Rendeiras de Aquiraz usam talento para transformar linhas em arte ensinada há gerações no Ceará

Tradição centenária é reconhecida Brasil afora, mas enfrenta desafio de continuar viva entre os mais jovens

Dona Branca conversa tranquilamente sem precisar olhar para as mãos. Ela manipula com habilidade 18 bilros feitos de coco, entrelaçando linhas de algodão em peças de renda. “Não precisa, já tá na cabeça”, justifica a rendeira de 62 anos natural da Prainha, em Aquiraz, no Litoral Leste do Ceará. 

Além de Branca, apelido de Maria Duciene Ferreira, há mais de 50 mulheres registradas na Associação de Rendeiras da localidade. Com imaginação criativa e muita paciência, elas levam adiante uma das mais tradicionais manifestações do artesanato cearense. 

Para desvendar essa arte, o Diário do Nordeste puxou os fios de lembranças dessas profissionais para a 5ª reportagem da série Mar de Leva e Traz, em que são misturadas as memórias e os diferentes usos do litoral.

O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.

Encontramos Dona Branca no Centro das Rendeiras da Prainha, unidade de referência reformada e entregue pelo Governo do Estado no fim de 2017. Ela escutava um programa religioso enquanto trançava um jogo de mesa colorido, sobre uma grande almofada - outro instrumento de trabalho das artesãs, geralmente preenchido com papelão, palha ou folha de bananeira.

Filha de mãe rendeira, ela conta que se interessou sozinha pela arte, já que a matriarca não tinha tempo para ensiná-la. A pequena de 8 anos recorria à observação das tias e até se arriscava a revirar os bilros enquanto elas não estavam por perto.

Quando elas saíam pra almoçar, eu ia mexer nos bilros. Fazia errado e desmanchava até fazer certo. Quando elas vinham, percebiam: ‘tu já andou aqui, num foi?’ Daí fui aprendendo. Usava um coco verde de almofada e fazia os bilros com palito da palha e cabecinhas de coco. A linha era fio de rede.
Maria Duciene Ferreira
Rendeira

Quando cresceu, Branca se profissionalizou, mas as difíceis condições financeiras da família - sem dinheiro até para comprar linha - a faziam trabalhar não para si, mas para revendedoras. “Pagavam o preço que elas queriam”, reclama. “A gente aceitava porque não tinha outro ganho. Hoje, graças a Deus, trabalho pra mim”.

Nascida e criada na Prainha, litoral leste do Ceará, a rendeira de mão cheia “tira” qualquer peça se tiver molde. “É o que eu sei fazer”, orgulha-se. Para além de profissão, a renda também é paixão: por vezes, só encerra a jornada às 22h, imersa naquela atividade. “Se a gente tá com algum problema, trabalhando esquece”, conta.

Arte da espera

Fazer renda requer paciência. Peças pequenas e mais simples demoram dias para serem finalizadas. Blusas, talvez um mês. Vestidos mais elaborados, de dois a três meses. A maior renda do país, também produzida por lá, demorou nada menos que sete anos e oito meses para ser concluída, em 2013, após passar pelas mãos de 40 profissionais. A peça media 1,13 km de extensão.

O trabalho de formiguinha tem a ver com o mar, como explica Maria Cleide dos Santos, 66, presidente da Associação de Rendeiras da Prainha e mestra artesã pelo Programa do Artesanato Brasileiro (PAB): é que a tradição parte da espera de mulheres pelos maridos pescadores durante sucessivos dias de pescaria.

“Vem das nossas raízes! Meu pai era pescador, saía cedinho, 5h, e eu ficava sentada vendo com a almofada no chão. De tarde, a gente ia pra praia, pra chegada das jangadas. O mar vinha quase perto das casas”, reconstrói.

O ofício foi aprendido com a mãe, que aprendeu da avó, também moradoras da Prainha. “Deixe minha almofada em paz!”, brincava a mãe, até que Cleide ganhou uma só pra ela. Daí em diante, a menina revezava lápis e caderno com os bilros.

“Não tive infância de brincar de boneca. Quando chegava em casa da escola, a almofada já tava preparada. Depois de um tempo, comecei a namorar e casei. Fiz minha casa e criei meus filhos, tudo com a renda. Tenho muito orgulho”, brilha os olhos.

A experiência deu-lhe reconhecimento entre as próprias rendeiras da localidade, que a elegeram “umas cinco vezes” presidente da Associação. Por 8 anos, lembra, ela precisou reivindicar a construção do Centro de Rendeiras e evitar que problemas recorrentes continuassem, como a sujeira e a chuva. 

“Aqui facilitou. Antes, a gente tinha que levar a mercadoria todo dia pra casa, hoje é só abrir o box. O sofrimento ficou no passado”, sentencia sobre os 35 boxes que funcionam diariamente, de 9h30 às 17h30.

Mesmo atarefada com burocracias, reuniões e participações em eventos, Cleide confessa: não passa um dia sem rendar. “O prazer maior que eu tenho é ficar na minha almofada. Renda é cultura que você faz com gosto, com amor. Às vezes, doem as costas do movimento, mas é uma terapia muito boa. Você esquece de tudo”.

Renda que gera renda

Francisca Olenir Vieira, 71, ecoa a mesma história que liga as artesãs: pai pescador, mãe rendeira, aprendizado desde menina, divisão do tempo entre escola e bilros. No caso dela, também foi costureira, professora, fiscal da prefeitura, telefonista e chefe de rouparia num hotel, mas nunca esqueceu a atividade da qual mais gosta. Por isso, ao ficar viúva, assumiu o box no Centro de Rendeiras.

No entanto, ela se percebe diferente das companheiras porque não só reproduz, mas idealiza e desenha formatos de rendas, alguns deles exclusivos.

“A renda me gera renda, né? Faço renda porque gosto e porque não preciso me sacrificar tanto. Mas não faço qualquer renda, eu crio peças especiais, produzo diferente, e é isso que me valoriza”, diz enquanto mostra um corselet de flores.  

Não à toa, ela considera seu processo como ler um livro. A atenção fica concentrada, a memória se ocupa, e “quanto mais eu crio, mais eu floresço minha cabeça”. Sua aptidão rendeu vários cursos de renda, mas nem todos os segredos foram compartilhados.

Futuro incerto

Branca, Cleide e Olenir são de uma geração de rendeiras já idosas para a qual não há sucessoras naturais. Em muitos casos, explicam elas, as filhas sabem o ofício, mas não desejam seguir essa carreira.

Olenir é entusiasta. Acredita que a arte da renda ainda vai durar muito tempo porque é tradição em litorais do mundo inteiro, embora tenha perdido espaço para a massificação das máquinas industriais. A saída para a valorização, segundo ela, está nos detalhes.

O trabalho feito à mão tem uma história pra contar, uma delicadeza, desde que você use desenhos e fios especiais. Tudo que você faz com amor fica bem feito.
Francisca Olenir
Rendeira

Branca é mais resistente: “as meninas de hoje não querem, querem vida fácil, não têm paciência”. “Às vezes, minhas peças passam meses sem sair. Elas vão querer esperar?”, questiona.

Líder das rendeiras, Cleide chega a sentir no coração. As críticas sobram até para o currículo das escolas, que mesmo cheio de disciplinas, não dedica tempo à cultura tradicional. Por isso, ela guarda o desejo de desenvolver um projeto com alunos adolescentes de Aquiraz, para essa herança “não se acabar”.

“É triste acabar nossa renda de bilro. Espero que tenham um pouco de consciência de que isso aqui é uma cultura muito importante para nós e para todos”.