Com fiscalização fraca, lockdown falha em todas as áreas da Capital

Aglomerações, não uso de máscaras de proteção e abertura de comércios não essenciais são flagrantes comuns, principalmente nas periferias da cidade; isolamento mais rígido falha em meio a aumento de casos e mortes no Ceará

Sexta-feira, 15 de maio, uma semana de lockdown em Fortaleza. O vai e vem de veículos costura um perigo que está à espreita: não se sabe se o novo coronavírus está ao seu lado, naquele pedestre que passa na rua sem máscara, ou mesmo na senhora sentada na calçada de casa. O inimigo invisível mora nos detalhes - e nas vias aéreas de um povo que, por falta de opção ou de consciência, insiste em se entregar a ele.

Equipes do Sistema Verdes Mares percorreram, entre 7h45 e 19h30 de sexta-feira, mais de 180km em 35 bairros de todas as Regionais de Fortaleza, para observar como a cidade tem reagido às medidas de isolamento social rígido, válidas em âmbito municipal desde o dia 8 de maio. A constatação foi simples: o lockdown não está funcionando, e tem como gargalo a própria falta de fiscalização, principalmente nas zonas periféricas da Capital.

 

Embora a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) garanta que "realiza, junto com os órgãos estaduais e municipais, ações de fiscalização e orientação", inclusive "nos locais onde são registrados os maiores índices de ocorrências", a reportagem flagrou aglomerações, desrespeito ao uso de máscaras de proteção e abertura de comércios não essenciais em vários locais, algumas ocorrências presenciadas por composições da própria Polícia Militar.

Pela manhã, cruzamos bairros das Regionais II, IV, V e VI, como Vicente Pinzón, Dendê, Planalto Ayrton Senna e Passaré, respectivamente. Mesmo sob chuva, o movimento de pedestres, sobretudo em vias centrais, era intenso. Filas em farmácias, postos de saúde e casas lotéricas, que têm funcionamento permitido, raramente respeitavam o distanciamento mínimo de 1,5 metro; presenciar lojas de cosméticos, roupas e até igrejas abertas era cena comum. Por lá, não encontramos nenhuma equipe de fiscalização municipal nem estadual.

Na Regional V, no bairro Conjunto Esperança, flagramos uma feira livre em pleno funcionamento, por volta das 9h, ocupada por dezenas de pessoas - entre elas, idosos e crianças. Em bairro vizinho, o Parque Dois Irmãos, outra feira estava em atividade - ao lado da Unidade Integrada de Segurança (Uniseg) 18, da 3ª companhia do 19º Batalhão da Polícia Militar.

Nas ruas do Planalto Ayrton Senna - que figura entre os dez bairros com mais mortes por Covid-19, segundo boletim da SMS -, motociclistas trafegavam sem capacete, nem máscara, expostos a dois riscos simultâneos: a contaminação pelo novo coronavírus e um acidente de trânsito. Dois deles chegaram a cruzar uma viatura da PM, sem sofrerem nenhum tipo de abordagem.

A reportagem seguiu até a divisa entre Maracanaú e Fortaleza, onde uma barreira fixa de fiscalização foi instalada. Nosso carro, sem adesivos ou indicações do Sistema Verdes Mares, não foi parado pelos agentes na ida nem na volta. O mesmo se repetiu com vários veículos que cruzaram a blitz.

Percorremos toda a orla da Praia do Futuro. O movimento era zero, tanto de pedestres como de veículos. Em uma calçada do bairro, uma família de quatro pessoas dormia em colchões. "Aqui, o mais difícil é tomar banho e cozinhar, né? E nós não tem máscara nem álcool em gel. De vez em quando, o pessoa passa e dá. Mas sem água?", pondera um deles. "A gente já tá acostumado a viver no perigo e sem saúde", completa a esposa.

Já na Aldeota, pessoas passeando com cachorros e fazendo exercícios físicos em praças como Luíza Távora, por exemplo, complementam o cenário de desobediência ao isolamento social.

Novos epicentros

Durante a tarde, visitamos cerca de 20 bairros das Regionais I, III, IV e V. Não foi preciso apurar o olhar para ver o desrespeito ao decreto de isolamento social rígido em, praticamente, todos os pontos. As exceções foram Montese e Parangaba, cujos comércios estavam aparentemente fechados e sem movimentação.

