Há dois anos na fila de espera do Sistema Único de Saúde (SUS) por consultas médicas de múltiplas especialidades, Lucy Lustosa, de 55 anos, decidiu apertar o orçamento e pagar uma consulta na rede privada. Não fosse o baixo custo da assistência, ela conta que seria obrigada a aguardar "sem perspectiva" o retorno das unidades públicas. Lucy pagou "bem mais barato" porque buscou uma clínica popular, serviço com tabela de preços acessíveis e em crescimento na Capital. Na pandemia de Covid-19, sobretudo, esses estabelecimentos relatam um incremento nas demandas por atendimentos.
No Centro Médico Popular, na Parangaba, o aumento das solicitações para agendamento de consultas já foi notado logo após a confirmação dos primeiros infectados pelo novo coronavírus em Fortaleza, na segunda quinzena de março. Segundo a coordenadora Elaine Silveira, a "grande procura" foi motivada inicialmente por pacientes que demonstravam receio de ir a hospitais públicos por causa da circulação viral do SARS-CoV-2. De lá até agora, pontua, o tratamento psiquiátrico registra a maior demanda.
"A saúde mental é ainda o serviço mais procurado tanto para psicólogo quanto para psiquiatra. A gente percebe que o emocional das pessoas ficou muito afetado por causa do isolamento social, da doença em si e das mortes. A maioria dos pacientes que nos procuram diariamente é de idosos e mulheres", detalha.
Triagem
No primeiro trimestre da pandemia, a rede de Clínicas SIM limitou o número de atendimentos por conta do isolamento social determinado por decreto estadual. Conforme o gerente de marketing Victor Rozendo, cada paciente passava por uma espécie de pré-avaliação antes de agendar a consulta para evitar superlotação nas 11 unidades de atendimento.
"Entre março e maio, nós tivemos uma alteração bem drástica na oferta de consultas porque nos concentramos em segurar um pouco a demanda. Quando algum paciente nos ligava, fazíamos uma sondagem. Por exemplo: se era uma consulta oftalmológica para renovar receita de óculos, orientávamos que ele aguardasse um pouco mais até que a situação epidemiológica fosse controlada, mas se era para tratar uma conjuntivite, o atendimento era feito. Essa determinação valeu para todas as especialidades médicas", afirma.
Em contrapartida, a partir da flexibilização dos serviços autorizada pelo plano de retomada econômica, em junho, a demanda reprimida nos meses anteriores "voltou com força", indica Rozendo. Em geral, consultas de rotina, como acompanhamento ginecológico, cardiológico e de diabetes, cita, tiveram maior busca até agosto. "Foi um aumento muito significativo. Nós tivemos o cuidado de aumentar a oferta para atender a todos. Tivemos recorde de ligações no call-center, recorde de acesso no site, só não podemos divulgar esses números", pondera, complementando que a rede precisou executar mudanças para suportar a quantidade de agendamentos.
"A gente fez todo um estudo para estender turnos e alocação dos médicos, reajustar horários de algumas unidades, mudanças na estrutura física para tentar comportar a demanda e cumprir o distanciamento entre os pacientes. Como a demanda vem crescendo diariamente, esse trabalho de reestruturação não para", pontua o gerente.
Mais médicos
A Clínica Santa Clara, no Centro, dobrou o número de médicos em função do crescimento das solicitações de consultas com clínicos-gerais. "Antes era apenas um médico por dia em cada horário, agora são dois, sendo um na unidade da Rua João Moreira e outro na Senador Pompeu", aponta a gerente, Glauciane Sousa. "Logo após o lockdown, a procura aumentou de 20% a 30%, porque antes a demanda estava bem baixa. As pessoas tinham medo de pegar a Covid-19".
Atualmente, atesta Glauciane, "a demanda diminuiu um pouco", mas nos primeiros dias do mês, o movimento de consultas permanece no mesmo padrão. "No início aparecem mais pacientes até pela questão dos pagamentos de salários que são nesse período, já para o fim do mês, esse número cai", frisa.
