O quarto já estava montado. Móveis, roupas e brinquedos todos a postos à espera da filha. Seis anos depois, ela ainda não chegou. Esse é o tempo que a cabeleireira Jéssica França, 49, já aguarda na fila para adoção na cidade do Crato, no Ceará.
O tempo médio de espera entre o momento que um cearense dá entrada no processo até conseguir adotar uma criança ou adolescente no Estado é de 8 anos. Desse total, o pretendente leva cerca de 1 ano só para conseguir entrar na fila, segundo o Ministério Público do Estado (MPCE).
Já em Fortaleza, apesar de estar distante do ideal, a duração do processo completo é menor: é preciso esperar, em média, 4 anos e meio para conhecer um filho e levá-lo para casa. Só para ingressar na fila, são cerca de 6 meses.
crianças e adolescentes, enquanto isso, vivem hoje em unidades de acolhimento à espera de uma família, conforme o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento.
Para Jéssica, o número alto é uma conta que não fecha. “Com tanto tempo de espera, a gente fica desmotivada. É uma demora muito grande. Abrigo não é lugar de criança. Lá ela não tem carinho, amor. Tem cuidador, que é diferente de pai e mãe”, desabafa.
A cearense deu entrada no processo em setembro de 2017, e só um ano depois entrou na fila. Há cerca de um ano, a posição dela é a mesma: 3ª no Crato, 22ª no Ceará. “Até agora não fui chamada pra nenhuma criança. A fila não anda.”
Seis anos de espera é uma criança que está crescendo. Quanto mais tempo passa abrigada, mais perde a chance de ser adotada. Arrumei tudo, passou anos e não chegou. Dei todas as roupas e brinquedos.
Durante esse tempo, em paralelo, propostas de adoção ilegal se acumularam. “As pessoas sempre diziam ‘Fulana vai ter menino e não quer, pega’. Mas eu sempre disse que não queria nada ilegal, queria tudo na legalidade”, sentencia.
“Culpa não é dos pretendentes”
Entre os motivos para a morosidade está a falta de estrutura e de pessoal no Judiciário para atuar com as adoções e cumprir os prazos legais, como aponta Lucineudo Irineu, voluntário da ONG Acalanto Fortaleza, grupo de apoio à adoção no Ceará.
“O Judiciário vai sempre dizer que a demora é porque os pretendentes só querem crianças pequenas. O que não é verdade, dados mostram que eles têm se aberto para outros perfis. Mas o Judiciário não tem cumprido os prazos previstos em lei”, pontua Lucineudo.
Faltam técnicos, equipes e celeridade. Tem criança que fica 12, 13 anos numa instituição de acolhimento. O que é preciso é uma reestruturação, que o Conselho Nacional de Justiça fiscalize o trabalho de juízes, promotores e defensores.
Além da espera em si, os prejuízos da lentidão aos adultos e aos pequenos são múltiplos. “Muitos pretendentes acabam desistindo, é uma possibilidade a menos dessas pessoas na fila. E há também o sofrimento emocional, uma incompreensão dos motivos da demora”, cita o voluntário da Acalanto.
Já para as crianças e adolescentes acolhidos, os efeitos são “imensuráveis”, como Lucineudo define.
“Os prejuízos são absurdos, desde psicológicos aos educacionais, sem falar no risco de nunca saírem das instituições, porque vão crescendo. As unidades estão lotadas, e com poucas crianças disponíveis pra adoção. São prejuízos de diversas ordens.”
“Problema está no Judiciário”
Para Dairton Oliveira, promotor de Justiça do MPCE, “o problema está exatamente no Sistema Judiciário”. “Essa é uma verdade que precisa ser dita e esclarecida para que não se culpe outros atores e com isso se produzam ações ineficazes”, pontua.
A solução para reduzir a morosidade “natural” dos processos de adoção no Ceará, segundo ele, “está exatamente em um melhor aparelhamento da Justiça da infância e na retirada de determinados direitos sociais de seu controle pelo legislador pátrio”.
A entrega legal de crianças à adoção, por exemplo, no que tange a recém-nascidos, precisa ser desjudicializada. Se a mulher resolve entregar, terá que enfrentar um moroso e constrangedor processo judicial, fora os juízos de valor e julgamentos sociais.
Outra solução, como aponta o promotor, são as audiências concentradas resolutivas, procedimentos que buscam verificar e resolver a situação de crianças e adolescentes vivendo em unidades de acolhimento.
“Elas estão previstas para ocorrer duas vezes por ano, mas passaram a ser, infelizmente, apenas mais um ato processual, uma vez que seus índices de resolutividade não chegam a 10% e elas não são ainda realizadas em todos os abrigos e por todos os juízos onde há crianças acolhidas no Ceará”, lamenta Dairton.
O promotor resume, por fim, que a palavra-chave é “prioridade”. “Deve-se estabelecer uma espécie de prioridade das prioridades, no controle dos prazos processuais das crianças acolhidas que estão dentro da janela adotiva (0 a 7 anos).”
“Perdida essa janela, a criança passa à condição de ‘pouco adotável’, saindo de uma expectativa de adoção concreta, para uma expectativa de adoção incerta e um possível futuro de institucionalização perene até completar 18 anos”, complementa.
O que diz o Judiciário
O Diário do Nordeste entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) para questionar quantas comarcas atuam, hoje, na área de adoção; e quais os possíveis fatores para a falta de celeridade em efetivar os processos em Fortaleza e no interior.
Até esta publicação, o órgão não enviou resposta.