Numa época em que a dificuldade com o troco não poderia ser resolvida com o PIX, surgiram os borós – vales aceitos como moedas, em valores de réis, no comércio local de Fortaleza no século XIX. Eram como fichas impressas ou feitas à mão usadas para pagar do salário ao quilo de carne.
Os borós foram criados no Ceará e chegaram ao ponto de serem emitidos de tamanhos e formatos diferentes por vários comerciantes, como registra o jornalista Raimundo de Menezes no livro “Coisas Que o Tempo Levou”. Até as dívidas poderiam ser pagas assim.
Essa informalidade mudou com a emissão de borós pela Câmara Municipal de Fortaleza, em 1896, na gestão do intendente Guilherme César da Rocha, que eram os tipos mais bem aceitos. O valor arrecadado, inclusive, serviu para a construção do Mercado de Ferro.
Os vales personalizados também eram distribuídos por grandes proprietários de terras. Isso era usado como estratégia para que os trabalhadores gastassem o dinheiro apenas onde os favorecia, como explica o numismata Francisco Luiz Nepomuceno, o Xico Luiz.
“Eventualmente pode ter sido por falta de moedas, porque houve um período que as moedas de baixo valor eram falsas ou falsificadas, então, existia carência desse material. É possível que alguns borós tenham surgido assim e outras vezes para facilitar o troco”, acrescenta.
O boró pode ter recebido esse nome em referência a um peixe pequeno conhecido no sertão naquela época, como contextualiza Raimundo de Menezes. Mas certo é que os usos eram múltiplos.
“Havia borós muito curiosos, não só curiosos como também muito pitorescos. A propósito de tudo, e mesmo sem propósito algum, apareciam borós, cujos dizeres eram, mais ou menos, os seguintes, às vezes escritos pelo próprio punho do emissor:”, aponta.
- “João Pinto deve ao portador por falta de troco quinhentos réis (a) João Pinto. Massapê. Estreito”
- “A comissão do Comércio abaixo-assinada garante ao portador deste a quantia de 100 Rs. Baturité, Setembro de 1893”
- “Fernandes do Amaral. Devo cem réis. Milagres-Ceará”
- “Vale um quilo de carne”
Além disso, as companhias de bondes de burros, como Empresa Ferro Carril do Ceará, Empresa Ferro Carretel do Outeiro e Companhia de Bondes de Porangaba também aderiram ao vale.
‘Gaiatice’ com borós
Algumas histórias curiosas repercutiram com o uso dos borós entre cearenses. Entre elas, a de um vendedor ambulante de feira que criou uma ficha própria com o seguinte valor: “vale este uma tigela de arroz-doce”.
Isso chamou atenção do intendente, ou prefeito da época, que proibiu a circulação do vale arroz-doce. A medida foi tomada também para que circulassem apenas os borós emitidos pela Câmara de Fortaleza.
Por isso o vendedor, à medida que recebia os vales de arroz-doce em circulação, depositava as fichas no lixo. Acontece que um grupo de crianças descobriu o “tesouro” quando os borós voltaram a poder circular.
Sem ter ciência da mudança, o feirante precisou ceder as tigelas com o doce para os pequenos e quase faliu, como registravam os relatos da época. E essa não foi a única história contada entre os cearenses do século XIX.
O historiador Eusébio de Sousa contou que um proprietário de sítio em Baturité, chamado Clementino Holanda, criou e emitiu um tipo de boró para pagar os seus funcionários até quando conseguiu.
Porém, em determinado momento, não havia mais dinheiro para fazer o resgate dos borós e as fichas ficaram desacreditadas entre os funcionários e o comércio. Ninguém queria aceitá-lo, como frisa o registro histórico.
Foi nesse momento que um pedinte passou a cantarolar alguns versos, que se tornaram piada na comunidade:
Eu peço por caridade
Pelo seu Senhor Divino…
Eu só não quero boró
Que seja do Clementino…
Fim dos borós
A falta de compromisso, como a do caso de Baturité, enfraqueceu o uso dos borós após um período de maior circulação, conforme Raimundo de Menezes. O uso cearense foi copiado em estados, como Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Minas Gerais.
Mas os borós foram sendo tragados pelo tempo no século XX, como acrescenta Xico Luiz.
“O empregado exigia uma maior liquidez ou não queria se sujeitar ao boró que era usado numa região restrita. Se ele fosse falar com o dono da bodega de uma outra região, poderia não aceitar”, explica.
Um dos sentidos do dinheiro é gerar trabalho, porque representa a capacidade de produção de um povo e de uma região. Então surge o comércio, o intercâmbio
Mas o Ceará também foi palco da criação do primeiro banco comunitário do Brasil com o surgimento, em 1998, pela Associação dos Moradores do Conjunto Palmeiras. O Banco Palmas, como foi nomeado, criou uma moeda própria para uso no comércio do bairro.