População enfrenta filas e lotação em UPAS de Fortaleza: 'tem 30 pessoas na minha frente'

Profissionais e gestores atribuem sobrecarga ao enfraquecimento da atenção primária

Dezenas de pessoas lotando uma sala de espera, ao som de tosses e espirros. Algumas, cansadas, esticam as pernas sobre as cadeiras. Até cochilam. É um cenário comum às Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Fortaleza, as mais procuradas por pacientes – e, portanto, que mais sucumbem à alta demanda.

Entre fevereiro e março, o número de atendimentos apenas por síndromes gripais dobrou: passou de 8,6 mil para quase 18 mil, em 10 das 12 UPAs fortalezenses (as UPAs Edson Queiroz e José Walter não atualizaram os dados).

O quadro se soma às outras enfermidades e constrói cenários de lotação e longas esperas.

Nesta semana, o Diário do Nordeste percorreu três dos equipamentos da cidade para ouvir as principais queixas de usuários e conversou com especialistas para entender: por que a demanda é tão alta?

UPA do Autran Nunes, segunda-feira, 11h10. Cerca de 60 pessoas, de crianças a idosos, aguardam na emergência. Quase todas as cadeiras estão ocupadas, e uma sinfonia de tosses ecoa no lugar. A maioria usa pulseiras verdes: ali estão, então, os casos menos graves. 

Um dos pacientes, que não quis ser identificado, já aguardava há 2 horas. Segundo ele, quando chegou, “grande parte já estava” na unidade. A dona de casa Maria Conceição Rocha, 41, era uma dessas pessoas.

“Cheguei aqui não era nem 9h”, disse. “Tô com febre, moleza, tossindo. É bem essa virose da mosca. Mas muita gente aqui tá com a mesma coisa, aí dão a pulseira verde e a gente tem que esperar sem saber até que horas”, reclama.

UPA Cristo Redentor, segunda-feira, 12h50. A área de triagem está lotada. Em 2023, esta é a UPA que acumula o maior número de atendimentos por síndromes gripais em Fortaleza: foram 3.065 somente em março, de acordo com o Integra SUS, plataforma da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa).

Por lá, pacientes contabilizam esperas de até 3 horas pelo primeiro atendimento. O auxiliar de pedreiro José Soares, 53, relata à reportagem que já tentava ser socorrido pela segunda vez no dia: pela manhã, “cansou de esperar”; à tarde, mancando por sequela de um acidente de trânsito, retornou.

“Já é quase uma hora (da tarde) e ainda tem 30 pessoas na minha frente. Tô aqui com dor nessa perna, mas me deram a pulseira verde. Só tô aqui mesmo porque não tenho opção”, justifica.

Dezenas esperam, reclamam e buscam alguma previsão de atendimento. A mais óbvia é perguntar que lugar ocupa na fila. Uma funcionária do acolhimento informa que “só tem dois médicos atendendo”, e reforça: “a demora depende da gravidade do caso”.

UPA Praia do Futuro, terça-feira, 10h. Cerca de 20 pacientes preenchiam a sala de espera, uma movimentação baixa em relação às outras unidades visitadas pela reportagem. Das 3, foi a única UPA onde uma funcionária solicitou a saída de quem não fosse paciente.

Apesar da relativa pouca quantidade de pessoas, o tempo de espera entre a chegada do paciente e a saída ainda é longo, segundo o atendente de loja Adriano Lima, 35, que estava do lado de fora aguardando a esposa.

“Ela foi no posto, mas tava muito cheio. Superlotado e só tinha um médico. Se era de esperar lá, achou melhor esperar aqui, que tem mais médico”, pondera Adriano. “Já faz umas 3 horas que a gente tá aqui, mas ela já fez os exames que precisava”, acrescenta.

“Rodamos até 3 UPAs pra conseguir vaga”

A superlotação não afeta só usuários, mas os próprios trabalhadores. Uma fonte ligada ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Fortaleza foi categórica ao afirmar à reportagem: “praticamente todas estão superlotadas, é rotina não ter vaga”.

O profissional declara que, ao chegar à UPA, a equipe é informada de que a unidade não tem como receber o paciente, caso ele precise de leito. “Se ele conseguir andar, fica na cadeira de rodas, vai pra emergência e fica esperando”, explica.

Muitas vezes, temos que rodar 2 ou 3 UPAs pra conseguir vaga. A gente fica preso com o paciente na ambulância, rodando a cidade. Imagine sair do Jangurussu pro Bom Jardim, por exemplo. É assim. A área fica descoberta, sobrecarrega.
Profissional do Samu Fortaleza

A redução de casos de Covid, ele observa, havia “diminuído” o problema, mas “o quadro chuvoso, que aumenta dengue, virose da mosca e adoece os idosos acamados” fez os atendimentos dispararem novamente.

Além disso, o fechamento das emergências gerais dos Gonzaguinhas e a restrição de atendimento nas unidades do José Walter, da Barra do Ceará e no Frotinha de Parangaba, esta "atendendo apenas 'eixo vermelho'", “acabam também sobrecarregando as UPAs”.

“É uma demanda muito grande e faltam profissionais, não tem como fazer um atendimento adequado. O que falta é uma atenção primária de qualidade: muitas vezes vamos ao posto de saúde pra dar apoio às equipes”, pontua o profissional.

