica e acadêmica”, alerta.
Na concepção da psicóloga do Mundo Akar, Emanuela Ferreira Gomes, os jovens que participavam dessa comunidade estavam vulneráveis emocionalmente, fragilizados e esperavam ser cuidados, orientados e com necessidade de se sentirem pertencentes, parte de algo, de um grupo (algo intrínseco ao ser humano, mas especialmente importante para os jovens).
“A vulnerabilidade, quando mostrada para pessoas que não fazem bom uso dela, aumentam os traumas pois as feridas, as questões existentes anteriormente, continuam e são possivelmente agravadas por não serem respeitadas. Nesse caso, são ainda somados aos abusos físicos e emocionais (já um trauma em si) e a quebra do processo de confiança já que eles abriram seus corações e não só foram desrespeitados, como foram abusados”.
Como agir
“Às vítimas devem procurar ajuda de profissionais sérios e recomendados por pessoas de referência e consigam, aos poucos, restabelecer a confiança em um processo para olhar as questões que já abertas e as criadas pelos abusos (físicos e emocionais), tendo a segurança de que eles não precisam fazer nada que não seja confortável ou que não soe bem para eles”, indica a psicóloga.
Os danos causados são múltiplos e o tratamento longo requer o acompanhamento de bons profissionais. De início um psicólogo seria necessário para trabalhar toda a carga emocional, dependendo dos sintomas seria importante um trabalho conjunto com um psiquiatra. “Mas, novamente, precisa ser com um profissional sério, responsável e bem recomendado”, destaca Emanuela Gomes.
O processo terapêutico é muito necessário e importante para reestabelecer o equilíbrio emocional e psíquico dos indivíduos. “Temos diversas abordagens de terapias ditas tradicionais ou integrativas e em todos os casos, sem exceção, é imprescindível a atenção à escolha do profissional que irá conduzir esse processo, considerando sempre: conhecimento técnico, ética, experiência e seriedade”.
Comportamento do guru
Na comunidade Afago aconteciam os rituais de batismo. “Você era batizado com água no chuveiro da casa dele e se você fosse teimoso ou desobediente, ou qualquer uma dessas características rebeldes, né, era queimado com uma pedra quente atrás da nuca, no pescoço”, contou um jovem.
No espaço também havia a hierarquização, jovens passavam por provas violentas, como a troca de tapas, para subir de escalão. Áudios obtidos pela reportagem mostram a convocação feita pelo próprio Ícaro.
“Quero que vocês tragam na próxima aula (...) o que vocês escreveram sobre levar um tapa na cara e que vocês tragam uma bacia (...) e uma vela. Uma vela grossinha. A bacia tem que ser grande o suficiente pra você poder mergulhar a tua mão ou alguma parte do teu corpo depois que eles forem queimados”, dizia.
“As pessoas ficavam muito tontas. Choravam. Eu sempre chorava”. Confessou uma das vítimas. “Ele falava que era pro nosso crescimento pessoal e espiritual".
Em relação as atitudes do “mestre espiritual”, Pedro Ícaro, a psicóloga evita um diagnóstico fechado, pois os conhecimentos sobre os casos são ainda limitados. No entanto, o perfil apresentando até agora se assemelha com um psicopata. “Diferente do que costumamos achar, a psicopatia apresenta vários graus e se caracteriza por alguns comportamentos apresentados por ele, como: desconsiderar regras sociais e entender apenas suas verdades, suas necessidades e suas regras; ausência de uma consciência, culpa, da empatia ou qualquer preocupação com o sentimento do outro”.
Outra cena frequente era o “ovo luminoso”, um círculo mais restrito, no qual cinco homens e duas mulheres são convocados para participar, desde que obedecessem as ordens do estudante. “Para as meninas, ele só pedia o sangue menstrual. Mas pros rapazes, ele dizia que para participar do ovo luminoso, tinha que ter dez sessões de sexo com ele”, detalhou um dos participantes.
“O que você precisa para expandir sua identidade é seguir o que você tem nojo, é seguir o que você tem aversão. Então fique com meninos, comece a beijar outros rapazes e tenha relações comigo que sou seu mestre. A partir disso, você vai conseguir essa expansão que você tá procurando”. Argumento usado pelo guru, revela um dos jovens.
“O psicopata consegue anestesiar nossa capacidade de julgamento e nossa racionalidade, manipula e utiliza de várias ferramentas para o que ele quer, o prazer imediato. Eles também são superficiais, eloquentes, egocêntricos e megalomaníacos. O comportamento que nos foi apresentado, o lugar que ele se coloca, os abusos físicos e emocionais que cometeu, sugerem sinais de psicopatia”, complementa a psicóloga Emanuela Ferreira Gomes.