Percorrer cidades brasileiras entre os meses de agosto e outubro de 1960. Foi esse o compromisso firmado e realizado pelo casal de intelectuais franceses Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, há 63 anos. Na jornada, uma das paradas foi o Ceará. À época, a filósofa francesa Simone de Beauvoir já era uma intelectual reconhecida internacionalmente.
Em Fortaleza, ela, que se consagrou historicamente como uma das grandes teóricas na formação do pensamento feminista, na reflexão sobre a condição das mulheres e no argumento contra a desigualdade de gênero, percorreu pontos da cidade, visitou a Universidade Federal do Ceará (UFC) e conheceu de perto áreas mais pobres na Praia de Iracema.
O casal veio ao Brasil em agosto de 1960. Mas só viajou ao Ceará em setembro daquele ano. Antes de chegar ao território cearense, eles participaram do 1° Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária do Recife, na Universidade Federal de Pernambuco. Lá, receberam o convite do primeiro reitor da UFC, Antônio Martins Filho, para visitar a instituição cearense.
De pronto, aceitaram, relatou o cronista que foi professor de Línguas e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC, Milton Dias, em um texto intitulado “O Homem Sartre”. Milton, falecido em 1983, inclusive, foi quem em setembro de 1960 serviu de intérprete para o casal de visitantes em Fortaleza, já que o escritor cearense dominava o francês.
A visita à UFC ocorreu no dia 26 de setembro de 1960. O Memorial da Universidade, no bairro Benfica, tem imagens e textos que registram esse fato. Nas fotos, Simone e Sartre aparecem ao lado de Antônio Martins Filho. Os escritores Milton Dias e Fran Martins também aparecem.
Documentos guardados no Memorial da UFC, conforme explica e apresenta o historiador Rafael Vieira, indicam que a reitoria, à época, realizou "expressivas homenagens ao casal". Dentre elas: um coquetel nos jardins, um Recital do Coral do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e a apresentação de números variados do Folclore nordestino.
Rafael relembra que embora à época Simone e Sartre já fossem intelectuais conhecidos internacionalmente, a cobertura do percurso feito especificamente no Ceará não foi tão intensa. O que, hoje, resulta em uma certa “escassez” de registros no momento. Na UFC, o material é guardado no Memorial.
Conforme documento da UFC, no dia 27 de setembro de 1960, Sartre fez uma conferência na Associação Cearense de Imprensa (ACI) e também participou de atividades do Diretório Acadêmico Clóvis Beviláqua, da Faculdade de Direito, e da União Estadual dos Estudantes.
Conhecendo Fortaleza
No texto “O Homem Sartre”, o escritor e cronista cearense, Milton Dias, que acompanhou Simone e Sartre e serviu como um tradutor, relata que “como estavam (Simone e Sartre) sempre festejados em salões faustosos dos restaurantes elegantes aos salões nobres da Reitoria - achei que deveria mostrar-lhes que Fortaleza não se limitava aos intelectuais, professores e estudantes que o cercavam”.
No dia do coquetel na Reitoria, Milton narra que foi pegar a dupla no Hotel San Pedro - prédio no Centro de Fortaleza -, e enquanto autoridades como governador e secretários de Estado os esperavam, ele levou o casal para uma determinada região do bairro: “Não hesitei em fazer descer o carro até a antiga ‘Cinza’ - e lá lhes mostrei as ‘respeitosas’ (em referência à prostituição). E lhes falei um pouco do problema da prostituição na nossa terra”.
No relato, Milton diz ainda que soube que no dia seguinte Simone e Sartre voltaram ao local e “pessoalmente fizeram pesquisas, indagações e observações. Assim era o interesse de ambos pela humanidade em todos os planos”.
O historiador brasileiro Luís Antônio Contatori Romano, em tese defendida em 2000 na Universidade Estadual de Campinas, buscou, através de fontes bibliográficas, reconstituir a viagem do casal de intelectuais pelo país. A pesquisa deu origem ao livro "A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960", lançado em 2002.
