As frequentes cenas de consumo de crack e outras drogas “ao ar livre” na Cracolândia, em São Paulo, chocam. Realidade dura, crua, exposta aos olhos. Em Fortaleza, o cenário se repete: mas omitido entre quatro paredes, com a “ajuda” de facções criminosas.
O “raio-x” de uma das regiões onde dependentes químicos se concentram na capital cearense mostrou que, diferentemente de São Paulo, o consumo de substâncias em Fortaleza é recluso, feito muitas vezes dentro de barracos comercializados por líderes do tráfico.
A informação consta no Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (Lecuca 2022), realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Fortaleza, Brasília e na Cracolândia paulista.
O chamado “uso recluso” é destacado na pesquisa como uma das características mais peculiares da capital cearense.
A pesquisadora Clarice Madruga, coordenadora do estudo e professora da pós-graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica da Unifesp, afirma que o uso de drogas aqui “é muito mais restrito, fechado, omitido”, o que “não se vê nas outras cidades”.
“Além da observação imediata de que não havia frequentadores portando ou consumindo crack abertamente, o estudo exploratório também constatou a comercialização de ‘salas de uso’ (barracos), administradas por lideranças do crime organizado local”, aponta o levantamento.
Tendo em vista que o território representa não só uma cena de uso, mas também um ponto de comercialização de drogas ilícitas, é comum que a facção promova o uso em locais reclusos a fim de evitar a atuação da polícia.
O Diário do Nordeste questionou se a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) tem conhecimento da existência dessas “salas de uso”, além de como tem sido tratado esse “domínio” do território pelas facções.
A SSPDS afirmou, em nota, que "a Polícia Militar do Ceará (PMCE) mantém policiamento preventivo e ostensivo, diuturnamente, na Comunidade 'Oitão Preto', no Bairro Moura Brasil, em Fortaleza, por meio de viaturas do Policiamento Ostensivo Geral (POG) e da Força Tática (FT) do 5º Batalhão".
Conforme a Pasta, no local, há ainda uma "base móvel da PMCE e reforço por meio de equipes policiais em serviço extra remunerado (Irso), bem como pelo patrulhamento do Comando de Policiamento de Choque (CPChoque) e Comando de Policiamento de Rondas de Ações Intensivas e Ostensivas (CPRaio)".
Já a Polícia Civil do Ceará (PCCE) atua por meio do 34º Distrito Policial (DP). O foco, de acordo com a SSPDS, está nas identificações e prisões de suspeitos de grupos responsáveis por crimes na região e envolvidos com o tráfico de drogas.
A SSPDS destaca ainda que existem "trabalhos sociais desenvolvidos pelo Governo do Ceará, através da Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), que conta, em Fortaleza, com o Centro de Referência sobre Drogas, um espaço destinado a atendimento a pessoas com problemas relacionados ao uso e abuso de álcool e outras drogas, e seus familiares".
Por fim, salienta a Secretaria da Segurança a existência de atendimento itinerante na cidade de Fortaleza e no interior do Estado, com a Estação Móvel de Política sobre Drogas.
"Em Fortaleza, a SPS promove o Acolher, projeto que tem como finalidade ofertar serviços, programas e benefícios por meio da integração de políticas públicas, a partir de uma construção coletiva, nas mais diversas áreas, de forma itinerante, voltado à população em situação de vulnerabilidade social".
Cenas de uso
Nove territórios de consumo de crack e outros entorpecentes na capital cearense foram informados ao estudo por “atores com experiência nas políticas sobre drogas e em cenas de uso”:
- Comunidade do Oitão Preto (bairro Moura Brasil);
- Av. Leste Oeste (bairro Moura Brasil);
- Centro de Fortaleza;
- Papicu;
- Parangaba;
- Serrinha;
- Barra do Ceará;
- Gentilândia (bairro Benfica)
- Av. Tristão Gonçalves (Centro), no período noturno.
O território do Oitão Preto, porém, era o que mais se adequava à pesquisa, e teve quatro pontos escolhidos para receber os pesquisadores, em 2021. A escolha foi metodológica, e não se deve estigmatizar o território.
O Lecuca classifica como “cena de uso” um local onde são presenciados, por pelo menos 3 dias consecutivos, no mínimo 15 usuários de crack parados, sem estarem em trânsito entre duas localidades.
“Guerra às drogas está perdida”
Clarice Madruga aponta que um dos “achados” da pesquisa foi visto apenas em Fortaleza: a chamada “cena de uso híbrida”, quando os usuários e a comunidade local se misturam e convivem. “Não tínhamos essa configuração em nenhum outro lugar”, afirma.
Pela predominância do consumo “recluso” e da mescla entre usuários e comunidade, a metodologia da pesquisa precisou ser adaptada: se em São Paulo e em Brasília um território inteiro é classificado como “cena de uso”, em Fortaleza foi preciso estabelecer pontos em que o consumo era observado.
Na comunidade do Oitão Preto e no entorno, foram definidos 4 locais.
Paulo Quinderé, doutor em Saúde Coletiva e professor de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), é enfático ao indicar que a “política proibicionista” das drogas é a raiz da dificuldade de combater os efeitos do uso: tanto os sanitários como os sociais.
“As ações de educação e saúde nas cenas de uso deveriam se pautar na orientação e nos cuidados das pessoas que frequentam. No entanto, isto é inviabilizado pelo tráfico, pela disputa territorial, perdida pelo Estado”, avalia.
A política proibicionista, que transforma usuários em marginais, produz mais danos à sociedade. Utiliza-se da própria vulnerabilidade destas pessoas para serem cooptadas para o tráfico. A guerra às drogas está perdida.
Como estratégias possíveis para lidar com os efeitos nocivos do consumo de entorpecentes, ele lista:
- Informar os usuários sobre como realizar o uso de drogas de uma maneira segura e menos prejudicial;
- Oferecer insumos para que o uso possa ocorrer sem maiores danos, como pela distribuição do cachimbos individuais de crack e orientação pelo uso individual, para evitar doenças;
- Identificar as cenas de uso e realizar ações de saúde e de assistência, procurando estabelecer esses pontos como focos de ações de redução de danos de maneira mais integrada;
- Priorizar junto aos usuários ações de cultura, esporte, lazer, educação e geração de renda juntos aos demais setores das políticas públicas oferecidas pelo Estado.
Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp, frisa que é crucial ofertar um tratamento global, que enxergue a dependência química como “uma doença biopsicossocial”, que exige um processo de recuperação, e não só de saúde.