O cemitério do povo indígena Anacé (que significa “parente”, na língua tapuia) foi erguido, segundo lideranças dessa comunidade, em 1630, em Caucaia, Região Metroplitana de Fortaleza (RMF). Porém, o mesmo grupo foi vítima de um apagamento histórico e, ainda hoje, enfrenta dificuldades para ter sua identidade oficialmente reconhecida - inclusive para receber serviços básicos como educação, saúde, transporte e saneamento.
Ao todo, são mais de 3 mil famílias vivendo em 25 aldeias no município, de acordo com Paulo França Anacé, um dos “cabeças” do movimento de luta. Isso sem contar a parcela que vive em São Gonçalo do Amarante, também na RMF, e ainda está iniciando o processo de autorreconhecimento.
Esta é a segunda reportagem da série "Originários", do Diário do Nordeste, que ouviu demandas e dilemas dos 4 povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e presenciou danças e rituais que eles tentam conservar para as próximas gerações.
“Nossos troncos velhos, os mais antigos, falavam que a gente não podia se dizer índio para não morrer”, narra Paulo. “Nos muros das casas, tinham faixas dizendo ‘não somos índios’ com medo de represálias. Nos escondemos até os anos 1990, mas levantamos de novo”.
Segundo a história oral dos Anacés, seus antepassados lutaram contra portugueses e holandeses desde o Rio Grande do Norte até o litoral do Ceará. Muitos deles morreram no Rio Cauípe (“rio onde caminha o Grande Espírito”), que para eles carrega parte da memória e ancestralidade do povo: é um local sagrado.
Por isso, os indígenas veem com preocupação a expansão de empreendimentos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) na área. “Tiram água do rio para o complexo, não respeitam algo que conta nossa história e hoje é usado como mercadoria, pra esfriar placa de aço”, reclama Paulo.
Em nota, a administração do Complexo do Pecém declarou que acompanha as comunidades do seu entorno, “intermediando o apoio do poder público conforme o caso”.
“As empresas que se instalam ou que venham a se instalar no complexo têm em suas responsabilidades, conforme exigido em seus licenciamentos específicos, as obrigações socioambientais e a preocupação com os possíveis impactos diretos e indiretos nas comunidades da área”, completa.
Desde a concepção do projeto do CIPP, em 1995, os Anacés temem desapropriações e a perda da terra, de onde a maioria das famílias retira o sustento por meio da pesca e da agricultura familiar.
O Governo do Estado buscou uma solução com a criação da Reserva Indígena Taba dos Anacés, em 2018, mas apenas 163 famílias foram remanejadas para lá. O restante dessa população, estimada em 3 mil núcleos familiares, está espalhada por uma região entre 15km e 20km da Reserva, segundo Paulo Anacé.
Aquelas que não aceitaram o acordo continuam lutando pela terra tradicionalmente ocupada - reconhecida, inclusive, pelo mapa da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ainda que não seja demarcada. Aliás, a etapa de identificação, primeira do processo, está parada.
Estamos correndo atrás para que esse estudo seja concluído. Tá bem adiantado, mas falta apoio do Governo do Estado e Federal. É fato que a gente existe e a única coisa que vai resolver nossas demandas é a demarcação. Sem ela, não conseguimos nada.
O Diário do Nordeste procurou a Funai, desde o dia 9 de fevereiro, para comentar como está a demarcação dos povos no Ceará e que diagnóstico tem da necessidade de saúde, saneamento e educação dessas populações. Porém, não houve retorno até esta publicação.
Mesmo sem atribuição direta sobre a demarcação dos territórios, a Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (Sepince) declarou que "está comprometida com a aceleração do processo" para os povos cearenses. "Para essa demanda avançar, a Secretaria estará em constante diálogo com os povos indígenas do Ceará, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e órgãos competentes", disse em nota.
Parte dos Anacés que buscam a garantia da terra vive na aldeia Parnamirim, também em Caucaia, onde mora Edna Flávia Anacé, de 63 anos. A artesã de mão cheia foi criada na roça, em meio a coités, jenipapos e jatobás, aprendendo a plantar, limpar e colher. Hoje, repassa seus conhecimentos a um grupo de mulheres indígenas.
Ligada intimamente à terra, inclusive percebendo a presença de espíritos ancestrais no território, Edna observa com apreensão movimentos de contestação da posse por empresários que querem explorar o potencial turístico da região.
“Não aceitam que o terreno é nosso! Querem derrubar dunas da lagoa do Parnamirim, uma das mais turísticas do Ceará, pra fazer parque e indústria, prejudicando o turismo do povo. Parte nossa é pescador, outra faz passeios (guias turísticos). Derrubando a duna, acaba o passeio, por isso começamos a retomada”, destaca.
Até mesmo o cemitério centenário está ameaçado por novas construções; hoje, já está cercado por muros, e apenas um caminho estreito garante o acesso de pessoas da comunidade.
O Diário do Nordeste também questionou à Prefeitura de Caucaia, desde o dia 9 de fevereiro, que tipo de assistência fornece à comunidade Anacé no município.
