"Fui comunicada na manhã do dia 31 [de agosto deste ano] e a decisão tinha que ser tomada naquela mesma manhã". A estudante Francisca Janaína da Silva, de 22 anos, foi a responsável por receber a triste e dolorosa notícia de que seu irmão, de apenas 18 anos, não tinha resistido ao acidente de moto e faleceu. A decisão ao qual ela se refere diz respeito a doar, ou não, os órgãos de Eduardo Antônio da Silva do Nascimento.
A depender da decisão, muitas outras vidas - todas elas desconhecidas - seriam diretamente impactadas. Um único doador pode salvar até nove vidas. "No momento em que o médico me comunicou [sobre a morte do irmão], eu logo pensei que aquela decisão salvaria várias vidas e, além disso, era uma forma de manter meu irmão vivo. Pedi a opinião da minha família e todos concordaram", detalha a jovem.
Decisão tomada, médicos comunicados. Agora, iniciava uma corrida pela vida. Os sete órgãos doados pela família de Eduardo, sobretudo o coração, tinham que chegar em tempo hábil à Capital cearense.
Para isso ocorrer, o Hospital Regional do Cariri (HRC) desenvolveu uma estrutura especial e complexa para que todos os órgãos captados sejam devidamente aproveitados e reimplantados em quem espera - muitas vezes por anos - por determinado órgão.
A estrutura conta com 9 profissionais para captação e 3 para o transplante. Eles são os responsáveis diretos por captar e transportar o órgão à Fortaleza. O processo tem que ser rápido. Para atingir essa agilidade, o transporte precisa ser feito através de aeronaves da Coordenadoria Integrada de Operações Aéreas (Ciopaer) ou de aviões fretados, geralmente disponibilizados pela Secretaria da Saúde (Sesa) do Ceará.
Para que o órgão chegue rapidamente ao aeroporto de Juazeiro do Norte, a equipe conta com apoio de carros e motos batedores do Departamento Municipal de Trânsito (Demutran) e, em Fortaleza, o mesmo ocorre, com batedores que abrem caminho do Aeroporto Internacional Pinto Martins até o hospital em Messejana, única unidade do Estado a realizar o transplante.
Somente neste ano, foram realizadas três captações de coração - sendo um deles o de Eduardo. O número representa 43% de todos os corações doados no Ceará neste ano (7).
A enfermeira Thaís Feitosa, da Organização de Procura de Órgãos (OPO), que funciona no Hospital Regional do Cariri (HRC), detalha que o transporte todo deve ser feito em apenas 4 horas. "Do momento em que o coração é retirado do doador, até o momento em que ele é reimplantado no corpo de quem vai receber o transplante, tem que ser feito em um intervalo de 4 horas", explica.
Diante deste ínterim reduzido para que o órgão seja transportado, a posição geográfica de Juazeiro do Norte, no Sul do Estado, se constitui em um desafio extra. "A distância é, sem dúvida, um fator agravante. É um desafio grande transportar, por exemplo, um coração, para Fortaleza, em um tempo tão curto", avalia a enfermeira.
A OPO, explica Thais Feitosa, é o órgão responsável por organizar a logística da procura de doadores de órgãos e tecidos. Hoje, dia 10 de setembro, a Organização de Procura de Órgãos completa uma década de atuação no Cariri. "Foi a partir desta atuação que passamos a ter uma grande relevância neste trabalho de captar o órgão e transportá-lo", acrescenta a enfermeira Thaís Feitosa.
Processo rigoroso
O gatilho de toda esta complexa engrenagem de transporte ocorre somente após os médicos realizarem uma série de testes e exames. Quando há a notificação de uma morte encefálica - e de que a família autorizou a doação - uma equipe da OPO composta por dois médicos e uma enfermeira iniciam toda a checagem da confirmação da morte, conforme preconiza a lei.
"Depois dos testes, é realizado um laudo médico" visando à elaboração do atestado de óbito, explica Thaís Feitosa. Após a confirmação da morte encefálica, tem início mais uma bateria de testes, para avaliar a funcionalidade e vitalidade daquele órgão.
A Sesa acrescenta que para o coração e o pulmão, dentre os transplantes realizados no Ceará, são os órgãos que necessitam de um maior rigor nos critérios de aceite para transplantação, pois apesar de haver carência de doação, diante da demanda na fila de espera, eles são sempre avaliados por equipe médica se estão saudáveis para doação com fins de transplantes.
Informar e conscientizar
O gesto de Janaína e sua família foi diretamente responsável por salvar e melhorar a vida de sete pessoas. No entanto, essa nem sempre foi a decisão da família. Em julho do ano passado, Janaína perdeu outro irmão, de 30 anos, vítima também de acidente de moto. À época, a família não doou os órgãos.
"Não tínhamos a consciência sobre a importância da doação e nem sabíamos quantos vidas poderíamos salvar. Se soubéssemos, certamente também teríamos autorizado a doação como foi feito com o Eduardo", reconhece Janaína. Informar e conscientizar são duas palavras chaves, na avaliação de Thaís Feitosa.
"A doação ainda enfrenta tabus e resistências. Embora na região do Cariri as famílias tenham boa consciência e, na maioria, se inclinem a doador, é preciso avançar. Trabalhando essa questão informativa avançaríamos ainda mais. Uma pessoa que está na fila de espera pode ser salva pelo sim de uma família enlutada", conclui a enfermeira Thais Feitosa.
A partir desta necessidade de fazer ecoa os impactos positivos da doação, a Central de Transplantes do Ceará tem uma parceria com a Escola de Saúde Pública do Ceará para "a execução anual do Projeto de Educação Permanente em Transplante que oferta cursos aos profissionais de saúde que compõem a rede de procura de órgãos no Ceará, sobre o processo de doação de órgão para fins de transplantes", conforme explicou, em nota, a Sesa.
O foco do curso é o acolhimento, a comunicação eficaz, o manejo de reações normais ao luto e "principalmente a discussão permanente sobre os desafios na entrevista familiar, que é momento em que é oportunizado às famílias a possibilidade da doação de órgãos e tecidos, com empatia, respeito e autenticidade".
Ainda conforme a Secretaria da Saúde do Ceará, a educação em transplante ocorre também nos estabelecimentos hospitalares através dos membros das Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes "que procuram sensibilizar principalmente os profissionais com atuação nas urgências, emergências e unidades de terapia intensiva, sobre temas assistenciais relevantes como a importância da notificação e manutenção de potenciais doadores".
Fila de espera
Quando se fala em "conscientizar para avançar" a captação de órgãos, o impacto direto - e imediato - recaí sobre a fila de pessoas à espera um transplante. Conforme levantamento da Sesa, hoje são 1.071 pessoas aguardando a realização de cirurgia.
"Essa desproporcionalidade entre a oferta e a demanda de órgão e tecidos para fins de transplantes é um desafio para o mundo, para o Brasil e para o Ceará que temos que enfrentar", destacou a Sesa. A exceção desta fila diz respeito a doações de córneas que desde o ano de 2016 mantêm fila zero no Ceará.
- Doador vivo: Um dos rins, parte do fígado, parte da medula ou parte dos pulmões
- Doadores falecidos: Rins, coração, pulmão, pâncreas, fígado e intestino, córneas, válvulas, ossos, músculos, tendões, pele, cartilagem, medula óssea, sangue do cordão umbilical, veias e artérias.