Fortaleza, dia 9 de junho de 1880, 14h. Naquela quarta-feira, a capital cearense avançava rumo à modernização com a abertura oficial da Estação Central, durante o governo de Dom Pedro II. O prédio histórico completa neste mês 143 anos de pé como um observador das transformações da cidade, da primeira à última viagem de trem.
Os apitos iniciais, inclusive, foram ouvidos pelo secretário da província, José Júlio de Albuquerque, com alguns moradores. O registro foi feito pelo jornal “O Cearense”, publicado no dia seguinte e disponível no acervo da Biblioteca Nacional, consultado pela reportagem do Diário do Nordeste.
"O Cearense", naquela época, conheceu o espaço dos passageiros, as oficinas, o armazém e a casa de locomoção, e observou as máquinas em movimento. Duas bilheterias vendiam os acessos para a 1ª e a 2ª classe.
“A estação é um edifício de muito merecimento artístico, que faz honra a esta cidade e por sua solidez e elegância, acomodações e anseio de ser equiparada às melhores estações das estradas de ferro do Império”, detalhou o periódico.
A professora Angela Falcão, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora da ferrovia no Ceará, explica que a Estação foi construída ao lado do terreno onde se encontrava o primeiro cemitério de Fortaleza, o São Casimiro.
Além disso, em frente à sua entrada principal, estava a Praça Castro Carreira, que com o passar dos anos foi apelidada carinhosamente de Praça da Estação.
O espaço passou a ser chamado Estação Fortaleza em 1941, após um decreto do então presidente Getúlio Vargas. Em 1946, uma nova mudança federal deu o nome de Estação João Felipe, em homenagem ao engenheiro cearense que se tornou Ministro das Relações Exteriores no governo de Eurico Gaspar Dutra.
A Estação João Felipe significou o marco zero das linhas ferroviárias cearenses: Linha Norte em direção a Crateús, e Linha Sul em direção ao Crato.
Conforme a estudiosa, o local recebia o transporte das mercadorias que eram produzidas nos municípios próximos à Estrada de Ferro de Baturité (Linha Sul) e que, ao chegarem à Estação Central, eram escoadas pelo Ramal da Alfândega - que ligava a Estação ao cais da antiga Ponte dos Ingleses, por volta de 1910.
Com o início da construção do porto do Mucuripe, ocorre a construção do sub-ramal da Alfândega, chegando pela linha da praia até o Mucuripe. Foi através deste sub-ramal que foram levados os materiais necessários à construção do Porto do Mucuripe. Após a inauguração do Porto, esse sub-ramal foi desativado, e o Porto se ligou à ferrovia cearense através do ramal Parangaba-Mucuripe.
Além disso, a Estação funcionou também para o transporte de passageiros. Com a construção das Linhas Norte (até Crateús) e Sul (até o Crato), a locomoção de pessoas entre os municípios ganhou relevância.
Porém, os ramais alcançaram outros estados do Nordeste. Os trens ganharam até apelidos: o que ia para a Paraíba ficou conhecido como “O Paraibano”; para o Piauí, seguia o “Sonho Azul”; e o “Asa Branca” se estendia até Recife, em Pernambuco.
“Inicialmente, os dois usos ocorriam de forma concomitante, transportando mercadorias e passageiros, mas com o passar dos anos e com o aumento expressivo do volume de passageiros utilizando o trem, foi necessário separar os usos”, pontua Falcão.
Fim das atividades
O tombamento da estação aconteceu no dia 24 de abril de 1980 pelo Programa Federal de Preservação do Patrimônio. O tombamento estadual aconteceu no dia 30 de outubro de 1983, pela lei 16.237. Atualmente, a João Felipe é administrada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Passados 134 anos da inauguração da Estação Central, e 141 anos da criação do primeiro terminal de trens de Fortaleza, as atividades foram encerradas. No dia 11 de janeiro de 2014, os trilhos silenciaram para a construção da Linha Leste do Metrô de Fortaleza (Metrofor).
"Já estão sabendo das mudanças? Hoje é o último dia de embarque na estação!", anunciava a técnica de atendimento Raquel Melo, às portas da Estação João Felipe, distribuindo panfletos explicativos aos passageiros sobre o encerramento das atividades, como registra reportagem do Diário do Nordeste.
Além da função prática de transporte no cotidiano, a população também desenvolveu apego pelo espaço. "Alguns apresentam parte emocional, carinho pela história da estação. Demora até que elas compreendam", descreveu Raquel.
O aposentado Valter da Silva embarcou no trem por mais de 20 anos e sentiu saudade pelas memórias geradas pela estação. Valter contou que empresários e funcionários dividiam os vagões. "Não era para o trem ser tirado daqui", frisou.
Outros passageiros só descobriram a suspensão do trem naquele mesmo dia, como a dona de casa Silvana Barbosa e a costureira Paula Santos, moradoras do Padre Andrade. As duas lamentaram a mudança porque o trem era constantemente usado para as compras no Centro.
A velocidade e o preço baixo, como relataram, eram as principais vantagens. "Achei ruim porque vai demorar. Quando começa uma obra, ninguém sabe quando termina", ponderou Silvana.
Trens para o interior
Os trens começaram a circular entre os municípios cearenses antes mesmo da criação da antiga Estação Central, por causa do cultivo do algodão e do café. Em 1873, foi inaugurada a primeira ferrovia do Ceará, que fazia o trecho Fortaleza-Pacatuba, pela Estrada de Ferro de Baturité.
Segundo Angela Falcão, a primeira viagem de trem registrada em Fortaleza foi realizada em 30 de novembro daquele ano, quando foi tracionada a primeira composição da locomotiva Hunslet nº 1 no pátio da Estação Fortaleza.
“Essa viagem foi feita apenas por autoridades da época, convidados e funcionários e contava com três carros de passageiros. A locomotiva saiu às 17h e tinha como destino ao Arronches, atual bairro da Parangaba”, remonta.
Foram décadas de atividades até a última viagem de passageiros de longo percurso no Ceará, no final da década de 1980. A pesquisadora aponta que os intensos cortes no orçamento da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A) inviabilizaram a permanência do modal.
No dia 12 de dezembro de 1988, partiu da Estação João Felipe o último trem em direção ao Crato. Em 14 de dezembro do mesmo ano, do mesmo local, saía a última composição em direção ao município de Crateús.
Reabertura cultural
O encerramento das viagens em 2014 provocou uma mudança na dinâmica da mobilidade urbana dos antigos usuários, na leitura de Angela Falcão, principalmente diante dos incentivos à indústria automobilística e à construção de estradas. Ao mesmo tempo, a área da Estação mergulhou no “esquecimento e abandono”.
Contudo, em março de 2022, após quatro anos de restauração estrutural e modernização de prédios e galpões, o local foi reaberto como o Complexo Cultural Estação das Artes Belchior, formado pela Estação das Artes, o Mercado Gastronômico, a Pinacoteca do Ceará, o Centro de Design e o Museu Ferroviário.
Para a pesquisadora de ferrovias, é “extremamente necessário a valorização de importantes espaços como a Estação João Felipe, que ao marcar a história do povo cearense, carrega consigo uma série de fatos, memórias e lembranças que não podem ser esquecidos”.