Em nota, a Prefeitura de Caucaia declarou que, embora a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) seja o órgão responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) distribui insumos (vacinas, medicamentos, entre outros) e mobiliza profissionais para atuação e suporte nas áreas indígenas.
Já na Educação, o município disse contar com 7 escolas de educação indígena, que atende a Anacés e Tapebas, com cerca de 450 alunos matriculados. “Pra preservar a cultura e garantir o ensino a esses povos, a Secretaria Municipal de Educação (SME), possui um setor dentro da Diretoria Pedagógica com representantes das etnias”, complementa.
Por fim, mencionou que a Secretaria de Desenvolvimento Rural “realiza periodicamente” a recuperação de estradas vicinais, e que a Secretaria de Desenvolvimento Social e Trabalho (SDST) realiza cursos de capacitações profissional e empreendedorismo.
Escola reerguida
O direito à educação, embora constitucional, também está emperrado para os Anacés. A única escola indígena do Planalto Cauípe foi desativada, abandonada e depredada. Durante todo o ano de 2022, a comunidade esperou resposta do município, mas não houve reabertura. No fim do ano, os próprios indígenas começaram uma reforma no prédio.
“Tudo que tá aqui hoje foi a comunidade que fez ou doou: pintura, porta, grade, internet, cadeira, lousa”, conta o diretor Elber Anacé, 27. “Atualmente, todos os nossos 14 professores e gestão são voluntários”.
Segundo ele, as duas escolas mais próximas não suprem as necessidades das aldeias e nem fornecem educação diferenciada indígena. Como o currículo da unidade reaberta foi construído a partir de demandas da própria comunidade, os pais se sentiram mais confortáveis para matricular os filhos, mesmo sem vínculo oficial com nenhuma rede.
Para o primeiro ano letivo da unidade, em 2023, há 87 estudantes divididos entre Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Pela falta de verbas, a gestão da escola decidiu solicitar apoio à Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) para ser integrada à rede estadual. Quando a reportagem esteve no local, uma equipe da Pasta também realizou visita para conhecer o espaço e a proposta.
Em nota, a Seduc informou que, para viabilizar a inclusão dessa escola na rede estadual de ensino, de forma imediata, garantindo pagamento de professores, recursos de manutenção e aquisição de equipamentos, “será necessário instituí-la como extensão de matrícula da Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé”, vinculada à reserva Taba dos Anacés.
“A gente tem o trabalho com a espiritualidade, ancestralidade, cultura e todos os saberes que não são da escola convencional: a consulta aos troncos velhos, os alimentos, o toré, o uso das maracas e a sustentabilidade”, explica Elber. Desde cedo, as crianças são chamadas a cuidar da natureza.
Saúde deficiente
Natureza que está ameaçada. Com a instalação de tantos empreendimentos capazes de degradar o ambiente natural, os Anacés já percebem maior poluição da terra e do ar. Uma espécie de fuligem carregada pelo vento invade residências e cobre plantações, incluindo árvores frutíferas.
O Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela ONG Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), enumera que o conflito entre Anacés e a indústria pode trazer uma série de prejuízos. Dentre eles:
- Alteração no ciclo reprodutivo da fauna
- Alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território
- Assoreamento e poluição de recurso hídrico
- Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas
- Poluição sonora, atmosférica e do solo
Como danos diretos e indiretos à saúde, o levantamento também descreve a possibilidade de acidentes, doenças não transmissíveis ou crônicas, insegurança alimentar, piora na qualidade de vida e até mesmo suicídio.
Segundo Paulo Anacé, têm crescido os relatos de câncer e doenças respiratórias na comunidade do Planalto Cauípe. Ao mesmo tempo, o acesso à saúde continua dificultado.
“Para os nossos curumins serem vacinados, precisamos ir para o Ministério Público e tudo. Além disso, o posto mais próximo fica lá na reserva, no Garrote. São mais de 15 km de distância. A gente espera o nosso há oito anos”, afirma.
Luta continua
As lideranças acreditam sofrer um longo processo de privações - água, saneamento, educação, saúde - para serem vencidas pelo cansaço e desistirem da demarcação. Elas, no entanto, tomam para si a responsabilidade de proteger o ambiente porque entendem território na perspectiva de cuidado, não apenas de ocupação.
“Com todos esses impactos, não sabemos nem se vai ter peixe no futuro. Não temos nada contra esse suposto progresso, mas precisam entender que os Anacés existem e resistem. Queremos que a nossa história e luta tenham mais espaço. É pelo bem de todos”, finaliza Paulo Anacé.
Mesmo tão jovem, Elber compreende os motivos pelos quais seus antepassados foram agredidos, tanto física quanto psicologicamente, por isso tem força para bradar: “hoje, nossa aldeia não tem mais medo”.
“A gente indígena tem algo que nos alimenta que um não-indígena não entende. Fomos perseguidos, excluídos e mortos. Se não assumirmos essa responsabilidade, vamos continuar sendo perseguidos e mortos. Conhecimento liberta. Quando a gente traz conhecimento para o povo, o povo perde o medo”, sustenta o professor.