Mães, cuidadoras e trabalhadoras: sobrecarga das mulheres pode resultar em adoecimento mental

Quando sentia a rotina sufocar, a professora Nilda Sombra, de 54 anos, saía do quarto e se sentava em um banco. Aproveitava para fazer uma ligação e conversar com alguém por alguns minutos, depois voltava. Nos momentos de saudade, buscava o lado positivo de toda aquela situação. “Estou triste porque estou lembrando de casa, mas aqui tem tanta gente legal, já fiz tantas amizades com pessoas de várias cidades”, repetia para si.

Há um ano, Nilda passou a se dedicar aos cuidados da tia, a quem vê como uma mãe. Quando foi preciso fazer uma cirurgia em Fortaleza, a professora pediu licença não-remunerada do trabalho, deixou a cidade de Jaguaruana rumo à Capital e voltou seus esforços para um objetivo: ver aquela mulher caminhando, falando e se alimentando sozinha, como antes.

Após passar por dois hospitais, Francisca Rocha da Silva, 80, foi encaminhada para a Casa de Cuidados do Ceará, sempre na companhia da sobrinha. A mudança para o hotel transformado em centro de reabilitação durante a pandemia de Covid-19 fez bem para as duas. “No outro, embora eu gostasse muito da equipe, aquele ambiente de paredes fechadas, de corredores, me deixava bastante deprimida”, conta a professora.

O cuidado com filhos, pais idosos ou outros parentes que precisam de apoio recai sobre as mulheres, como ocorreu com Nilda. Com essa responsabilidade, muitas vezes, vêm a exaustão e o adoecimento mental. Especialistas apontam depressão, ansiedade, síndrome do pânico, transtorno bipolar, tristeza e desesperança como alguns efeitos que essa sobrecarga pode acarretar a cuidadoras. As mães ainda podem enfrentar um nível de exaustão que leva ao burnout materno.

Na quarta edição do especial jornalístico "Nenhuma a Menos", uma série de 10 reportagens — que integra o "Projeto Elas" —, o Diário do Nordeste discute atitudes, costumes, tradições, aspectos biológicos e comportamentos que impactam na saúde mental de meninas e mulheres, visando debater formas de buscar seu bem-estar, entendendo que essa é uma demanda coletiva, de toda a sociedade, e que atravessa questões que vão além de doenças, pois ultrapassam temas como saúde e envolvem educação, cultura, política e economia.

As mulheres são maioria entre os acompanhantes dos pacientes da Casa de Cuidados, sejam eles familiares ou cuidadores profissionais. “Percebemos que as mulheres se dedicam mais, se entregam mais ao cuidado, e acredito que, por consequência, acabam deixando de se cuidar também. Aí vêm os impactos na saúde mental”, relata Ariana Matias, psicóloga da unidade.

A disparidade de gênero na dedicação a atividades de cuidado se repete no Ceará, no Nordeste e no Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, no Estado, as mulheres dedicam o dobro de horas por semana a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, em comparação com os homens.

Outra evidência é que no processo de produção de um projeto de lei que institui a Política Nacional de Cuidados, o Governo Federal fez um diagnóstico sobre a atual organização social dos cuidados.

O trabalho revelou um fato já conhecido de diversas mulheres: a provisão de cuidados no país se dá especialmente a partir das famílias, com uma presença insuficiente do Estado e essa realidade, sobrecarrega as mulheres brasileiras, especialmente as mulheres negras, as mais pobres, as que vivem na zona rural e nas periferias urbanas.

Por efeito essa realidade contribui para um acesso desigual aos cuidados para as pessoas que dele necessitem.Na última terça-feira (12), a Câmara dos Deputados aprovou o projeto (PL 2762/24) que institui a Política. O documento foi enviado ao legislativo pelo presidente Lula (PT) no início de julho. Agora, segue para apreciação do Senado. 

A ideia é que a Política Nacional de Cuidados estabeleça um referencial de garantia de direitos tanto das pessoas que necessitam de cuidados quanto das que cuidam, com atenção às desigualdades de gênero, raça, etnia e territoriais. 

Microviolências cotidianas

Apesar dos avanços conquistados pelas mulheres em relação ao trabalho e ao reconhecimento como sujeitos públicos, as tarefas de casa que exigem participação “objetiva” dos homens — como fazer comida, lavar a louça e colocar o filho para dormir — continuam sendo uma responsabilidade principalmente delas.

“Por conta dessa terceira jornada de trabalho, as mulheres dormem menos, comem mal e têm menos tempo para fazer atividade física e para esse pequeno lazer do dia a dia”, afirma a psicóloga Layza Castelo Branco, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ela classifica o ato de deixar o excesso de tarefas para elas como uma microviolência.

Seja no cuidado dos filhos ou dos pais idosos, a psicóloga aponta que, muitas vezes, são as mulheres que tomam a frente. E ela destaca que não é uma culpa dos homens. “É questão de construção da sociedade como um todo, de corresponsabilidade de todos que compõem esse corpo social. Mas isso é violento para mulher”, afirma.