Para Lucy, que ainda espera a marcação no SUS em atendimentos com ortopedista, dermatologista e reumatologista, investir na consulta particular seria a melhor saída diante da falta de resposta. "Eu costumo procurar quando as condições financeiras permitem, porque mesmo sendo um serviço mais barato, não deixa de ser um custo a mais no orçamento. Se eu realmente pudesse, pagaria todas, mas o esforço é grande para conseguir arcar. É tipo cobrir um santo e descobrir outro", revela.
Embora não tenham estrutura para tratar casos de alta complexidade, as clínicas populares atraem pela facilidade no acesso a tratamentos eletivos, isto é, aqueles que não demandam urgência. Baixo custo, pagamento parcelado no cartão de crédito e ampla agenda de especialistas são algumas das vantagens apontadas pelo professor universitário de Gestão Hospitalar, Rafael Porto.
"Essas clínicas são uma resposta à população que não tem renda suficiente para ter um plano de saúde e, ao mesmo tempo, não identifica uma alta resolutividade no SUS, pelo menos não na rapidez que precisa, a ponto de não esperar por esse atendimento e acabar pagando".
O educador contextualiza que a crise econômica de 2017, quando o Brasil chegou à marca de 13,5 milhões de desempregados, fez mais pessoas dependerem exclusivamente do sistema público, que tem gargalos no tempo-resposta. "Quando você perde o emprego, não vai embora só a renda, mas geralmente o plano de saúde e mais gente precisa do SUS. Apesar de ele ser um sistema extremamente igualitário, é como uma casa que tem condições de receber 10 pessoas e tem 100. Por isso que as pessoas procuram um serviço particular e de forma mais barata", justifica.
Surgimento
De acordo com o professor titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Borzacchiello da Silva, a Santa Casa de Misericórdia, no Centro de Fortaleza, motivou o surgimento de clínicas populares, ainda na década de 1990. À época, conta, houve acúmulo na demanda por atendimentos provocado pela redução da oferta de consultas no hospital. Os médicos, então, viram nessa carência a oportunidade de oferecer assistência com preços acessíveis, principalmente a pacientes vindos do Interior.
"A Santa Casa de Misericórdia tem uma tradição centenária de atender a população carente, mas a procura era tão intensa que os médicos de lá viram que não conseguiam atender toda a demanda, principalmente de pessoas do interior e de um interior imediato, como Caucaia, Maranguape, Pacatuba. A partir daí, foram surgindo outras com preços populares para atendimentos e exames", detalha.
O volume de clínicas instaladas na circunvizinhança da Santa Casa fez o local ficar conhecido como "Quarteirão das Clínicas", que é a junção das ruas Dr. João Moreira e Senador Pompeu, explica o professor. Se na década de 1990, nove equipamentos foram construídos, no decênio de 2000 a 2009, o número chegou a 14. Já entre 2010 e 2014, mais oito passaram a atender o público.
Além dos ganhos em saúde coletiva, na avaliação de Borzacchiello, a construção de clínicas populares revitalizou o espaço urbano da área central da cidade, até então especializada majoritariamente em comércio de atacado e varejo. A oferta de serviços de saúde chega para dar dinamismo, sobretudo ao corredor histórico, que envolve a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o Passeio Público, a Estação João Felipe e a própria Santa Casa.
"Eram equipamentos de prestígio com pouco espaço para comércio, que tem muito mais vigor entre a Praça José de Alencar e a Praça do Ferreira, principalmente se nós pegarmos da Guilherme Rocha até a 24 de Maio. É o setor mais dinâmico, e com as clínicas essa dinâmica também atingiu o corredor histórico, onde o comércio atacadista de plásticos é muito forte".
A reportagem do Diário do Nordeste questionou o Conselho Regional de Medicina (Cremec-CE) acerca do número atual de clínicas populares. Porém, a entidade explicou que no ato da inscrição, o estabelecimento não especifica se terá esse perfil, o que impossibilita apontar o total. Segundo informou, mais 26 clínicas da Capital realizaram inscrição no Cremec entre o mês de abril e a última terça-feira (10).