Médicos e enfermeiros do IJF compram insumos e remédios para ajudar pacientes, relatam lojistas

Acompanhantes chegam a buscar pedaços de papelão nas lojas para usar como ‘colchões’

Acompanhantes e profissionais de saúde do Instituto Dr. José Frota (IJF), maior hospital de urgência e emergência de Fortaleza, têm usado recursos próprios para comprar insumos básicos de atendimento aos pacientes. Lojistas do entorno da unidade relatam que venda de itens tem crescido semanalmente.

“Geralmente, os médicos e enfermeiros vêm comprar dipirona, paracetamol, remédio de enjoo, dor de cabeça… Touca, propé, máscara, luva. Saíam dois pacotes de toucas na semana, agora saem 20 pacotes com 100 unidades cada”, relata Lucas Araldi, 28, vendedor de uma farmácia e loja de produtos hospitalares.

A atendente de loja Cristiane Pimentel, 47, que trabalha no entorno do IJF “há muito tempo”, descreve que alguns profissionais de saúde já se tornaram clientes, e “compram materiais pra não ver o povo morrer ou não reaproveitar coisas como atadura”.

“O que falta no IJF é medicamento, material de limpeza, assistência pra quem está acompanhando, principalmente pra quem vem de fora. O pessoal vem comprar gaze, atadura, seringas, cateter, escalpe, algodão... E até papelão pro acompanhante dormir”, lamenta Cristiane.

A recepcionista Mônica Souza, 52, confirma que precisou comprar dipirona, esparadrapo e até gaze para a mãe de 95 anos, que quebrou o fêmur e passou 20 dias hospitalizada no IJF. “Minha mãe estava com dor e o médico disse: ‘aqui não tem uma medicação (sequer), eu posso receitar e você pega no seu posto’.”

Segundo Mônica, foram múltiplas as situações em que viu profissionais de saúde “improvisando” soluções para a falta de materiais. “Não tinha absorvente pós-cirúrgico. Eles dobravam a fralda e botavam dentro de outra, um ‘bolo’. Doía, machucava. Eu comprava pra minha mãe, mas tinha gente sem condição”, diz.

“Os funcionários estavam rasgando as fraldas pra pegar o algodão de dentro, molhar e banhar os pacientes. Tem dias que nem banho tinha, porque não tinha lençol pra trocar”, descreve. Ela mesma, aliás, precisou improvisar uma dormida. 

“A gente dorme no chão, num papelão. Tem só uma cadeira plástica e falta cobertor até pros doentes, e não pode entrar com cobertor de casa. Faz muito frio, fiquei doente, peguei uma gripe muito forte”, relembra sobre os 20 dias da internação da mãe.

A cuidadora profissional Cássia Braga, 33, carregava uma sacola com óleo de girassol, esparadrapo, micropore e outros insumos para o paciente que acompanha no IJF, um idoso com 60% do corpo queimado.

“Semanalmente temos esses custos com materiais. Eles pediram pra gente comprar até clister, um material simples e obrigatório de o hospital ter. A questão da saúde, medicamentos, qualidade da alimentação de acompanhantes… Tudo está precário”, lamenta.

‘Médica comprou toucas pra distribuir’

Além de insumos básicos para os pacientes, os próprios profissionais de saúde têm desembolsado recursos para se protegerem no ambiente hospitalar. Trabalhadores com jalecos e uniformes com o brasão da Prefeitura de Fortaleza são presenças comuns entre os clientes, segundo os lojistas.

Um deles, que preferiu não ser identificado, diz que, além de seringas, ataduras, algodão e outros objetos, as luvas e toucas estão entre os itens mais comprados pelos médicos e profissionais de enfermagem do IJF. 

“Teve médico que comprou 20 esparadrapos aqui, e disse que ‘não dava pra uma rodada lá dentro’. A gente até fez um desconto. Tem médico que vem comprar gaze, ‘uropen’ tem demais”, contabiliza.

Outro lojista ouvido pela reportagem afirma que os médicos e enfermeiros “não falam muito”, mas buscam muito “material para uso próprio, como máscaras, luvas e toucas, EPIs no geral”.

“Teve uma médica que comprou cinco pacotes com 100 toucas cada um. Comprou 500 toucas pra distribuir lá dentro”, conta a lojista.

O que diz o IJF

O Diário do Nordeste contatou o IJF para saber:

  • Se o hospital está ciente desse desabastecimento geral de insumos básicos; 
  • Quais as causas dessa falta massiva de itens e o que tem sido feito para saná-la; 
  • Que assistência tem sido dada aos acompanhantes e pacientes nesse cenário; 
  • Se há um “caixa informal” para que médicos e enfermeiros comprem pessoalmente os itens faltosos – ou se eles têm, de fato, usado recursos pessoais para isso. 

Não houve retorno até esta publicação.

Força-tarefa emergencial

Nessa quinta-feira (21), o prefeito José Sarto (PDT) anunciou a criação de uma força-tarefa imediata para garantir medicamentos e insumos que faltam no IJF. Um grupo formado por representantes da Secretaria da Saúde, da Secretaria de Finanças, da Secretaria de Governo e da Procuradoria Geral do Município assumirá temporariamente a gestão do hospital durante a crise. Segundo o chefe do Executivo Municipal, será dado "suporte e agilidade" às compras e aos pagamentos do IJF.

‘Crise do lençol’

A precarização do funcionamento do maior hospital municipal de Fortaleza, com quadros que têm levado inclusive à suspensão de cirurgias, foi denunciada pelo Diário do Nordeste na última segunda-feira (18).

Denúncias de usuários, sindicatos e profissionais que atuam na unidade sobre a situação provocaram uma visita de representantes do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza (CMSF) à unidade, na manhã dessa terça-feira (19).

O objetivo da entidade foi colher informações e cobrar medidas imediatas para garantir as devidas condições de assistência, dentre as quais:

  • A construção de um plano de ação imediato que garanta a reposição de insumos e medicamentos; 
  • O pagamento de trabalhadores e cooperativas; 
  • A formação de comissão de acompanhamento das ações; 
  • E a transparência orçamentária.

No último dia 7 de novembro, o Ministério Público do Estado do Cará (MPCE) ingressou com uma Ação Civil Pública após a constatação dos problemas de abastecimento de remédios e insumos na unidade. 

Caso seja acatado pela Justiça, o processo pode bloquear R$ 20 milhões da Prefeitura de Fortaleza e tornar réus tanto o prefeito José Sarto quanto o secretário municipal de saúde, Galeno Taumaturgo, e o superintendente do hospital, José Maria Sampaio Menezes Júnior.