‘Curiosidades negadas favorecem o abuso infantil’: o papel da educação sexual para proteger crianças

Em palestras no congresso Cérebro, Comportamento e Emoções 2024, especialistas debateram sobre saúde mental LGBTQIA+, infância e adolescência

A falta de informações qualificadas sobre sexualidade deixa as crianças mais vulneráveis a abusos e diversos tipos de violência. No caso de meninos e meninas LGBTQIA+, não receber educação sexual os torna mais expostos a bullying, ao preconceito e a uma sensação de que são diferentes — no sentido negativo. Esses jovens podem passar a ter um comportamento agressivo, reativo, ou de isolamento, desenvolvendo depressão e ansiedade.

“São muito comuns os quadros de estresse pós-traumático em crianças que vivenciaram um bullying muito sério que não conseguem superar”, afirma a professora Carmita Abdo, fundadora e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da     Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

A docente participou da mesa-redonda “Saúde mental LGBTQIA+, infância e adolescência: novos achados, cultura e estratégias de comunicação”, realizada na manhã da última quarta-feira (26), durante o congresso Cérebro, Comportamento e Emoções 2024, no Rio de Janeiro. Na ocasião, ela realizou a palestra “A hora de falar: o que e como ensinar crianças sobre diversidade sexual?”. O psiquiatra José Paulo Fiks, doutor em Comunicação, e o psiquiatra e psicanalista Andres dos Santos Júnior, mestre em Ciências da Saúde, também estiveram na programação.

Ao contrário do que muitos pensam, a docente explica que abordar esse assunto de forma adequada na infância não antecipa o exercício da sexualidade. “Os estudos mostram que a criança que é educada — de fato educada, não apenas informada —, acaba conseguindo escolher a hora de começar, como fazer sexo, e ela acaba se entendendo sexualmente muito melhor.”

Da mesma maneira, ter informação correta sobre diversidade não a estimula a seguir uma ou outra orientação sexual. “Ela já está sentindo dentro dela uma série de emoções, uma série de tendências, e ela vai acabar se identificando com essa ou aquela (orientação sexual). Não deve ser informado apenas o que é ainda minoria. É para falar de tudo, dando a oportunidade da criança se sentir identificada com isto ou aquilo”, afirmou ao Diário do Nordeste.

A professora destaca que as crianças já têm conhecimento sobre esses assuntos — seja por conversas ou pelo acesso à internet. E, talvez, esses contatos não tenham sido saudáveis. “(É) a oportunidade que a gente tem de contrapor (com) uma educação e trazer a ela qualidade de informação para ajudar em uma definição da sua sexualidade que seja positiva para a vida dela”, afirma.

CUIDADOS NECESSÁRIOS

Proporcionar educação sexual não é apenas falar sobre o assunto de qualquer maneira. É preciso abordar informações compatíveis com a capacidade de assimilação da criança e conforme a maturidade dela, a nível cerebral. “É tudo profundamente estudado, não é uma situação experimental. É uma situação que se embasa no que se conhece de desenvolvimento da criança em termos globais”, defende Carmita Abdo.

O melhor local para isso ocorrer, de acordo com a professora, é em casa — afinal, são os pais que mais conhecem os filhos e podem oferecer conhecimento de forma mais direcionada. Na escola a educação oferecida é mais “genérica”, adequando os assuntos a determinadas faixas etárias. Porém, há crianças que se desenvolvem mais lentamente e outras que são mais precoces. “Mas, na ausência de outra forma, esta (a escolar) ainda é a melhor do que buscar sozinho informações na internet ou em contatos que podem não ser tão positivos.”

Para conseguir oferecer uma educação sexual de qualidade, é necessário que pais, mães e professores estejam bem preparados, inclusive com a própria sexualidade. Pessoas que estão vivendo problemas sexuais, segundo a docente, vão educar com um viés que, necessariamente, passa pela própria dificuldade.

“Então, antes de iniciar esse processo, o adulto sempre tem que se perguntar: ‘Eu estou pronto? Eu estou em paz com a minha sexualidade? Eu me sinto capaz? Eu me sinto hábil para isso?’ Se o pai não puder, quem sabe um tio ou uma tia tenha mais condições de fazer esse trabalho”, indica a docente. Na escola, ela também recomenda que professores que não se sentem confortáveis ou não estejam bem, sexualmente, não atuem nessa área.

A ARTE COMO ALIADA DA DISCUSSÃO

Filmes e séries com que tratam da temática LGBTQIA+ e têm crianças ou púberes como protagonistas foram o centro da apresentação do pesquisador José Paulo Fiks para falar sobre o chamado “coming out” — a descoberta e a expressão da sexualidade.

Segundo o psiquiatra, estudos apontam que o ambiente familiar é o mais acolhedor para esse processo ocorrer. Quando não existe essa possibilidade e o “coming out” ocorre na sociedade, a criança ou o púbere procura identificações. Ele também aponta a importância de não sacrificar a espontaneidade da criança com conselhos como “se contenha”, “não seja tão feminino” ou “não se exponha tanto”.

“Outros artigos mostram achados bem preocupantes: curiosidades negadas favorecem o abuso sexual infantil. As crianças curiosas se submetem muito mais facilmente aos predadores sexuais”, afirmou Fiks. Levar debates sobre produtos artísticos e culturais para a escola, de acordo com ele, pode ser uma possibilidade para esclarecer e dar alicerces por meio de conceitos científicos.

Obras de diferentes décadas foram citadas pelo psiquiatra, como “As Amizades Particulares” (1964), “Moonlight” (2016), “Close” (2022) e “Heartstopper” (2022). Para ele, a arte é capaz de educar, divulgar, abrir espaço para discussão, diminuir preconceitos e estigmas e promover a saúde mental e o sentimento de pertencimento, além de proteger contra a violência e estresse por bullying ao possibilitar o debate.

PROCESSO COMPLEXO E INDIVIDUAL

Também foi a partir de uma obra cinematográfica que Andres dos Santos Júnior abordou gênero e sexualidade na infância. Em sua fala, ele destacou a importância da arte e da cultura para a representação desses aspectos. “As criações artísticas não são neutras, não são ingênuas. Elas moldam modos de ver o corpo e o sexo. Temas e significado nas obras de arte criam vínculos com a memória coletiva, legitimando olhares sobre o erotismo e a sexualidade”, afirmou.

Durante a palestra, o médico apresentou o enredo de Billy Elliot, filme de 1999 que foi adaptado para o teatro musical em 2005 e mostra a história de um menino de 11 anos que descobre a paixão pelo balé. “Quando Billy escolhe a dança, uma atividade culturalmente associada às meninas, ele se coloca em uma luta para se expressar autenticamente, independentemente das expectativas sociais e da pressão de seus familiares e do seu ambiente”, afirma.

O psicanalista também destacou o quão relevante e complexo é o processo de entrada na sexualidade como uma etapa da vida — além de individual — e citou impactos da internet para esse momento, ao facilitar a busca por aceitação.

“Teve duas consequências, uma muito boa: se quer procurar a sua turma, você acha. No entanto, nunca tivemos tanto suicídio de adolescente por uma incapacidade de aceitação ou por não achar, nesses meios todos, uma posição pessoal que pudesse ser satisfatória ou pelo menos agregasse em algum momento”, reflete.

* A repórter viajou a convite do evento