Motocicletas com três - e até quatro - pessoas, todas elas sem capacete. Adolescentes pilotando motos sem qualquer segurança ou perícia. Ruas sem semáforos ou placas de sinalização. A narrativa descritiva que abre esta matéria não é fruto de um cenário hipotético. Essas irregularidades, flagradas por nossa reportagem, existem e são bem mais comuns do que se pode imaginar.
Conforme levantamento realizado pelo Diário do Nordeste, com base em dados fornecidos pelo Conselho Estadual de Trânsito (Cetran), das 184 cidades cearenses, 99 ainda não possuem o controle do trânsito, isto é, condutores trafegam em veículos livremente, sem obedecerem a qualquer normativa. Outras 12 estão em processo de integração.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) foi implantado em 1998. Desta forma, sem a municipalização do trânsito, estas cidades seguem há mais de duas décadas sem instrumento para fazer cumprir-se a lei.
Mas, por que, mesmo após 24 anos, tantos municípios ainda não se adequaram à lei? Quais são os principais gargalos existentes para instituir a municipalização do trânsito? Quais os prejuízos e riscos diante da não adesão às normas do CTB? E como avançar nesta questão que se arrasta a passo lentos?
Principais prejuízos
O principal "prejuízo" causado por um trânsito não municipalizado é à vida. Sem qualquer normativa, cresce de forma substancial o número de acidentes, sobretudo aqueles envolvendo motociclistas. No Hospital Regional do Cariri (HRC), por exemplo, quase metade de todos os atendimentos são decorrentes de acidentes com motos.
Entre 2019 e agosto deste ano, a unidade realizou 11.469 atendimentos, dos quais 5.667 foram a motociclistas, um total de 49,41%. O HRC atende um total de 45 cidades.
Esse cenário observado no maior e mais importante hospital do Cariri não é uma exceção. Nos últimos quatros anos (2018), as chamadas atendidas, em todo o Ceará, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) são majoritariamente de ocorrência envolvendo motos.
Os acidentes com motocicletas representam 17,4% de todas as chamadas do órgão, elas só ficam atrás para a classificação "não informado", com 23%.
Foram 31.922 chamados para atender acidentes com motocicletas, entre 2018 e agosto de 2022. Os dados são da plataforma IntegraSus, da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa).
O assessor jurídico da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), Hélder Diniz, reconhece que "um trânsito sem gestão e controle eficazes acentua a vulnerabilidade da população, pedestres ou condutores".
Deste modo, o representante externa, ainda, que "muito além da necessidade de fazer cumprir as determinações legais, [a municipalização] tem como principal objetivo contribuir com efetividade para reduzir os números assombrosos de acidentes, lesões e fatalidades decorrentes do trânsito, ampliando assim a segurança no trânsito nos municípios cearenses".
'O impacto é muito grande'
Na avaliação do ortopedista do HRC, Samir Samaan, grande parte destes acidentes envolvendo motociclistas poderia ser evitado.
Ele aponta que "a maioria [dos casos] são de homens entre 20 e 40 anos e muitos deles têm associação com o uso de bebida alcóolica e também com outras infrações, seja cortando ciclofaixas e passando em semáforo fechado". Com fiscalização, casos como estes poderiam ser evitados ou reduzidos.
Além de sobrecarregar o sistema público de saúde, Samir reforça que essas pessoas acidentadas passam um longo período de inatividade, o que afeta diretamente a renda familiar. "É uma situação muito complicada. Esses acidentes trazem impactos muito grandes, em diversos setores", completa.
'É preciso, primeiro, conscientizar'
O presidente do Conselho Estadual de Trânsito, Luiz Pimentel, considera que o ponto de partida é conscientizar às pessoas do quão importante e benéfico é municipalizar o trânsito. Segundo ele, instituir uma autarquia vai muito além de apenas fiscalizar ou aplicar multas, esse avanço é sinônimo de "segurança ao próprio condutor".
"É importante a gente mostrar que os benefícios [com a municipalização] são inúmeros e, o maior deles, é a segurança ao próprio condutor e, também, ao pedestre e a todos que compõem este universo", avalia Pimentel.
Para disseminar essa visão, o Cetran, com auxílio do Ministério Público Estadual (MPCE), realizam periodicamente ações nos municípios que ainda não estão integrados.
Na agenda estão visitas às escolas e empresas, blitz educativas e audiências públicas. "O objetivar é mostrar a importância da municipalização e incentivar os gestores a aderirem ao processo", acrescenta o presidente do Cetran.
O assessor da Aprece, Helder Diniz, reforça que mantém diálogos com os gestores e pontua que a "discussão referente à municipalização do trânsito é algo vivo e muito atual" por parte do órgão.
