Como moradias precárias e até falta de banheiro em casa afetam desempenho escolar de alunos no Ceará

Condições estruturais das residências podem prejudicar notas e causar impactos a longo prazo

Quarto organizado, escrivaninha, cadeira confortável, iluminação boa, ventilação, silêncio e privacidade. Se até a descrição já tranquiliza, o ambiente concreto, então, se mostra como o mais ideal para estudar – mas é exceção entre estudantes da rede pública do Brasil.

No Ceará, as condições precárias de moradia de milhares de famílias (em 2019, o déficit habitacional era de 130 mil casas só em Fortaleza) vêm de múltiplas desigualdades sociais e econômicas, mas impactam num pilar essencial para a saída da pobreza: a educação.

Professores e pesquisadores ouvidos pelo Diário do Nordeste atestam: as condições estruturais das residências podem prejudicar o desempenho escolar e ser determinantes para o futuro de crianças e adolescentes.

A imagem de qual seria o ambiente ideal de estudos para os jovens em casa é descrita por Pedro Monteiro, professor da rede municipal de ensino de Fortaleza, ao mesmo tempo em que ele reconhece: “está fora da realidade de muitos alunos”.

O professor avalia que a estrutura da moradia “tem importância significativa” no processo de aprendizado, uma vez que influencia não só na concentração, mas na rotina e na própria saúde mental dos estudantes.

“Há meninos e meninas que moram em cubículos, com até 6 pessoas numa casa de dois cômodos. Isso gera estresse, porque o ser humano precisa de horizonte, de espaço. Não é à toa que ficamos tão tranquilos diante do mar, de uma paisagem longa”, exemplifica Pedro.

À medida que há crianças nascendo e vivendo em ambientes extremamente pequenos, gera um nível de estresse e ansiedade desde o processo de formação.
Pedro Monteiro
Professor da rede pública de Fortaleza

Rafaela Silveira, pesquisadora e assistente social da Divisão de Apoio Pedagógico ao Aluno da Universidade Federal do Ceará (UFC), pontua que “quando 3 ou mais pessoas estão no mesmo quarto, já caracteriza uma condição inadequada de moradia”.

“É a realidade de muitos dos nossos estudantes. Não tem silêncio nem espaço com mesa e cadeira para o estudo diário. Até mesmo as horas de sono e o momento de descanso ficam prejudicados”, diz. 

Domicílios sem banheiro e com 2 ou mais famílias no mesmo ambiente completam o cenário que coloca as questões de habitação como um dos fatores que interferem no desempenho escolar.

Saneamento impacta estudos

O impacto do ambiente nos estudos se dá também a médio e longo prazos. Estudo do Instituto Trata Brasil (ITB) divulgado no ano passado mostrou que o atraso escolar de meninos e meninas em domicílios sem acesso a saneamento é maior. 

Entre pessoas do gênero feminino, a questão se evidencia ainda mais, como apontou a pesquisa “Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira”.

“Jovens que recebiam em suas moradias água distribuída por rede geral tinham médias de atraso escolar menores. Aqueles que moravam em residências com coleta de esgoto também tinham médias de atraso escolar menores”, aponta o relatório.

A lógica é simples: quanto menor o acesso saneamento básico, maior a exposição a doenças infecciosas e mais tempo de afastamento das atividades será necessário, gerando um déficit cuja solução é complexa.

A maior diferença se mostrou em relação à existência de banheiro na moradia. Em média, as jovens que viviam em domicílios com banheiro tinham 0,6 ano de atraso escolar a menos que aquelas que moravam em residências sem banheiro. 

“Há um outro efeito mais imediato da falta de saneamento sobre as estudantes brasileiras: como afeta o desempenho escolar, interfere nas chances de progressão para o ensino superior e na qualificação das jovens que recém ingressaram no mercado de trabalho”, complementa o ITB.

1,3 milhão
de mulheres poderiam sair da pobreza no Ceará se o saneamento fosse universalizado, segundo estudo do ITB.

Edição anterior da pesquisa já havia concluído que as meninas e mulheres alcançam até 46 pontos a menos na média final das provas do Enem quando não têm condições sanitárias plenas.