Postos de saúde em déficit

Para a secretária estadual da Saúde, Tânia Mara, é preciso “reorganizar a rede”. A gestora avalia que a sobrecarga dos serviços acontece porque a rede municipal está dificiente de equipamentos e de profissionais.

Tivemos, neste ano, o fechamento de 4 emergências de hospitais públicos do Município, e isso tem sobrecarregado nossos hospitais, que são terciários, de alta complexidade. Você não pode fechar um serviço sem ter pra onde encaminhar o paciente.
Tânia Mara
Secretária da Saúde do Ceará
 

Tânia atribui, ainda, outra falha à Prefeitura de Fortaleza: “corrobora a isso (superlotações) o fato de os postos de saúde estarem com déficit de profissionais para o atendimento”.

O médico Leonardo Alcântara, presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará, reitera que as UPAs são “unidades de emergência, mas quando há falta de leitos de retaguarda, viram pequenos hospitais”. Assim, “a equipe médica e os insumos são drenados, gerando outros problemas”, pontua.

“Há situações que vão ficando pra depois, porque a UPA não é para casos leves. O posto de saúde poderia dar uma vazão para isso, é uma estrutura primária. Seria uma solução para esses problemas menos graves”, avalia.

O que diz a Prefeitura

A reportagem questionou a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) sobre os problemas apontados pelos entrevistados, incluindo:

  • Insuficiência de profissionais para atender nos postos de saúde, que superlotam, e os pacientes acabam indo para UPAs;
  • Fechamento de 4 emergências públicas municipais, em 2023, sobrecarregando a estrutura terciária;
  • Impacto do fechamento das emergências gerais dos Gonzaguinhas de Messejana, José Walter e Barra do Ceará;
  • Restrição de atendimento no Frotinha da Parangaba só para pacientes de “eixo vermelho”, citada pela fonte ligada ao Samu Fortaleza.

Questionamos ainda o que está sendo feito para que a rede municipal “dê conta” da demanda, diante do aumento da procura; e para onde a demanda das emergências fechadas está escoando.

Em nota, a SMS destaca que “a Rede de Atenção Primária atua com 493 equipes de Estratégia da Família que atendem, diariamente, demandas programadas e espontâneas, de 7h às 19h, de segunda a sexta-feira”. 

A Pasta informa ainda que “a Rede Municipal de Saúde de Fortaleza se destaca mediante as demais capitais nordestinas, devido ao alto número de equipamentos: são 10 hospitais no total, divididos em materno infantil, traumatologia e pediatria”.

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consultas com médicos e/ou enfermeiros foram realizadas nos postos de saúde de Fortaleza em 2022, segundo a SMS.

Sobre a UPA do Cristo Redentor, mencionada nesta reportagem e de gestão do Município, a SMS garantiu que “atua com equipe completa, contando com 3 médicos clínicos, 4 enfermeiros e 8 técnicos em enfermagem, além de um médico chefe de equipe, para acompanhamento dos pacientes internados e/ou em observação”.

A SMS reforçou ainda que o Frotinha da Parangaba (Hospital Distrital Maria José Barros de Oliveira) “é um serviço de porta aberta para atendimento a pacientes com fraturas de médio porte”, e que está funcionando normalmente, com cerca de 70 profissionais de saúde.

Por que o atendimento nas UPAs demora

O tempo para atendimento é, no geral, a queixa mais frequente entre os usuários das UPAs.

Nessas unidades, a classificação de risco é feita de acordo com a gravidade do caso, sob o "Protocolo Manchester", que determina o prazo para a consulta: 

  • Pulseira vermelha: casos de emergência, atendimento imediato;
  • Pulseira laranja: casos muito urgentes, espera máxima de 10 minutos;
  • Pulseira amarela: casos urgentes, espera máxima de 60 minutos (1 hora); 
  • Pulseira verde: casos menos graves, espera de até 120 minutos (2 horas); 
  • Pulseira azul: casos leves, espera de até 240 minutos (4 horas). 

Pacientes que recebem pulseiras verde ou azul, conforme a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), “podem aguardar ou ser encaminhados para outras unidades de saúde”, como postos, por exemplo.

Em resposta ao Diário do Nordeste, o Instituto de Saúde e Gestão Hospitalar (ISGH), responsável por gerir 6 das 12 UPAs da cidade, reconhece que “houve um aumento na demanda de atendimento nos últimos dias”, por efeito das síndromes gripais e arboviroses.

Cada UPA tem atendido, em média, 500 pacientes por dia, segundo o ISGH. O dado se refere às unidades da Secretaria Estadual da Saúde (Sesa): UPAs Messejana, Praia do Futuro, José Walter, Canindezinho, Autran Nunes e Conjunto Ceará.

“Diante do momento, reforçamos o quadro de equipes e otimizamos processos de admissão, além de promover melhorias na triagem dos pacientes. Houve uma readequação de escalas médicas e de equipes de enfermagem”, diz a nota.

Ainda de acordo com o ISGH, as UPAs seguem portaria do Ministério da Saúde que estabelece que cada uma deve ter até 9 médicos durante 24 horas. “As UPAs estaduais possuem atualmente 12 médicos, ou seja, 3 a mais do que estabelece a referida lei”, acrescenta a nota.

O instituto finaliza reforçando que a prioridade clínica e a definição do tempo de espera pela consulta médica são definidos caso a caso. “Na atual conjuntura, a maioria dos pacientes que buscam atendimento nas UPAs não são casos graves.”