Por que, 4 anos depois, não se sabe onde estão crianças e jovens órfãos pela Covid-19 no Ceará?

Um casal e dois filhos saem de um lugarejo no interior do Ceará para tentar uma vida de oportunidades em Fortaleza. A mãe, faxineira, morre de Covid-19. O pai, vivendo de bicos e sem rede de apoio para cuidar das crianças, é obrigado a retornar à cidade natal.

Um menino com problemas de saúde é cuidado apenas pela mãe. Ela morre durante a pandemia, acometida pela Covid-19, e o pai se recusa a assumir o papel de cuidador. A avó materna fica com a guarda, retrucando: “é o jeito, mas eu não queria”. 

Uma professora da rede pública, mãe de quatro filhos, com idades entre 2 meses e 9 anos, fica viúva durante a emergência sanitária global. Sem capacidade financeira e tempo para dar conta de todos, ela abandona a profissão e entra no mercado informal.

Os relatos, colhidos pela psicóloga Ângela Pinheiro, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), são apenas três das centenas de histórias, talvez milhares, de órfãos da Covid-19 no Ceará. 

Em 2021, ano em que o Estado atingiu mais de 20 mil mortes pela doença, a pesquisadora ajudou a criar a Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes pela Covid-19 (AOCA). Três anos depois, mais de 200 entidades e 750 pessoas continuam mobilizadas para a garantia de direitos dessa população.

Afinal, sem cuidadores e representantes legais, ela tem acesso prejudicado a serviços públicos, como saúde e educação. Ou mesmo ao afeto, como explicita o caso da avó mencionada acima.

“É uma dimensão que precisa ser muito bem cuidada porque a criança pode representar um estorvo. Muitas vezes, isso se manifesta pela absoluta falta de condições materiais, porque como você vai cuidar de mais um numa situação que já é dramática?”, compreende Ângela.

Este é o especial Órfãos da Pandemia, que mostra o contexto social de famílias atingidas pela doença no Ceará e o andamento de políticas públicas criadas (ou não) para atender esse público.

Quantos órfãos têm no Ceará?

A projeção é que, no Brasil, mais de 190 mil crianças e adolescentes tenham perdido pai, mãe ou ambos para a Covid-19, segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Só no Ceará, um estudo do Consórcio Nordeste - autarquia interestadual formada pelos 9 Estados da região - estimou 5,6 mil pessoas nessa situação, ainda em 2021. 

No entanto, para a AOCA, devem existir de 8 a 10 mil crianças e adolescentes nessa situação. Segundo Ângela, nacionalmente, considera-se a proporção de um órfão a cada três óbitos pela doença, mas a estatística oficial esbarra na demora da gestão pública em encontrar respostas efetivas.

A Lei Orçamentária Anual (LOA) 2024, que descreve investimentos prioritários do Estado do Ceará, previu um montante de R$ 10 mil para a “realização do mapeamento de crianças e adolescentes órfãos em decorrência da Covid-19”, sob responsabilidade do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). 

José Meneleu Neto, titular da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc), afirma que o Ipece está avaliando metodologias e estimativas feitas a partir de artigos científicos reconhecidos e parâmetros do Consórcio Nordeste. 

Uma visão preliminar da pesquisa mostra que, mais do que se basear em indicadores epidemiológicos, “a questão exige uma estrutura de informação com capilaridade em nível municipal, capaz de obter cadastros com dados individualizados que possibilitem a execução da política pública”, explica ele.

Fica evidente a necessidade de articulação institucional entre diferentes setores para abarcar a complexa construção de um cadastro robusto capaz de atender à demanda da sociedade dentro dos marcos legais adequados.
José Meneleu Neto
Diretor de Estudos Sociais do Ipece

Atento ao tema, no mês de agosto, o Ministério Público do Ceará (MPCE) lançou um formulário para mapear crianças e jovens órfãos pela Covid-19, aproveitando a rede colaborativa das Promotorias nos 184 municípios do Estado. A iniciativa é inédita no país.

“Como há dificuldade para obter dados fidedignos e muitos órfãos ficam invisibilizados, entendemos que seria uma estratégia válida consultarmos a sociedade civil”, afirma o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij), Lucas Azevedo.

O levantamento final deve ser apresentado ao Estado e aos Municípios para sensibilizar os tomadores de decisões. “Continuamos cobrando porque, até hoje, não foi concretizada nenhuma política pública na prática para essa parcela da população”, lamenta o promotor.

Por isso, lembra ele, a orfandade foi incluída na rotina institucional da instituição. Casos identificados que chegam para novo atendimento logo são destinados à regularização legal.