Moradia reflete outras vulnerabilidades

Além da estrutura física, o chão simbólico onde os estudantes pisam também impacta na vida escolar: o lugar precisa ser seguro, espaço de referência e suporte, como destaca Ticiana Santiago, psicóloga e doutora em Educação.

“O ambiente, principalmente a casa da criança e do adolescente, é uma matriz muito forte para a identidade. Não é sobre uma arquitetura cara, inovadora, diferenciada, mas um ambiente onde ele reconheça um espaço dele, por mais simples que seja”, explica.

É importante não pensar a casa só como estrutura de paredes e mobiliário, mas como espaço estratégico para transformações. Tendo muito cuidado pra não associar família em situação de vulnerabilidade a uma que não cuida, não acompanha. 

A assistente social Rafaela Silveira acrescenta que “os professores, por exemplo, não podem ver o estudante apenas a partir do momento em que ele está na escola”, mas sim considerando que “muitas vezes ele vem de uma moradia em condições inadequadas”.

Contextos de pobreza, de conflitos territoriais urbanos, de violência doméstica e de vínculos e relações parentais frágeis também incidem sobre a dinâmica dos lares – e, consequentemente, das salas de aula. 

O professor Pedro Monteiro alerta ainda que o acompanhamento familiar das atividades escolares de crianças e adolescentes é determinante, mas que devido às desigualdades sociais e ao avanço da pobreza, muitas vezes não é possível.

“Entre 11 e 15 anos, os alunos estão desenvolvendo independência da família, mas ainda precisam dela. Se a família não tem tempo para auxiliar nas atividades, eles terão dificuldade”, pontua o docente. 

“Em muitos casos, pais, mães e cuidadores não conseguem, porque trabalham ou estão procurando emprego. Daí a necessidade de escolas de tempo integral, que suprem essa demanda.”

Educação, saúde e assistência

Para Rafaela, assistente social da UFC, efetivar políticas habitacionais é urgente. “É preciso pensar não só em novas moradias, mas na melhoria das que não têm banheiro, na regularização fundiária”, exemplifica. “Muitas vezes, a família nem quer sair do território.”

A psicopedagoga Ticiana Santiago destaca que “temos no Ceará coletivos muito fortes que atuam na garantia de direitos de crianças e adolescentes”, mas é necessário integrar políticas públicas.

Precisa haver uma ação intersetorial entre educação, saúde e assistência social para pensar ações voltadas à infância. A escola é o lugar de socialização secundária – depois da família, é a partir da escola que a pessoa vai entender a sociedade.
Ticiana Santiago
Psicóloga e professora da Universidade Estadual do Ceará
 

Já o professor Pedro Monteiro frisa que “a escola, em relação à estrutura das moradias, não tem o que fazer: ela recebe o problema e lida com ele, sendo apenas um espaço de discussão”.

“O que cabe é ter movimentos populares fortes que possam reivindicar políticas habitacionais, a desapropriação dos latifúndios urbanos. O ideal é ter um governo que garanta direitos, que aplique a Constituição Federal.”

O que diz o poder público

O Diário do Nordeste questionou as secretarias estadual (Seduc) e municipal (SME) da Educação sobre quais as estratégias para identificar situações de vulnerabilidade entre os estudantes e se há integração com os demais órgãos, como de proteção social e habitação, por exemplo, para atuação intersetorial.

Em nota, a Seduc, responsável pela oferta de ensino médio, reafirmou a escola como espaço que deve assegurar, além de aprendizagem de ualidade, a "proteção integral de crianças e adolescentes".

O órgão afirma que, para isso, "vem fortalecendo a relação de intersetorialidade junto a instituições como Fundo Internacional de Emergência para Crianças das Nações Unidas (Unicef), Secretarias da Proteção Social e da Saúde, e municípios".

A secretaria cita ainda que o Programa Ceará Educada Mais é constituído por oito eixos, entre os quais está "Cuidado e Inclusão". "A Seduc também conta com Assistentes Sociais Educacionais, que fortalecem a relação da escola com a família e a comunidade e estreitam a relação com toda a rede de proteção", finaliza.