Um serviço essencial para acesso a direitos fundamentais pela população está enfraquecido em Fortaleza: com seis sedes fechadas, a rede de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), gerida pela Prefeitura de Fortaleza, tem enfrentado problemas estruturais, falta de profissionais e críticas por parte de usuários.
No último dia 29 de outubro, a vereadora Adriana Gerônimo realizou uma visita técnica ao CRAS Bom Jardim, um dos seis que estão com serviços transferidos para sede provisória. O relatório elaborado pela parlamentar aponta um cenário de abandono do prédio público.
O Diário do Nordeste visitou a unidade e também outras três, nessa segunda-feira (11), para checar como está o funcionamento e apurar denúncias sobre a situação.
Para que serve um CRAS
O CRAS é a porta de entrada da assistência social na rede pública, com sedes localizadas prioritariamente em áreas de maior vulnerabilidade social - e destinado a pessoas em situação grave desproteção, pessoas com deficiência, idosos, crianças retiradas do trabalho infantil, entre outros. Os centros possibilitam o acesso da população aos serviços, benefícios e projetos de assistência social.
Cada CRAS deve ofertar o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Além disso, é nesses locais onde os cidadãos são orientados sobre benefícios assistenciais e podem ser inscritos no Cadastro Único para programas sociais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Situação em Fortaleza
No Bom Jardim, não há obras em andamento ou qualquer guarda do local, apesar de haver materiais de construção depositados no pátio. No prédio, sem portas nem portões, documentos com dados pessoais de pacientes se misturam ao amontoado de lixo e entulho.
Em menos de 5 minutos lá, a reportagem presenciou três pessoas chegarem ao CRAS na tentativa de acessar serviços. Não havia placa ou qualquer informativo sobre o fechamento da unidade nem sobre o endereço onde está funcionando temporariamente, a cerca de 800 metros da sede oficial.
Também estivemos no CRAS provisório, uma construção com estrutura residencial, no número 1430 da rua Oscar França. Por volta das 9h45, alguns usuários estavam sentados na calçada, por falta de espaço na recepção improvisada, à espera do horário de entrega das “senhas” de atendimento da tarde.
A dona de casa Rejane Costa, 45, reclama que o espaço “é muito pequeno, não tem banheiro, as salas não têm parede, e ainda atende pouca gente”. Segundo ela, só na terceira ida ao equipamento conseguiu ser atendida – porque o pai, de 77 anos, chegou à fila às 5h da manhã.
De acordo com relatório de fiscalização apresentado pela presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Fortaleza, a situação do CRAS Bom Jardim é “insalubre”.
Além das questões estruturais, as parlamentares denunciam a falta de equipe profissional mínima – na unidade referência de assistência social, não há assistente social. “Atualmente, o equipamento não dispõe de equipe técnica e segue funcionando apenas com profissionais de nível médio”, destaca o documento.
“A coordenação da unidade mencionou que a única profissional de nível superior (psicóloga) está de férias, e verbalizou também a ausência total de profissional de serviço social e pedagogia, bem como a necessidade do equipamento contar com um responsável pela guarda do patrimônio local.”
Em nota, a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) informou que “a gestão municipal aguarda a decisão judicial da Terceira Vara da Fazenda Pública sobre a convocação dos 200 profissionais aprovados na seleção pública para a Assistência Social, ainda em período de vedação eleitoral”.
Sobre os atendimentos do CRAS Bom Jardim, serão transferidos, no prazo de 15 dias, para a sede da Regional 10, conforme a Pasta. “A gestão municipal realizou intervenções emergenciais no muro externo do equipamento, e os arquivos citados pela matéria serão removidos do local.”
A secretaria diz ainda que “na sede provisória do CRAS Bom Jardim são distribuídas 20 senhas para atendimento no turno da manhã e 20 no período da tarde”, e que “os usuários que não conseguem senhas no local são direcionados aos demais núcleos de atendimento do Cadastro Único (CadÚnico)”.
A dificuldade para conseguir senhas, porém, não se restringe aos espaços de atendimento temporários. No CRAS da Granja Portugal, onde chegamos por volta das 10h, usuários já aguardavam do lado de fora para a distribuição das senhas da tarde, que iniciaria às 11h.
“Cheguei 8h, na hora que abre, e não tinha mais ficha pra renovar o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Agora tenho que esperar aqui com o meu pai, que teve AVC recente, e tem que ficar aqui”, relatou uma usuária que pediu para não ser identificada.
Na mesma unidade, a dona de casa Maria José chegou às 5h para “pegar uma ficha, porque acabam é cedo”. Por falta de um documento, não teve o atendimento concluído. “Hoje não consegui resolver, aí amanhã tenho que vir de novo às 5h”, lamentou.