Na tese, Luís Antônio diz que Beauvoir relatou no livro “Sob o Signo da História", lançado em português em 1965, descrições do que viu no Brasil. Dentre outros pontos, diz a pesquisa, Simone mencionou que viu em Fortaleza, na área mais vulnerável, jangadas na praia, peixes e pescadores, botequins, barracos nas favelas e cenas de prostituição em bordéis.
Sertão Cearense
Outro ponto destacado no relato de Milton Dias é que Simone e Sartre chegaram a visitar também a cidade de Canindé, o que, diz o escritor, "lhes deu oportunidade de conhecer um pouco do sertão cearense”.
O pesquisador Luís Antônio também menciona que Beauvoir citou no livro “Sob o Signo da História" que conheceu na viagem ao Ceará um território com uma igreja, uma festa de São Francisco, um barracão de ex-votos.
Na menção, ela faz referência ao combate à fome e ao armazenamento de água na terra marcada por altas temperaturas e estiagem. No entanto, Simone não registra precisamente o nome desse local visitado.
Além dos territórios no Ceará, Simone e Sartre no Brasil passaram pelas cidades: Recife, Olinda, Salvador, Itabuna, Ilhéus, Feira de Santana, Cachoeira, Rio de Janeiro, Petrópolis, São Paulo, Santos, Araraquara, Belo Horizonte, Sabará, Congonhas, Ouro Preto, Brasília, Belém e Manaus.
Quem é Simone de Beauvoir
A filósofa existencialista Simone de Beauvoir nasceu na França, em 1908. Quando lançou “O Segundo Sexo”, ela ainda não se reconhecia como feminista. Essa identificação só ocorreu por volta da década de 1960. O pensamento da filósofa e sua vasta obra influenciaram o campo de estudos feministas por, dentre outros fatores, desconstruir os discursos tradicionais que explicam a identidade das mulheres com base na essencial natural e biológica.
Quando esteve no Ceará, Simone de Beauvoir já havia publicado, em 1949, um dos seus livros mais conhecidos e relevantes: “O Segundo Sexo”, no qual aborda, dentre outros pontos, a condição das mulheres na sociedade e a opressão feminina em um mundo dominado pelos homens.
Para a escritora, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da obra de Simone de Beauvoir, Juliana Diniz, a filósofa francesa “é uma das desbravadoras do chamado feminismo teórico”.
Ela explica que Beauvoir “foi capaz de produzir uma reflexão consistente e articulada sobre a condição feminina, elucidando muitas questões e formulando outras”.
O livro “O Segundo Sexo”, destaca a professora:
“criou não só categorias de análise para teoria, como estabeleceu novos termos a partir dos quais as mulheres passaram a pensar sobre sua condição e formular críticas sobre tudo que já se pensou e afirmou sobre a condição feminina”.
A obra, na avaliação de Juliana, também “ajudou a potencializar a agenda feminista, chamando atenção da opinião pública para as causas pelas quais ela se engajou em vida”.
Na atualidade, a obra de Simone é analisada também como detentora de uma delimitação histórica. O que faz com que precise ser interpretada considerando o tempo em que foi produzida. Mas há defesas que de as formulações teóricas da autora seguem atuais.
“O pressuposto básico de seu argumento não foi, a meu ver, superado: a ideia de que nossa condição não é definida pela natureza, unicamente, e sim pelo conjunto de limitações e possibilidades que o meio social, cultural e econômico nos oferece. Por isso ela afirma que não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Juliana ressalta que o olhar sobre a desigualdade de gênero possibilita que as mulheres questionem a estrutura social, gera engajamento em lutas coletivas e a conquista de espaços “antes interditados pela ideia de que as mulheres não são aptas, pela natureza, a pensar e tomar decisões”. Para ela, “esse pensamento, poderoso e revolucionário, permanece rigorosamente atual”, reforça.