'Por que perdi meu filho?' Mães e pais vivem dores e falta de acolhimento após óbito gestacional

Famílias cearenses falam sobre as angústias da perda gestacional e relatam como a chegada de 'bebês arco-íris' trazem esperança

Qual mãe está preparada para ouvir que o filho carregado na barriga perdeu a vida? “Eu pensei que era mentira, comecei a gritar muito. Não tinha mais sentido viver, tudo que a gente queria era o Heitor”, lembra Evanir Germano, de 33 anos. Naquele momento, o coração do primeiro filho dela silenciou e a dor tomou conta dos dias da família.

Histórias como a da engenheira agrônoma ecoam no Dia Internacional da Conscientização da Perda Gestacional ou do Recém-Nascido, neste 15 de outubro. A data, inclusive, será lembrada num evento em Fortaleza, na Praça Luíza Távora, na Aldeota, às 19h.

A forma como a perda gestacional é comunicada, o cuidado de não deixar a mulher em contato com mães que terão filhos vivos e o suporte psicológico evitam que a dor seja ampliada. Além disso, um ambiente de amparo e de palavras adequadas.

Todo ano, em média, cerca de 1.400 bebês cearenses saem do útero já sem vida. Entre janeiro e agosto de 2022, esse momento doloroso foi vivenciado por 831 mulheres que tiveram perda gestacional, conforme dados da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) .

Doenças autoimunes, como a Síndrome do Anticorpo Antifosfolipídeo (SAF) e as trombofilias podem ser causas para a perda dos bebês. Outros fatores como idade também podem interferir.

“A principal causa dos abortamentos precoces são as alterações cromossômicas incompatíveis com a vida e os mais tardios é a incompetência do colo de manter a gestação", explica Liduína Rocha, médica obstetra e integrante do Coletivo Rebento.

Show mais

Evanir descobriu a gestação durante a 10ª semana, “uma surpresa de Deus em 2019”, como se refere ao primeiro filho. Sem conhecimento sobre o quadro de trombofilia, que é um distúrbio na coagulação do sangue, ela acreditava estar num processo natural.

Só com 30 semanas surgiram os primeiros sinais de que algo não estava bem, com um inchaço em que nem a aliança cabia mais. “Com 33 semanas, minha pressão subiu e o médico não deu muita importância. Tratou como uma gravidez normal”, frisa.

Eu estava com barrigão, a gente continuou com o pré-natal, mas eu estava muito cansada e inchada. No dia 20 de abril, o médico não ouviu os batimentos do coração do Heitor
Evanir Germano
Engenheira

O Diário do Nordeste traz neste dia de conscientização sobre a perda gestacional, histórias de quem vivenciou o luto e agora alerta sobre a necessidade de debater o tema. Também são exemplos de esperança com a chegada de bebês arco-íris, que é o termo usado para o primeiro filho vivo após um óbito durante a gestação.

Noite chuvosa e o arco-íris

Quando as batidas do coração de Heitor não foram ouvidas numa unidade de saúde de Aratuba, onde a família vive, Evanir foi encaminhada para Baturité. Lá foi confirmada a morte do menino. Aquela foi uma noite marcada por chuva forte, que quando volta a acontecer ainda pertuba a mãe.

“Eu lembro que estava sentada chorando muito, imaginando como eu ia falar para meu esposo. Ele disse que na hora soube o que tinha acontecido, sentiu que o Heitor não estava mais entre nós. Eu tive que ser forte por mim e por ele”, analisa.

Em casa, desabei. Eu lembro que passou a noite chovendo e ele passou a noite rezando para não ser verdade, mas o bebê não mexia mais
Evanir Germano
Engenheira

O quarto e o berço estavam prontos. As roupas lavadas. A única incerteza, lembra a mãe, era apenas o momento em que o menino queria nascer. “Ele não foi planejado, mas foi muito amado e esperado”, conta sobre a expectativa ao lado do marido Erandir Lima.

Com a constatação do óbito, Evanir precisou voltar ao hospital para fazer o parto de Heitor num processo físico e psicologicamente desgastante. Entre dores e medicamentos, ela viu o filho nascer na madrugada do dia seguinte.

“Eu nasceu lindo, eu lembro muito do pezinho dele que era idêntico ao do pai”, conta ao reviver a cena. “Eu disse logo que eu queria ver. A enfermeira cortou o cordão umbilical, colocaram a roupinha, mas eu não tive a ação de colocar ele nos meus braços”, completa.

Evanir não teve a sensação de acalentar o filho no colo, mas uma alta carga emocional para administrar na mente. Nos corredores, o choro de bebês e mães deixando o hospital com os rebentos. Ela, na contramão, precisou ligar para a funerária e ver a preparação do velório.

