A família do menino de 7 anos apontado como curandeiro em Cruz, interior do Ceará, não aguentou à pressão colocada sobre a criança e deixou a casa onde eles moravam e ocorriam os atendimentos, levando o menino junto. As informações são da mãe da criança, que deu entrevista à reportagem do Sistema Verdes Mares.
“Não estávamos mais tendo liberdade e sexta-feira (23) foi suspenso tudo (rezas coletivas). Ninguém respeita que é apenas uma criança. Estamos exaustos e tivemos até que viajar, abandonar o que é nosso”, resumiu a mãe da criança ao Sistema Verdes Mares.
Há algumas semanas, na porta da casa da criança longas filas de espera eram formadas por pessoas em busca de orações de cura. Isso porque a fama de milagreiro da criança começou a se espalhar pela região depois que pessoas anuciaram ter sido curadas pela criança.
O desgaste mental da família foi acentuado com a criação de uma campanha falsa de arrecadação de dinheiro, que agora é investigada pela Delegacia de Cruz. Mesmo com a saída do menino, novas visitas são feitas à residência nesta segunda-feira (26).
Sair de casa foi uma decisão da própria família, mas o Conselho Tutelar e a Polícia prestaram assistência, como acrescentou a mulher que terá a identidade preservada para proteger também a criança. “Realmente estava ficando muito difícil", completa.
Era toda hora (pessoas) ali fora, o povo não respeita, dia e noite. A gente não estava conseguindo mais dormir e demos um basta, porque era uma criança que não estava tendo mais infância e nem pra escola ia mais
Essa proteção deve continuar nos próximos anos. A mãe informou que o menino deve se dedicar aos estudos e manter uma rotina tranquila até que possa decidir sobre os atendimentos religiosos.
"Até 17 anos ele vai ter a vida normal, a doutrina não acaba, e vai estudar. Com 18 anos, se quiser seguir o caminho dele, vai ser bem diferente e eu não vou me preocupar, porque ele já saberá exercer", explica.
Campanha falsa
O caso do menino despertou a atenção da Polícia nos últimos dias, como contextualiza Júlio César Chiarini, titular da delegacia do Município. O delegado visitou o local devido ao aumento das visitas e da exposição da criança.
“Pedi para uma inspetoria apurar o que estava acontecendo e logo na sequência a mãe procurou a gente para informar que tinha uma pessoa pedindo dinheiro nas redes sociais talvez de má fé”, destaca sobre a arrecadação de dinheiro por meio do PIX.
A mãe do menino também usou as redes sociais para desmentir a campanha falsa e frisou não autorizar e nem aceitar qualquer tipo de doação. "Fiquei muito abalada e triste, estou aqui me expondo nas redes sociais para corrigir essa grande mentira", disse.
Eu não preciso usar o meu filho em hipótese alguma. Ele é uma criança de luz, mas eu quero deixar bem claro que quem cura é Deus e não o meu filho. Ele é só um instrumento para servir as pessoas, que vêm até ele porque têm fé
Saída de casa e novas visitas
Após ver a vida “mudar completamente”, como definiu a mulher, a família buscou ajuda da Polícia, inclusive, para abandonar a casa.
“A mãe e o pai da criança conversaram comigo, falaram que estavam pensando nessa possibilidade, e pediram ajuda com relação à segurança deles, porque estavam com medo do deslocamento”, detalhou o delegado.
Júlio observou um grande número de pessoas em busca de atendimento “a qualquer custo e em qualquer horário” num acúmulo de transtornos para a criança.
“Fiquei espantado no dia em que fui lá, porque tinha um movimento e um fluxo grande de carros. É difícil a gente julgar esse tipo de situação, porque as pessoas têm carências e isso mexe com o emocional, mas fora desse aspecto a gente tem que ir para um lado racional”, pondera.
Mesmo com a decisão da família, novas visitas são feitas à casa onde uma multidão costumava se formar na porta. O menino, nos últimos dias, fazia reza coletiva apenas um dia na semana, mas a insistência era diária.
“Hoje (26) eu já recebi um relato que as pessoas continuam indo no imóvel. Os avós da criança moram lá perto e estão sofrendo com isso também, porque as pessoas não entendem e pressionam eles - alguns até faltando com educação”.
Como tudo começou
Aos 2 anos de idade, segundo um familiar, a criança passou a apresentar os primeiros "sinais de seu dom". Ele ia para debaixo da mesa de casa e dizia que estava conversando com seus "anjos de cura".
Aos 3 anos, o menino disse que iria curar um tio doente, que, após as rezas da criança, acabou ficando bom da doença. Depois disso, o menino passou a rezar nas pessoas, cerca de 5 por semana. Em março deste ano, começaram os atendimentos maiores.
Mas foi em agosto, quando uma mulher disse ter ficado boa da visão por conta da reza do menino, que a história repercutiu e começaram a formar filas de espera por atendimento.
Conselho Tutelar
Em conversa com o Diário do Nordeste por telefone, no início deste mês, uma fonte do órgão de proteção afirmou que o menino estava sofrendo “muita exposição e risco de violência psicológica, diante do atendimento de centenas de pessoas por dia”.
De acordo com o órgão, os pais “compreenderam a situação e, após a visita conselho, reduziram os dias e horários de atendimento” da criança às pessoas. “Não impomos isso, mas eles mesmos tomaram essa providência.”
O conselho destacou que a família foi advertida sob o artigo 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê sanções a violações de direitos de menores por pais ou responsáveis.
O que diz a Igreja Católica
A Diocese de Sobral, instituição representante da Igreja Católica na Região Norte, acompanha o caso do menino, conforme comunicado oficial publicado nesta sexta-feira (23).
A possibilidade da existência de milagres não é descartada, mas isso só terá reconhecimento oficial com base em critérios técnicos. A criança e os pais são católicos e o menino frequentava a catequese de iniciação à vida cristã.
"A Diocese de Sobral está e vai continuar acompanhando o caso", concluiu na nota publicada na última semana.