Ocupação ‘Deus é Amor’: quem são as pessoas vivendo no terreno 1 mês após retirada por donos

Idosos, gestantes e mais de mil crianças e adolescentes foram cadastrados pela Defensoria Pública do Estado e seguem reerguendo barracos

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(Atualizado às 08:42, em 17 de Dezembro de 2024)

Um terreno de 33,5 mil m², sem muros nem teto e tomado por ruínas, é a esperança de moradia para 795 famílias no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza. Lá, com madeira e lona, foram erguidos os barracos da ocupação Deus é Amor, onde a jovem Mayane Reis, 28, foi morta durante uma ação de retirada forçada, na madrugada de 10 de setembro.

Mais de 2,4 mil pessoas compõem a ocupação, segundo cadastro feito pela Defensoria Pública Geral do Estado, entre elas cerca de mil crianças e adolescentes, 150 pessoas com deficiência, 76 gestantes ou lactantes e 87 idosos – todos vivendo ou pretendendo viver em um local sem qualquer estrutura, sob o sol escaldante e o “sonho da casa própria”.

“Quem é que não tem esse sonho?”, questionou Elenir à repórter, durante ida do Diário do Nordeste ao local, na última quarta (2). Em plenos 66 anos, a idosa tem dormido no barraco que a filha ergueu, porque “ainda não teve condições de levantar” o próprio. “É uma dormida assustada: com um olho aberto e um fechado”, confessa.

O dilema entre dormir lá para “garantir o pedacinho de terra” e sair por temer pela própria vida é comum a vários relatos. “Quem tá aqui tem um sonho, passa o dia todinho aqui no sol tentando ajeitar o barraco. A gente tá se levantando aos poucos. Não é fácil estar aqui não”, reforça uma jovem que preferiu não ser identificada.

O desconforto é compartilhado pela família de Ana, 59, que divide um barraco com o esposo, os netos e a mãe de 82 anos de idade. “A barraca é da minha mãe. Tamo ajeitando ainda pra poder dormir, mas é difícil. Madeira e lona estão caros”, relata.

As quase 800 famílias que não conseguem equilibrar nas contas os verbos morar e comer ilustram, de forma simples, o déficit habitacional de Fortaleza – dado que torna evidente uma capital pautada por um abismo de desigualdade social.

“Se a gente não precisasse, por que ia estar se arriscando?”

Um dos perfis mais comuns de quem vive na ocupação pode ser resumido no rosto de Aldenira Santos, 36: mãe de dois filhos que viu o custo de vida subir em uma velocidade impossível de acompanhar.

“Eu pago aluguel há 22 anos. Antigamente, era R$ 250. Foi aumentando, tá em R$ 550. Vai chegar uma hora que a gente não vai ter o que comer pra pagar”, desabafa. A renda média familiar da comunidade, segundo os dados coletados pela Defensoria, é de R$ 878. Mais de 500 pessoas trabalham no mercado formal ou informal, e cerca de 60% das famílias recebem algum benefício do Governo.

“A gente tá aqui porque precisa. Se não precisasse, por que ia estar se arriscando?”, diz Aldenira, como quem suplica por se explicar ao se ver julgada por um tribunal anônimo e hostil.

Muitos julgam a gente na internet, julgam mesmo. ‘Entram no que é dos outros, invadem’. Você não sabe a nossa situação. Julga porque tem de onde tirar, de onde sobreviver. Provavelmente tem uma vida boa, graças a Deus. Nunca olhou pro filho pedindo um danone e não pôde dar. Julgar é fácil.
Aldenira
Ocupante da Deus é Amor

Olhar para os filhos e pensar na próxima refeição também é rotina para Samara Moura, 29, que pretende deixar a casa onde vive de aluguel e habitar o barraco que montou na ocupação, dividido com os filhos de 3, 5, 11 e 13 anos de idade.

“Estamos tentando se reerguer. Tem muita família que já tá se mudando, a maioria mora de aluguel. Passo o dia no meu barraco, não durmo porque minha bebê tem asma e, depois do que aconteceu, fiquei com medo de voltar a dormir aqui com ela. Mas vamos reservando nosso lugar”, conta, relembrando a noite da morte de Mayane.

Nesta quinta-feira (10), quando se completa 1 mês da partida da jovem, familiares e amigos realizarão uma homenagem "como forma de lembrar às autoridades de que é necessária justiça para os responsáveis por esse ato doloroso", escreveu a irmã dela num "convite" coletivo.

As investigações sobre o assassinato de Mayane ainda estão em curso. Em nota, a Polícia Civil do Ceará (PCCE) informou que no dia 12 de setembro, dois dias após o crime, foram cumpridos 4 mandados de busca e apreensão em endereços de suspeitos da desocupação. Um homem foi preso em flagrante por posse de arma de fogo.

A reportagem também contatou a assessoria de comunicação da Fiotex, empresa proprietária do terreno no Carlito Pamplona, para saber:

  • Como estão os trâmites para reintegração da posse; 
  • Se foi aberta ação judicial com este fim; 
  • Se a Fiotex já tem planos para o local; 
  • Se há algum diálogo com os ocupantes. 

Em resposta, a empresa mencionou apenas que “ainda está analisando as medidas a serem tomadas”.

85%
dos ocupantes da Deus é Amor não são cadastrados no programa Minha Casa Minha Vida, segundo levantamento da Defensoria Pública.

Assistência social

O cadastro das famílias foi realizado pela Defensoria ao longo de três dias, ainda em setembro. A própria comunidade já havia improvisado um registro, em cédulas de papel, que foram recolhidas pelo órgão estadual para garantir que apenas quem já estava no local fosse assistido depois.

Além de cadastrar as famílias para rastrear quais as principais necessidades da comunidade, a Defensoria Pública, junto à Secretaria Estadual dos Direitos Humanos (SDH), têm acompanhado a situação da ocupação, como garante Elizabeth Chagas, defensora e supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham).

“Se elas vão ficar lá não é uma decisão nossa, não cabe a nós. Se for judicializado, faremos a defesa da comunidade. Pretendemos verificar a realidade dessas famílias e ver que políticas públicas podem ser acionadas, inclusive de moradia”, frisa. 

A defensora pública destaca que o dado mais alarmante foi o número de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade socioeconômica entre as famílias da ocupação.

“São mais de mil, é um dado que demonstra que a juventude está exposta. O número de mulheres acima de 18 anos também demonstra o perfil. Precisam de providências além da moradia. Se ficarem lá ou não, precisamos assisti-los”, pontua Elizabeth.

Questionada sobre possível ação de reintegração de posse por parte da Fiotex, a defensora informou que “não chegou nenhuma intimação lá para a comunidade” e que “não há nada relativo a essa informação ainda”.