É sobre uma vida toda só trocando de etapas. Às vezes é o filho bebê, às vezes é o filho adolescente. Aí esses filhos vão crescendo e daqui a pouco ela vai cuidar dos pais. Então, é uma vida toda em que essa mulher não tem qualidade de sono e tem acúmulo de tarefas.
Layza Castelo Branco
Psicóloga

Como resultado, ela cita o desenvolvimento de doenças como depressão e transtorno de ansiedade, assim como de psicopatologias mais agravadas, como síndrome do pânico e transtorno bipolar.

O médico Gilberto Alves, professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Coordenador do ambulatório de Psicogeriatria do Hospital Nina Rodrigues, de São Luiz (MA), tem estudos com cuidadores de idosos com demência.

Em famílias sem condições para contratar um profissional para cuidar, o médico aponta que é comum um membro deixar de trabalhar e, muitas vezes, a pessoa eleita para isso é uma mulher. Há estudos que mostram, inclusive, que os acompanhantes masculinos tendem a abandonar o paciente com mais frequência.

O panorama que envolve as demências e os impactos emocionais para os cuidadores também está relacionado à questão socioeconômica. O médico aponta que a incidência e a prevalência dessas doenças têm aumentado, sobretudo nos países mais pobres e em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, esses indicadores têm reduzido nos economicamente mais ricos, apesar do aumento da expectativa de vida da população.

“E isso acontece muito por falta de políticas públicas, que devem existir devem contemplar o diagnóstico precoce de condições como depressão e hipertensão arterial, porque tudo isso tem a ver com maior incidência de demência”, explica.

Nos países mais pobres, culturalmente, ele aponta que homens tendem a buscar menos atendimento médico que mulheres. Isso pode levar a casos de demência mais graves, gerando consequências importantes inclusive para a saúde mental de quem presta o cuidado.

Uma saída, segundo Alves, é a educação. “Conscientizar a população em relação a medidas de saúde, prevenção de patologia e diagnóstico precoce evita a piora dos sintomas comportamentais e diminui a sobrecarga do cuidador. E é importante que a sociedade modifique a percepção cultural de que só as mulheres vão estar envolvidas na prestação do cuidado”, afirma.

'Eu quero cuidar de alguém'

A Casa de Cuidados oferece atendimentos em grupo e individual voltados para a saúde mental de cuidadores. O momento coletivo é realizado visa empoderar e propiciar um espaço de autocuidado e de fala, explica Ariana Matias. “São dores parecidas, então elas têm essa condição de pertencimento”, diz a psicóloga.

A reportagem do Diário do Nordeste esteve em um desses encontros neste ano. Uma das participantes do grupo naquele dia era Nilde Abreu, 57. Ela estava na Casa de Cuidados acompanhando a irmã, Elma, que se recuperava de uma cirurgia. Apesar de não ser a única da família a se dedicar ao cuidado, uma vez que a tarefa é dividida com outras irmãs, ela relata as dificuldades dos dias longe de casa.

Nilde fica emocionada ao falar da distância dos filhos e do neto. “Moro com um filho, e ele às vezes reclama porque está muito só. E aí eu digo para ele: ‘meu filho, tenha paciência. É uma questão de tempo, isso não é para sempre’. Mas é complicado.”

“Esse negócio que ela [a psicóloga do grupo] falou de você cuidar de si. Eu acho que eu não sou muito assim. Eu quero cuidar de alguém, entendeu? Aqui é dos irmãos, em casa é dos filhos. Enfim, eu sou essa pessoa assim. Eu gosto muito de estar fazendo algo para alguém. Desde que eu saí do trabalho que é assim. Acho que é uma maneira de ocupar o tempo em alguma coisa”, diz ela.

'Meu puerpério foi avassalador'

Dar banho, botar para dormir, fazer café da manhã, almoço e jantar, lembrar-se dos compromissos, lavar, passar e guardar as roupas, fazer compras, levar para a escola e pegar após o fim da aula, ensinar a tarefa, planejar a rotina — e repete, a cada dia, não necessariamente nesta ordem. Apesar de invisibilizado e pouco reconhecido, o trabalho de cuidado é essencial para a sociedade e para a economia.

E o impacto na saúde mental pode ser tão grande quanto o esforço contínuo para dar conta de todas as tarefas. A pesquisa “Esgotadas: o empobrecimento, sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres”, realizada pela organização não-governamental (ONG) Think Olga em 2023, aponta que uma em cada quatro mulheres que cuidam de alguém está insatisfeita ou extremamente insatisfeita com sua saúde emocional.

O levantamento mostra quais as áreas da vida que as mulheres entrevistadas mais têm dificuldade para conciliar. Entre mães solo e cuidadoras, as principais respostas foram “ter tarefas de casa X trabalhar fora” e “ter alguém para cuidar X trabalhar fora”.

“Meu puerpério foi avassalador”, conta a psicóloga clínica e obstétrica Ghislayne Paiva, 43. Viver com a cobrança de ser a melhor mãe, melhor esposa e melhor dona de casa foi adoecedor. Mas ao longo da gestação e no pós-parto, ela não entendia muito bem as emoções que estava sentindo e as pressões que estava sofrendo.