“A gente ficou olhando tudo, mas não tive reação de pegar no menino. Hoje eu queria ter pegado antes de fechar o caixão. Eu toquei no rostinho e beijei a testa. Me despedi”. E assim foi o adeus.

Após a despedida física, o casal passou a vivenciar o luto. Evanir, em redes sociais, descobriu outras mães que compartilham a perda.

“Eu encontrei um grupo de meninas que tinha acontecido a mesma coisa, tive ajuda psicológica e emocional. Me deram todo um apoio e suporte”, lembra. Voltar ao trabalho, no entanto, reacendeu o sofrimento.

“O pessoal perguntava pelo menino e toda vez me dava uma dor no coração, porque eu tinha que dizer o que aconteceu”, descreve.

Em outros momentos, ouvir era o que machucava. “Me dava tanta raiva quando o pessoal dizia ‘foi porque Deus quis’. Como Ele vai querer que o filho da gente sofra?”, questiona.

Quando conseguiu, a engenheira se dedicou a descobrir o funcionamento do próprio corpo numa série de exames. “Meu esposo dizia que eu ia ficar sem sangue, mas eu queria uma resposta: por que eu perdi meu filho?”.

O diagnóstico de trombofilia ao mesmo tempo em que explicou a perda de Heitor possibilitou o tratamento para cuidar da gestação seguinte, que deu vida à Evelyn. A mulher buscou cardiologista, nutricionista, endocrinologista, psicóloga entre outros.

“Minha obstetra foi uma mãezona, até hoje a gente ainda se fala. No parto, ela contou uma história, e colocou músicas. Segurou minha mão na hora da anestesia”, lembra sobre o acolhimento necessário após ter crises de ansiedade com a proximidade de dar a luz.

O Heitor está aqui com a gente, não fisicamente, mas tudo dele faz parte. Eu pensava que com a Evelyn ia diminuir a saudade, mas não. A gente fica pensando ‘como seria se ele estivesse aqui?’
Evanir Germano
Engenheira

O amor que surge após a dor

Lucas e Tatiana já tinham tudo preparado para conhecer a primeira filha do casal, Beatriz, que foi acompanhada num pré-natal adequado. Aos 9 meses de gestação, a menina que recebeu o apelido de “boxeadora”, pelos socos na barriga da mãe, estranhamente parou de dar sinais.

Num exame para entender a situação foi constatado que a Beatriz, saudável durante todo o processo, havia tido as batidas do coração cessadas. 

“Minha esposa e eu nos vimos num limbo entre toda a dor e sem um espaço como tínhamos durante a gestação”, resume o analista de Recursos Humanos, Lucas Ramalho, de 34 anos.

Isso porque a alegria compartilhada de ter um novo membro da família deu espaço ao silêncio que uma morte tão precoce causa nas pessoas ao redor dos pais.

“Tivemos que fazer um parto para retirar a Beatriz do ventre e ligar para a família. Foi um momento doloroso, pensei que era o pior momento das nossas vidas”, descreve.

Existem diversos grupos sobre amamentação e cuidados na primeira infância e, de repente, quando a gente se viu nesse momento extremamente doloroso da perda, percebemos que não havia nenhum grupo
Lucas Ramalho
Analista de RH

Beatriz foi tocada pelos pais, que cantaram, beijaram a barriguinha da menina e foram embalados pela “presença de Deus naquele momento”, como lembra o pai. O velório, no dia seguinte, de modo algum enterrou a memória da menina.

Os pais, tocados pela necessidade de apoio ao perder a filha, começaram a pesquisar sobre o assunto e resolveram montar um grupo para reunir pessoas com vivências semelhantes. Assim surgiu o “Da Dor ao Amor”, que agora possui cerca de 65 membros ativos.

“Essa missão do grupo que a gente coloca na conta da Beatriz, o processo do luto continua até a gente ir embora e encontrar com ela no céu e o grupo ajuda muito a gente nesse sentido”, completa.

O projeto, que começou ainda no hospital, em março de 2019, ganhou desenho com apoio de outras iniciativas do Rio de Janeiro e Pernambuco. Em agosto daquele ano começaram as primeiras atividades com palestras sobre perda gestacional.

Logo, encontros presenciais e online - devido à pandemia - foram feitos com a divulgação de informações e depoimentos por troca de mensagens nas redes sociais. O símbolo do chá para Beatriz, uma abelha, passou a estampar a iniciativa cearense.