Desmitificar para avançar
Uma das principais justificativas dos gestores municipais para não se adequarem ao CTB diz respeito aos custos de implantação. Conforme apurou a reportagem, a maioria dos prefeitos considera ser alto o valor investido na criação de uma autarquia e, segundo acrescenta Pimentel, "também tem uma questão política envolvida".
Para ambas as justificativas, os quais Luiz Pimentel considera errôneas, ele diz ser preciso "um trabalho de desmitificação". "Embora, de início, os gestores tenham gastos, esse valor é revertido no futuro, com recursos oriundos de multas, regulamentação dos estacionamentos [como o Zona Azul], emplacamento dos veículos, dentre outros", aponta.
Quanto às multas, há uma ideia que os prefeitos podem perder votos e criar indisposição com seus eleitores. Esse entendimento está ainda mais presente nas pequenas cidades. Mas isso não é verídico. O papel do gestor também é garantir a segurança da população.
Pode haver sanções?
O promotor de Justiça e coordenador auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Cidadania do Ministério Público do Ceará (MPCE), Hugo Porto, alerta que sem cumprir a lei há mais de duas décadas, essas cidades sem o trânsito municipalizado podem sofrer sanções.
"A promotoria podem entrar com ações ou recomendações aos prefeitos", pontua. Dentre as irregularidades que podem ser atribuídas aos gestores, estão o ato de improbidade e, em casos mais extremos, até dano moral coletivo. "Essa medida depende da promotoria, mas, neste momento, nossa intenção é ser um agente interlocutor, pavimentando caminhos que levem ao avanço do processo de municipalização, acrescenta Porto.
Quando se comparado com a média nacional, os números do Ceará estão acima. Mas, não podemos nos pautar pelos outros, mas sim, pelo que preconiza a lei. O objetivo é municipalizar todas as cidades do Estado, como exige o Código [de Trânsito].
Esse esforço citado por representantes de órgãos como Aprece, MP e Cetran convergem em única justicativa: salvar vidas. Hugo Porto sintetiza que avançar na municipalização é sinônimo de vidas salvas.
"Este número de quase 100 cidades sem controlarem o trânsito é insuficiente. A vida de qualquer pessoa, em qualquer local deve ser preservada e, para isto, precisamos avançar nesta questão da municipalização", conclui o promotor de Justiça.
Consórcio pode ser alternativa
Como solução efetiva para reduzir os custos de implantação, o Cetran está desenvolvendo um projeto-piloto para realizar a municipalização de forma consorciada.
"A intenção é garantir meios de que, mesmo os pequenos municípios, consigam se integrar. O plano é criar uma autarquia regional que atuaria como guarda-chuva em uma determinada região. No lugar de criar várias autarquias, uma só responderia, de forma consorciada, às cidades limítrofes. Os moldes são semelhantes ao Consórcio de Saúde e o do Resíduos Sólidos", explica Luiz.
O Consórcio é uma modalidade de Integração. Foi criado um Grupo de Trabalho Interinstitucional com a finalidade de discutir, planejar e definir o processo de municipalização do trânsito no Estado do Ceará"
Ainda não há prazo determinado para a implantação efetiva, contudo, o presidente do Cetran antecipa que as cidades de Tauá e Acaraú serão as primeiras a receberem o projeto.
"A medida que ocorra a adesão do consórcio, outros municípios vão ter um exemplo a seguir e a tendência é de que ocorra máxima integração, de forma mais rápida, barata e menos burocrática", completa Pimentel.
Como se integrar?
Para as cidades se integrarem ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT), é preciso, primeiro, criar um órgão municipal executivo de trânsito, com estrutura para desenvolver atividades de engenharia de tráfego, fiscalização, educação e controle e análise de estatística, ou atuarem de forma conveniada ou consorciada, conforme a nova resolução autoriza.
Em seguida, o município deve ser encaminhado ao Cetran os seguintes documentos:
- Denominação do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário,
- Cópia da legislação de constituição da Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (Jari) municipal e de seu Regimento; endereço, telefone, correio eletrônico institucional do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, e sítio eletrônico (se houver);
- Fotos da fachada do prédio e das dependências, devidamente identificadas, dos veículos, caso existam, e de outros elementos julgados importantes para a análise dos trabalhos desenvolvidos para integração.
- Segundo a resolução do Contran, "os municípios que optarem por delegar a totalidade ou parte das atribuições municipais a outro órgão ou entidade integrante do SNT deverão encaminhar cópia do convênio firmado".
Já no caso da constituição de consórcio público, "caberá à entidade executiva de trânsito criada encaminhar todos os documentos relacionados neste artigo, em nome dos municípios que a compõem".
Uma vez preenchidos os requisitos para integração ao SNT, o órgão criado assume a responsabilidade pelo planejamento, o projeto, a operação e a fiscalização, não apenas no perímetro urbano, mas também nas estradas municipais. Cabe a Prefeitura desempenhar tarefas de sinalização, fiscalização, aplicação de penalidades e educação de trânsito.