Embora o número de matrículas tenha crescido nos últimos anos, a espera por vagas na Educação Infantil é um problema recorrente em Fortaleza e piorou em 2022. Neste ano, 15,5 mil crianças que deveriam estar matriculadas nas etapas creche e pré-escola não foram atendidas - número 60% maior do que a demanda registrada em 2021.
Os dados são da própria Prefeitura de Fortaleza, compilados pela Coordenadoria de Planejamento (Coplan) da Secretaria Municipal de Educação (SME), e foram obtidos pelo Diário do Nordeste pela Lei de Acesso à Informação (LAI).
Por lei, creches e pré-escola devem ser ofertadas pelas Prefeituras Municipais, com a finalidade do “desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96).
Na creche, destinada ao atendimento de crianças de 0 a 3 anos, a matrícula é opcional, mas é a que registra maior demanda não atendida na Capital cearense: foram 14.207 cadastros não efetivados. O Plano Nacional de Educação (PNE) estipula que, até 2024, metade das crianças dessa faixa etária seja matriculada.
Já na pré-escola, cuja matrícula é obrigatória desde 2016, 1.336 crianças de 4 e 5 anos não foram matriculadas neste ano. A meta do PNE é que o ensino dessa etapa seja universalizado daqui a dois anos.
Enquanto a política pública não sai do papel, Camile (nome fictício a pedido da entrevistada) aguarda uma vaga para a filha há mais de um ano, em uma unidade de ensino do bairro Carlito Pamplona.
“A escola falou que tinha muita criança na fila de espera e não queriam colocar. Achei que ia surgir a vaga nesse ano, mas até agora estou no aguardo. Disseram que pode dar certo quando ela completar 4 anos, e vai direto para a pré-escola”, explica.
Em janeiro de 2020, a 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza determinou que o Município garanta o direito de acesso à educação infantil em creches com crianças de zero a 5 anos, inclusive construindo berçários, quando necessário.
Além disso, a decisão estabeleceu que a Prefeitura deve ampliar, progressivamente, o número de vagas nas creches para contemplar crianças que aguardam nas listas de espera.
O promotor de Justiça de Defesa da Educação Elnatan de Oliveira, do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), reconhece que houve avanços com a construção de novos centros de educação infantil, mas que o Município é “devedor” da resolução desse problema histórico.
Temos testemunhado o acréscimo de equipamentos para minimizar, mas temos que ser realistas de que nasce muita criança na periferia e esse déficit não é de agora, é de mais de 20 anos atrás.
Além do crescimento da demanda, ele menciona problemas com “populações flutuantes”, ou seja, que costumam migrar para novas regiões da cidade, como residenciais populares. “Há um afluxo onde os equipamentos se tornam insuficientes para atender àquele número de crianças”, explica.
Segundo Elnatan, o MPCE tem recebido várias demandas individuais para a garantia de vagas na Educação Infantil. Nesses casos, a Prefeitura é acionada para efetivar o atendimento. Ele pondera, contudo, que o maior alcance “é um trabalho a médio e longo prazo”.
Longa fila de espera
Dalila Saldanha, titular da SME, ressalta que a Prefeitura continua o projeto de protagonismo da oferta da Educação Infantil. Em 2014, segundo o Censo Escolar, a rede municipal atendia a 39% da etapa creche, contra 61% da rede privada. Em 2021, no último levantamento, o dado se inverteu: 67% do atendimento é oferecido pelo poder público.
“Isso indica que o poder público está investindo, é uma expansão continuada”, diz. Porém, ela não nega a longa fila de espera. “Temos buscado cada vez mais ampliar o atendimento, mas ele está muito além dos esforços que a Prefeitura poderia fazer”.
Segundo a gestora, cada cadastro possui indicadores de vulnerabilidade, dando prioridade a critérios como deficiência, orfandade, estar na linha de pobreza, integrar programas sociais, morar em abrigo ou casa de acolhimento.
Temos muitos não atendidos na fila de espera que têm renda, não estão na linha da pobreza e não estão em programas sociais. Há uma série de critérios que precisamos cumprir, e temos um acordo para atender o vulnerável. Temos que eleger critérios dentro dos critérios.
Dalila enumera a ampliação do parque escolar para dar vazão à demanda: nos últimos dois anos, foram entregues 22 CEIs, com quase 4 mil novas vagas, e mais 3 devem ser abertos até dezembro. Entre 2013 e 2022, a quantidade de creches conveniadas aumentou de 48 para 108, e o de CEIs, de 90 para 182.
CEIs devem ser abertos até o final da atual gestão, de acordo com a SME, com previsão de atendimento de 10 mil novas vagas.
A secretária pontua que a etapa creche tem projeto a longo prazo, ao contrário da pré-escola que já está “praticamente universalizada”. “Para quem está fora, temos um processo de busca ativa para achá-las”, afirma.
Represamento é o maior em 4 anos
Quem deveria estar na pré-escola, mas aguarda na fila de espera há dois anos é Anderson Kaleb, de 4 anos, no bairro Planalto Ayrton Senna. A mãe dele, Thalyta Pereira, conta que, mesmo sem condições financeiras, matriculou o garoto numa escola particular “para ele não ficar atrasado”. Ainda assim, continua tentando a vaga na rede pública.
“Vejo que nessa escola, ele não está tendo um bom desempenho e tô na luta tentando para o próximo ano. Além da matrícula, tem as mensalidades que todo ano aumentam, merenda escolar que tenho que mandar todos os dias, fardamento e os livros, que não tenho condições”, lamenta Thalyta.
Conforme o levantamento da Coplan, o resultado de cadastros não atendidos de 2022 é o pior desde 2019, período solicitado pela reportagem. Naquele ano, 12.803 crianças não tiveram o cadastro efetivado. Todas elas demandavam a etapa creche.
Para o ano letivo de 2020, primeiro da pandemia da Covid-19, mais de 9,7 mil crianças não foram atendidas. No ano seguinte, o número oscilou pouco, para 9,6 mil. Nos dois períodos, a maior demanda foi novamente por creches.
"Ciclo de vulnerabilidade social"
Laryssa Figueiredo, assessora técnica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), confirma que a efetivação das matrículas é a maior dificuldade relacionada à educação infantil atendida pela entidade, especialmente pelo cenário de empobrecimento da população no pós-pandemia.
O perfil geralmente é o mesmo: mães solo, geralmente com mais de um filho, que já têm uma sobrecarga muito grande e não conseguem acionar o poder público da maneira que gostariam. “Várias delas perderam seus empregos ou eram autônomas e perderam seus clientes”, ilustra.
Outro problema que tem surgido é relacionado às disputas territoriais. Algumas vezes o poder público até promove a matrícula, mas a instituição não pode ser frequentada pela criança ou pela família para não se colocarem em risco.
A secretária Dalila Saldanha, por outro lado, percebe que “o acesso à escola, em sua grande maioria, tem sido facilitado, mesmo com todo esse cenário”. “O papel da educação e do poder público é transformar em território pacífico onde todos possam transitar. A escola tem tido essa credibilidade”, garante.
Laryssa defende que, além da ampliação das vagas na Educação Infantil, a Prefeitura dê prioridade à execução do orçamento para a educação previsto para 2023.
“A criança fora da escola perpetua um ciclo de vulnerabilidade social tanto para ela como para a família. Além da função educacional e de dar dignidade para as mães que são chefes de família, também é o momento de garantir desenvolvimento interpessoal das crianças. Passamos por uma pandemia que mudou todas essas relações”, lembra.