No Genibaú, porém, todos os estabelecimentos do entorno da Av. Senador Fernandes Távora estavam total ou parcialmente abertos. A estratégia dos comerciantes, observada também em outros locais, é deixar a porta semiaberta. No mesmo bairro, ao fim da Rua José Mendonça, um grupo de cinco pessoas batia na porta fechada de uma academia de musculação, todas usando trajes para exercícios. Ao lado, uma barbearia totalmente aberta - e com clientes.

Embora o presidente do Brasil tenha considerado academias, barbearias e salões de beleza como serviços essenciais, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a palavra final para funcionamento ou não desses locais é de governadores e prefeitos. No Ceará, Camilo Santana reafirmou, via redes sociais, que estão proibidos de funcionar.

A quebra do lockdown também foi percebida em bairros como Conjunto Ceará I e II, Bom Jardim, Siqueira, Bonsucesso e João XXIII. Já na Regional IV, andamos por vias de grande circulação nos bairros Vila Pery, Parangaba, Montese, Damas e Benfica e não foi observada irregularidade além do uso incorreto ou ausência de máscaras.

No fim da tarde, o Centro também não estava vazio. Consumidores que lotam a região em compras rotineiras sumiram, dando lugar à população em situação de rua - que, na impossibilidade de ficar em casa, tenta sobreviver, seja na Praça do Ferreira ou nas ruas-limites do lugar.

Mas é na Regional I onde a situação parece estar mais precária. A movimentação na Areninha do Grande Pirambu já denuncia: cada pedaço da terra tinha gente. Seja na rua, na praça, supermercados, lojas de conveniência, areia da praia, mar, tudo.

Atualmente, a região é considerada o epicentro da Capital. A Barra do Ceará é o bairro recordista de mortes na cidade: pelo menos, 45 até o dia 13 de maio, dado mais atual da SMS. Cristo Redentor, ao lado, marcava 31; Carlito Pamplona, 22. Toda a Regional I já registra, pelo menos, 232 óbitos, maior número entre as outras seis.

A infectologista Olga Machado pondera que essa quebra de isolamento na periferia, que repercute no aumento de casos e mortes, tem vários fatores. "Em alguns casos, as pessoas têm uma casa pequena, com poucos cômodos, que não dê para isolar. Na periferia tem muito mais gente, e as pessoas não têm acesso a medidas de saúde. Mesmo com o investimento público, com as medidas de isolamento, é muita gente (para dar conta)".

Barreiras sanitárias

Além dos bairros, o Sistema Verdes Mares passou pelas duas barreiras sanitárias (na BR-222 e na Avenida Leste Oeste) montadas pelas forças de segurança e fiscalização do município e do Estado entre Fortaleza e Caucaia. Na barreira montada na BR-222, havia filas de carros nos dois sentidos, criando um engarrafamento no local.

Vários motoristas foram vistos sem máscara e ultrapassando, calmamente, o efetivo da PM. Em nenhum dos dois sentidos, a equipe foi abordada por profissionais da segurança, observando, durante quase 30 minutos, apenas uma ação de fiscalização com a parada de três condutores e requisição de seus documentos.

Já na Av. Leste Oeste, a situação foi diferente. Praticamente todos os veículos estavam sendo parados e questionados por profissionais da Guarda Municipal de Fortaleza (GMF). A equipe de reportagem foi parada no sentido Caucaia-Fortaleza e questionada sobre o motivo para a movimentação, mas não foi pedido documento de comprovação da função de jornalista.

Ações

A SSPDS informou, em nota, que entre as 19h da quinta-feira (7) e as 8h de sexta-feira (15), agentes realizaram atendimentos de 591 ocorrências de aglomerações de pessoas, 257 de comércios abertos e 72 de descumprimento ao uso de proteção individual. Nesse intervalo, foram abordados "quase 50 mil veículos".

Agentes de vários órgãos "atuam em sete pontos fixos nas entradas e saídas da cidade". Segundo a SSPDS, os trabalhos foram intensificados nos bairros que integram as Áreas Integradas de Segurança 1, 3 e 7.