Eu simplesmente fui vivenciando tudo que estava acontecendo e me sentindo um pouco fora do normal por ter tido uma bebê antes do esperado pela ciência médica, só cumprindo as normativas em relação à prematuridade, as idas aos especialistas. Eu fui vivendo muito no automático.
Ghislayne Paiva
Psicóloga clínica e obstétrica e mãe da Joana

Quando Joana nasceu, há 7 anos, Ghislayne trabalhava entre oito e nove horas por dia em uma empresa da qual foi demitida um ano após voltar da licença-maternidade. Depois disso, recalculou a rota e fez uma mudança profissional: trocou a psicologia organizacional pela clínica, com foco na perinatalidade e na parentalidade.

Tudo isso a levou a entender o que estava vivenciando, em um processo de autoconhecimento. Quando a filha estava com quatro anos e Ghislayne imaginou que a vida estava entrando nos eixos, veio o divórcio.

Mesmo com os desafios apresentados por cada fase da filha, um dos processos mais complexos para a psicóloga foi a separação. Foi preciso anos de estudo e terapia para entender o porquê de idealizar e romantizar tanto o casamento.

Em meio a esse processo, a rotina de Ghislayne ficou ainda mais sobrecarregada. Os cuidados permaneciam os mesmos, mas sem o companheiro para compartilhar as responsabilidades do dia a dia.

“Se antes as tarefas de casa relacionadas ao colégio ficavam três dias com o pai e dois dias a mãe, agora os cinco dias sou eu que ensino. [...] A terapia ajudou muito a ter esse esclarecimento, essa desconstrução. Mas infelizmente a terapia não alivia a sobrecarga, que é física. Isso é inevitável”, afirma.

Depois de um primeiro ano difícil, porém, mãe e filha vão vivendo, um dia melhor que o outro. “Vendo tudo aquilo que nós passamos e onde nós estamos hoje, o que conquistamos, nós só desejamos continuar crescendo cada vez mais. Hoje ela consegue ir para casa do pai, tem um bom relacionamento com ele. E o pai é muito participativo, ele realmente cumpre o papel dele”, finaliza.

Burnout Materno 

A psicóloga Layza Castelo Branco destaca que a responsabilidade sobre a educação da criança recai sobre a mãe, enquanto deveria ser compartilhada pela sociedade como um todo. Essa sobrecarga pode gerar o chamado burnout materno. Inicialmente utilizado no contexto das relações laborais, o termo está ligado ao esgotamento.

Tanto no ambiente corporativo quanto na maternidade, a psicóloga aponta um aspecto em comum: o excesso de trabalho acompanhado de desprazer e cobrança. Quando as atividades não são realizadas por escolha própria, e sim por imposição social ou por falta de colaboração do parceiro, há descontentamento.

Por mais que ela [a mãe] tenha algum excesso de cuidado com os filhos em determinado momento, se também tivesse cuidado para ela e reconhecimento, tudo isso poderia ser feito com mais leveza, com mais prazer.
Layza Castelo Branco
Psicóloga

Inclusive na maternidade solo, Layza argumenta que a tarefa poderia ser mais fácil para a mulher se ela encontrasse locais seguros onde a criança pudesse ser educada e receber os estímulos necessários para o desenvolvimento.

“Ser mãe solo não é problema se você tem em uma sociedade que olha para você, respeita você no lugar de mãe e de mulher e lhe dá condições para trabalhar e para que você confie que outras pessoas na sociedade, nas suas funções sociais, vão ajudar na educação do seu filho”, afirma.

Sinais de exaustão

Alves aponta a exaustão emocional, um distanciamento afetivo e a sensação de que o trabalho não é visto como importante como  alguns impactos negativos na saúde mental de cuidadores. “Quando se trata de um cuidador profissional, chamamos de baixa realização profissional. Quando se trata de cuidadores familiares, dizemos que é um senso de baixo reconhecimento”, diz.

Com isso, vem uma série de sintomas: redução da energia de trabalho, fadiga persistente, pensamentos negativos, sentimento de culpa e de fracasso, tristeza, desesperança relacionada ao futuro, alterações físicas — como de apetite e de sono —, dificuldade de concentração e de manejar a rotina e isolamento social.

Para quem se vê nessa situação, o médico indica buscar ajuda especializada com equipe multiprofissional. “Se trata de processos com repercussões sociais, econômicas, legais. Alguns pacientes precisam de interdição judicial. Então, tem todas essas situações, com repercussões sociais, legais, psicológicas e psiquiátricas.”

Já a psicóloga Layza Castelo Branco afirma que a educação é o caminho para mudar o contexto social de disparidade quando se fala de cuidado. O combate ao machismo, ao patriarcado e à violência contra mulher deve começar desde cedo. “É combatendo isso que vamos poder dar mais visibilidade à mulher, à importância dela na sociedade, ao cuidado que a nossa sociedade tem que ter com elas e a uma divisão mais justa”, defende.