Alguns questionamentos enviados pela reportagem não foram respondidos pela Prefeitura de Fortaleza:
- Há quanto tempo cada CRAS da cidade está fechado;
- Se há previsão de início das obras;
- Até quando o ponto provisório do CRAS Bom Jardim será utilizado e qual o critério de escolha, já que sequer disponibiliza banheiro aos usuários;
- Quantas obras estão paralisadas, por quais motivos e quando serão retomadas;
- Qual o déficit atual de profissionais dos CRAS e quantos atuam, no total, nas unidades.
CRAS fechados ‘há meses’
A Prefeitura de Fortaleza confirma que seis dos 27 CRAS da cidade estão fechados, funcionando em sedes provisórias: Serviluz, Antônio Bezerra, Serrinha, Genibaú, Bom Jardim e João XXIII. Um dos seis Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), o do Mucuripe, também está “temporariamente em outro local”.
“É importante destacar que a gestão municipal já concluiu as requalificações dos CRAS Canindezinho, Vila União e Castelão, entregues à população com melhorias estruturais. O projeto e orçamento para manutenção de todos os CRAS será submetido à nova gestão municipal”, concluiu a SDHDS, em nota.
O Diário do Nordeste esteve em outros dois CRAS inativos. No Serviluz, uma funcionária da própria Prefeitura, que não será identificada, reconhece que “o CRAS está sem funcionar há cerca de 7 meses, e nunca se viu nenhuma obra” no prédio. Os serviços estão no pátio da Escola Municipal de Tempo Integral Vereador Alberto Gomes de Queiroz.
Já os usuários do CRAS João XXIII, cuja sede também está fechada, precisam se dividir entre dois espaços, a depender da demanda que possuem. Apenas dois serviços estão funcionando no Conselho Tutelar do bairro, cujo endereço consta como sendo do “CRAS João XXIII” no site da Prefeitura. Para as demais demandas a população deve ir à Regional.
Sobre o atendimento, a SDHDS aponta que “os serviços mais procurados nos CRAS são a atualização e inscrição no Cadastro Único, disponíveis nos 48 Núcleos de Cadastro Único, que incluem os 27 CRAS, 4 Vapt Vupts, 11 Secretarias Executivas Regionais, as Casas do Cidadão (Centro, Iguatemi, Benfica e Riomar Kennedy) e os dois Centros Pop para pessoas em situação de rua”.
Ação civil contra a Prefeitura
No último dia 31 de outubro, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), por meio da 9ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, dos Conflitos Fundiários e de Defesa da Habitação, ajuizou uma Ação Civil Pública contra o Município de Fortaleza para retomada dos serviços de assistência social, com a contratação de aprovados em seleção pública.
Conforme o MP, a ACP também exige que seja realizado concurso público para criar um quadro técnico definitivo de profissionais para atuação na SDHDS. Em abril deste ano, a Prefeitura de Fortaleza publicou dois editais de seleção de profissionais para atuar na proteção e assistência social. Em junho, a seleção foi homologada, mas eles não foram contratados.
“Diante dos fatos, o MP requer que o município convoque os aprovados na seleção pública, retome os serviços relacionados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) desempenhados pela SDHDS, inclua na Lei Orçamentária a contratação dos profissionais e apresente cronograma para realização de concurso público”, conclui o órgão.
O que são os CRAS
Os CRAS estão previstos na lei nº 8.742, de 1993, que dispõe sobre a organização da assistência social. Por lei, "é a unidade pública municipal localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias".
A lei também prevê que "as instalações dos Cras e dos Creas devem ser compatíveis com os serviços neles ofertados, com espaços para trabalhos em grupo e ambientes específicos para recepção e atendimento reservado das famílias e indivíduos, assegurada a acessibilidade às pessoas idosas e com deficiência".
Além disso, nota técnica do então Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), emitida em 2009, orienta sobre como deve ser composta a equipe de um CRAS, a depender da quantidade de famílias atendidas por ano:
- 500 famílias: 2 técnicos de nível médio e 2 de nível superior, sendo um assistente social e outro preferencialmente psicólogo;
- 750 famílias: 3 técnicos de cada nível, com pelo menos dois assistentes sociais e um psicólogo;
- 1 mil famílias: 4 técnicos de cada nível, sendo dois assistentes sociais, um psicólogo e um profissional que compõe o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
A Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS determina, ainda, que "toda a equipe de referência do CRAS seja composta por servidores públicos efetivos", já que "a baixa rotatitividade é fundamental para que se garanta a continuidade, eficácia e efetividade dos serviços e ações ofertados no CRAS, bem como para potencializar o processo de formação permanente dos profissionais".