Ceará tem 5 mil famílias de 14 cidades envolvidas em conflitos de terras no campo

Estes conflitos são a principal causa da violência praticada contra populações indígenas e comunidades tradicionais no Brasil na última década

Quase 5 mil famílias cearenses, moradoras de 14 cidades, foram diretamente atingidas por conflitos no campo em 2021. Os embates envolvem pessoas, empresas e até o poder público, em disputas por terras, água ou questões ligadas a direitos trabalhistas - no caso de trabalho análogo à escravidão.

As informações sobre o Ceará, obtidas pelo Diário do Nordeste, são preliminares e serão divulgadas no relatório “Conflitos no Campo – Brasil 2021”, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Conforme dados da CPT, foram 24 conflitos no campo registrados no ano passado nas seguintes cidades: 

  • Aracati,
  • Camocim,
  • Caucaia,
  • São Gonçalo do Amarante,
  • Crateús,
  • Crato,
  • Itapipoca,
  • Itarema,
  • Limoeiro do Norte,
  • Alto Santo,
  • Jaguaribe,
  • Jaguaruana,
  • Quixeré,
  • Mauriti

O coordenador Estadual da Comissão Pastoral da Terra do Ceara (CPT), Claudiano Sobral, critica a falta de políticas "adequadas" e o retrocesso existente. Além disso, ele aponta a impunidade nos processos e lamenta "o cenário futuro que tende a agravar tais números".

A antropóloga Rute Moraes Sousa, da Aldeia dos Anacés, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), concorda com a avaliação de Claudiano ao considerar que "nos últimos anos os conflitos de terra cresceram devido à ausência de políticas públicas".

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Foi o número de famílias atingidas por conflitos no campo em 2021, conforme balanço da Comissão Pastoral da Terra (CPT) identificou

Segundo ela, "há uma total falta de assistência para com os povos tradicionais e homem do campo. Não há demarcação de terra, não há lei, não há amparo e, assim, os conflitos vão se avolumando ano após ano".

O avanço do capitalismo nos afeta diretamente. As terras são invadidas e, por mais que lutemos, não temos força para reverter este cenário.
Rute Moraes Sousa
Antropóloga e liderança indígena

Rute completa que, na mediação destes conflitos, "os únicos apoios, ainda que não periódicos, são da Pastoral e Ministério Público". "Temos contribuições de outros órgãos, mas sem lei, sem políticas efetivas, essas contribuições acabam não sendo muito efetivas", conclui. 

Um desses órgãos é a Defensoria Pública do Estado do Ceará. O defensor público José Lino Fonteles Silveira, supervisor do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), esclarece que a atuação do órgão é residual, diretamente ativa quando há conflitos com violência.

Em disputas sem crimes, a incumbência da mediação passa a ser dos defensores locais. "Quando a comunidade nos procura com algum relato de violência, boletim de ocorrência ou algo de natureza semelhante, a gente instaura um procedimento interno, intima as partes para fazer a medição", pontuou Fonteles. 

Na avaliação do supervisor do Nuham, estes conflitos "têm tido uma redução nos últimos anos", tal qual a Comissão Pastoral da Terra (CPT) identificou no Brasil, cuja queda no ano passado diminuiu 13,92% em comparação a 2020.

A reportagem do Diário do Nordeste questionou ao Ministério Público Federal (MPF) no Ceará qual a participação do órgão na mediação destes conflitos e se há um balanço de eventos solucionados. No entanto, não houve retorno.

Já no site do MPF nacional, o órgão informa que conflitos relacionados a disputas pela posse, ocupação e exploração da terra são a principal causa da violência praticada contra populações indígenas e comunidades tradicionais no Brasil na última década.

Conflitos no Brasil 

Conforme o relatório  da Comissão Pastoral da Terra (CPT ), “Conflitos no Campo – Brasil 2021”, no ano passado, foram registrados 1.768 conflitos no campo, envolvendo questões ligadas à terra, à água e aos direitos trabalhistas, um total de 897.335,00 pessoas.

O número de conflitos ano passado diminuiu 13,92% em comparação à 2020 que registrou 2.054 ocorrências de acordo com o levantamento da CPT.

Deste total, 641 conflitos, quase metade (49,9%) dos conflitos por terra em 2021, ocorreram na Amazônia Legal, que também registrou 124 conflitos por água e 54 números de ocorrências trabalhistas envolvendo trabalho escravo.

O levantamento aponta ainda que em 2021 foram registradas 109 mortes em decorrência de conflitos, o que significa um aumento de 1.110%. Do total, 101 mortes foram registradas no estado de Roraima. 

Entrevista com coordenador Estadual da Comissão Pastoral da Terra do Ceara

Diário do Nordeste: Como é registrado, oficialmente, este conflito? 
Claudiano Sobral: Os registros são feitos por agentes da Comissão Pastoral da Terra, com depoimentos, boletins de ocorrências, registros de documentos encaminhados a justiça e órgãos de defesa dos Direitos Humanos, bem como através da clipagem de notícias dos meios de comunicação e das denúncias diretas das comunidades. 

Diário do Nordeste: Quais órgãos e/ou entidades realizam a mediação destes conflitos? 
Claudiano Sobral: Os causadores dos conflitos são empresários, fazendeiros, madeireiros e até o próprio Estado. Muitas vezes a mediação se dá por meio da justiça, que nem sempre é imparcial nas duas decisões e não conhece a realidade local.

As organizações de apoio e assessoria às resistências das comunidades constituem-se, em si, as mediadoras nesse processo, assim como o Ministério Público Federal e as entidades de Defesa dos Direitos Humanos.

Diário do Nordeste: Como a Comissão Pastoral da Terra do Ceara atua na mediação destes conflitos?
Claudiano Sobral: Pastoral acompanha as comunidades nas suas denúncias, também encaminha as denúncias aos órgãos públicos, presta assessoria jurídica em muitos casos e articula as entidades de apoio. A CPT não apoia os conflitos, pelo contrário, tem atuado para que o conflito seja resolvido e as comunidades tenham seus direitos garantidos.

Diário do Nordeste: Quais as principais razões que explicam este alto número de conflitos no Ceará?
Claudiano Sobral: Primeiramente sem nenhuma dúvida são os retrocessos, a retirada de direitos e ataques permanentes do Governo Federal aos pequenos agricultores, sem terras, assentados, acampados. Um verdadeiro desmonte nas políticas e nos programas voltados para a reforma agrária tem se intensificado nos últimos três anos.

Diário do Nordeste: Este número de conflitos tem crescido nos últimos anos?
Claudiano Sobral: A violência no campo no País é refletida, automaticamente, nos estados, e essa violência não ocorre a toa. É resultado direto da política do Governo Federal que, não satisfeito em atingir os maiores níveis de desmatamento e queimadas da década, promove ainda a violência no campo em níveis recordes.

Nos números de conflitos não se observa um aumento significativo, por outro lado é perceptível o aumento de famílias envolvidas nesses conflitos. A nossa análise é de que essa situação pode ficar pior por que o Governo [Federal] busca aprovar vários projetos de lei que vão trazer mais violência no campo.

Diário do Nordeste: Historicamente, estes conflitos têm bom índice de resolubilidade?
Claudiano Sobral: A impunidade ainda é um fator que permeia os conflitos no campo. Há conflitos que se arrastam por muito tempo. Não conseguimos mapear ainda com dados todos os conflitos e seus desdobramentos, mas no caso de assassinatos no campo, foram 1.509 casos e apenas 128 casos foram a julgamento e apenas 37 mandantes condenados entre 1985 e 2020.