Garantia de direitos

Um dos primeiros passos para acompanhar o tema ocorreu em agosto de 2021, quando o MPCE instaurou um procedimento administrativo para acompanhar a Política Pública de Atendimento a crianças e adolescentes órfãos por Covid-19 em Fortaleza, em três eixos:

  • identificação, localização e análise de direitos fundamentais básicos
  • segurança alimentar e material
  • saúde mental 

Em novembro do mesmo ano, lançou o guia “Órfãos da Covid-19”, reunindo orientações sobre serviços de regularização jurídica, educação, assistência social, saúde e combate à exploração. Naquele momento, a entidade já alertava para a “ausência de dados oficiais sobre a orfandade no Ceará”.

Em junho de 2022, a 77ª Promotoria de Justiça de Fortaleza também recomendou que a Rede de Proteção Integral à Criança e ao Adolescente identificasse e estimulasse a guarda de órfãos da Covid-19 por parte do atual responsável pela criança ou pelo adolescente. 

À época, conforme levantamento inicial realizado pela Coordenadoria Especial da Primeira Infância de Fortaleza (Cespi), haveria pelo menos 127 órfãos da Covid-19 entre 0 e 3 anos na cidade. 

No entanto, após visitas do promotor de Justiça Luciano Tonet às unidades de acolhimento do Município, não foram identificados órfãos pela doença. A conclusão foi clara: “se essas crianças perderam o único responsável legal ou ambos os genitores, elas se encontram em família extensa ou com terceiros”.

Logo, há a necessidade de regularizar a guarda delas para que continuem tendo acesso à educação, saúde e outros direitos, seja por estarem sob cuidado de outros membros da família ou de pessoas com quem possuem vínculos afetivos. 

Rede de atenção

Em resposta ao Diário do Nordeste, a Cespi da Prefeitura de Fortaleza identificou que a maioria das 127 crianças inicialmente mapeadas, em 2022, havia perdido um parente que compunha o grupo familiar, mas que não era responsável direto por elas. 

Atualmente, na realidade, há “31 crianças órfãs por conta da pandemia da Covid-19”, conforme os dados coletados no relatório do Núcleo Multidisciplinar de Atenção Individualizada. Segundo o órgão, eles são atualizados constantemente.

Ainda conforme a gestão municipal, as famílias receberam visitas técnicas e são acompanhadas pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e por agentes comunitários da Estratégia de Saúde da Família. 

No entanto, a professora Ângela Pinheiro critica que o monitoramento só levou em conta a demanda espontânea que chegou aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) da cidade. “Fortaleza tinha que ter pelo menos 82 CRAS, mas hoje tem 27”, afirma. Ou seja, a demanda real deve ser maior.

Sistema de Justiça vigilante

A procuradora de Justiça Isabel Pôrto, vice-ouvidora-geral do MPCE, acompanha a mobilização da AOCA há mais de um ano. Embora a pauta seja urgente, ela acredita que muitos jovens órfãos já saíram da faixa etária da adolescência “e ficaram prejudicados”. 

O ideal, segundo ela, é que o Poder Executivo determine uma lei específica para assistência aos órfãos. “O que se busca é uma legislação que permita que essas pessoas tenham suporte financeiro para sua subsistência, mas isso depende de sabermos quantas são”, observa.

O primeiro passo foi dado: no último dia 14 de outubro, o governador Elmano de Freitas enviou mensagem à Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) sugerindo a criação do Programa Ceará Acolhe. Entre os objetivos da iniciativa, está o pagamento de um auxílio mensal para o público que perdeu pai e mãe ou o cuidador principal, até completar 18 anos.

Faremos algumas ações a partir de novembro, como levar cards para o projeto Ouvidoria na Praça, para que as pessoas que tenham essa natureza de órfãos da Covid-19 se apresentem. Também fizemos um checklist para que os promotores dos Interior façam as suas respostas.
Isabel Pôrto
Procuradora de Justiça

Assim como o MPCE, a Defensoria Pública do Ceará (DPCE) entende a necessidade de se saber o cenário concreto do Estado. A assessora de relacionamento institucional Lia Felismino explica que a orfandade também foi incluída nos atendimentos dos núcleos de Fortaleza e interior do Estado e nos mutirões de regularização de guarda, mas como a atenção é pulverizada, não há como fechar um dado.

Após se integrarem à discussão da AOCA, há cerca de dois anos, os defensores pediram a inclusão de um novo campo no sistema de cadastro de assistidos para notificar casos de orfandade desde a porta de entrada.

“Enquanto a gente não tiver esse mapeamento, não temos como fazer políticas públicas direcionadas. Não sabemos realmente quantos, quem e onde estão essas pessoas para garantir o que a Constituição determina: a proteção integral”, finaliza.