“A contribuição do grupo é justamente partilhar experiências, se acolher mutuamente. Eu acabo costurando as falas, no formato da roda da partilha, mas sempre damos prioridade para pessoas que não puderam falar”, explica.

Nenhuma dor é igual a outra, nenhum filho é igual a outro, mas a gente tem uma experiência com muitas similaridades. Entendemos e temos uma empatia muito maior por essa vivência
Lucas Ramalho
Analista de RH

As ocasiões são também um momento em que os participantes encontram espaço para lembrar dos grandes amores da vida, como Lucas define sobre os filhos. Isso porque, esses pais acabam se deparando com a falta de acolhimento e de diálogo sobre o assunto.

“A morte de uma forma geral é um tabu, mas neonatal é maior ainda. Se partilha uma gestação inteira, mas de repente não se fala mais aquilo. Como não falar de um filho? É isso que muitas pessoas vivenciam”, questiona.

Há pouco mais de um ano, Lucas e Tatiana estavam novamente num hospital para a chegada do bebê arco-íris que recebeu o nome de Rodrigo. “O parto do Rodrigo foi o melhor momento das nossas vidas, foi altamente humanizado”, pontua.

Durante a produção desta reportagem, a família brincava numa praça reunida pelo amor e pela memória da Beatriz. Como no dia da descoberta da gravidez do irmão, quando uma abelha invadiu o apartamento, os três carregavam o símbolo de esperança por onde andam.

Como acolher essas famílias?

Quando mães e pais descobrem a morte do filho durante a gestação, os primeiros cuidados acontecem com apoio de profissionais da saúde. O que deve ser feito?

"Garantir uma assistência respeitosa e adequada, com redução de danos, e aspectos mais sutis como empatia, considerando que existe um luto a ser vivido e que não deve ser minimizado", frisa a médica obstetra Liduína Rocha.

Caso seja um segundo caso de aborto, principalmente se for precoce, a especialista indica a necessidade de avaliação profissional com a pesquisa genética dos pais para entender as causas. 

A atenção para as mulheres deve partir de uma equipe multidisciplinar, como acrescenta. "Com cuidado centrado na mulher, quem vai dizer a melhor forma de atuar é a melhor, conforme seu contexto de vida e história. Cada equipe deve criar um ambiente para acolher e respeitar", frisa.

E, entre familiares e amigos, como deve ser a recepção? O tema não é visto pela sociedade, porque “é muito delicado, é pensar sobre o impensável, porque o bebê deixa um vazio”, analisa a psicóloga hospitalar Socorro Leonácio, da Maternidade Escola Assis Chateaubriand, parte do complexo da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Mesmo difícil de acreditar, essas famílias escutam frases como “ah, mas você pode fazer outro filho” ou “foi melhor assim” num descrédito à dor. Isso acontece longe do ideal que é a formação de uma rede de apoio, como explica a especialista.

“Precisamos reconhecer essa perda, que haja compreensão e espaço para as famílias vivenciarem essa dor, seja na gestação ou depois do movimento. Precisamos acolher, evitar essas frases, porque são projetos e sonhos interrompidos e que podem gerar uma sensação de culpa”, conclui.

Criação de lei sobre perda gestacional

Tramita desde junho deste ano na Assembleia Legislativa do Ceará o Projeto de Lei nº 245/2022 com objetivo de assegurar os direitos de mulheres que sofram perda gestacional ou neonatal na rede pública para evitar sequelas decorrentes do processo de perda.

O texto, recebido pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação, considera perda gestacional toda e qualquer situação que leve ao abortamento ou ao óbito fetal. No caso da perda neonatal, são considerados os bebês com até 27 dias de vida.

Conheça alguns pontos da proposta:

  • Receber suporte emocional
  • Ser acompanhada por uma doula, parteira ou enfermeira obstétrica
  • Não ser submetida a nenhum procedimento ou exame sem que haja o seu livre e informado consentimento
  • Permanecer em ala separada das pacientes que não sofreram perda gestacional ou neonatal
  • Ter livre escolha sobre o contato pele a pele com o bebê imediatamente após o nascimento

O Projeto de Lei também busca instituir a Semana Estadual de Conscientização sobre a Perda Gestacional, para realização de atividades na semana do dia 15 de outubro de cada ano.

Evento

O evento Onda de Luz e Amor, "Wave of Light" no inglês, acontece neste sábado (15) na Praça Luíza Távora com concentração às 18h e uma homenagem para os bebês que se foram por meio de velas às 19h.

Participam mães, pais, familiares e amigos no evento, também transmitido pela iniciativa Da Dor ao Amor. Outras informações no perfil do Instagram: https://www.instagram.com/dadoraoamor/