Uma casa desabada e 40 alagadas no Poço da Draga. Dez casas com rachaduras no Moura Brasil. Riacho Doce e lagoa do Papicu subindo de nível e invadindo residências do entorno. Eletrodomésticos queimados, documentos molhados e patrimônios de uma vida perdidos. Esse é o cenário de diversas comunidades da periferia de Fortaleza atingidas por fortes chuvas desde o último sábado (10); muitas famílias precisaram, inclusive, deixar as moradias.
Segundo a Defesa Civil de Fortaleza, foram registradas 104 ocorrências de sábado (10) a terça-feira (13), entre riscos de desabamento, desabamentos, alagamentos e inundações na capital cearense. Não houve nenhuma notificação de vítimas com maior gravidade no período.
Rosineide Ferreira, de 60 anos, sente as dores da perda da moradia, onde viveu 17 anos na comunidade do Poço da Draga, na Praia de Iracema, e das feridas nas costas, braços e pernas, resultado do desabamento na madrugada do domingo (11), após voltar do trabalho.
"Não deu tempo de nada, só de livrar a cabeça e as coisas já foram caindo nas minhas costas", relatou a vendedora ambulante em entrevista. Rosineide morava sozinha no local e ainda não conseguiu nem mesmo procurar ajuda médica.
O Diário do Nordeste voltou a conversar com a vendedora que agora está na casa vizinha de onde morava, espaço cedido pelo dono para que ela possa se restabelecer. Ela recebeu a proposta de aluguel social, mas pretende permanecer na comunidade e usar o benefício para pagar o proprietário do imóvel onde está.
“Na casa velha não entro mais com medo de arriar por cima de mim, o pessoal da Defesa Civil queria que eu ficasse quatro meses em aluguel social. Não tenho como procurar um canto, não posso nem andar (direito)”, conta sobre a situação. O valor pago de aluguel social é de R$ 420.
A vendedora perdeu todos os móveis e eletrodomésticos. No momento, a prioridade é repor a máquina de lavar e a geladeira. Os documentos estão expostos ao Sol porque ficaram completamente molhados. “Aquela cena horrorosa não sai da minha cabeça", resumiu sobre o desabamento.
Rosineide recebeu duas cestas básicas, rede, lençol e toalha, mas busca uma resposta sobre a possibilidade de reconstruir a moradia. “Longe daqui eu não quero, sou uma idosa, trabalho no Dragão do Mar (com a venda de drinks) e eu não posso ir para longe, não tenho condições de andar muito e nem de pagar transporte”, completa.
Além de Rosineide, outras cerca de 40 famílias perderam móveis e pertences com a água que entrou nas casas no Poço da Draga, segundo lideranças e moradores do local.
Ocorrências no período chuvoso
No sábado de Carnaval (10), no entanto, o acumulado de precipitação foi o maior em 20 anos: 215 milímetros (mm) em 24h. Entre o domingo (11) e a segunda-feira (12), Fortaleza teve mais um dia de chuvas intensas com 112 mm, segundo monitoramento da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).
Ainda na metade deste mês, o número de ocorrências já se aproxima do total de fevereiro de 2023, quando 124 casos foram atendidos pela Defesa Civil municipal. Em março do ano passado, com chuvas acima da média, houve 203 ocorrências.
Durante o Carnaval deste ano, os bairros mais afetados foram Aerolândia, Aldeota, Barra do Ceará, Centro, Cocó, Cristo Redentor, Edson Queiroz, Fátima, Jacarecanga, Jardim Iracema, Joaquim Távora, Meireles, Montese, Parreão, Parquelândia, Parque Araxá, Papicu, Praia do Futuro, Vila União e Vila Velha.
Para monitorar os pontos críticos da Cidade e as áreas mais atingidas pelas chuvas, desde sábado, a Prefeitura de Fortaleza montou uma força-tarefa formada pela Defesa Civil, secretarias da Infraestrutura, Gestão Regional e Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC).
No bairro Moura Brasil, 10 famílias impactadas por uma cratera aberta numa rua, devido às fortes chuvas no último sábado (10), são acompanhadas e ainda não têm previsão de retorno para as casas.
Os moradores foram removidos do local pelo risco de desabamento, porque a via tem muitas rachaduras e passa por obras de contenção. Elas aguardam análises técnicas para saber se será possível voltar a habitá-las.
As residências ficam na Rua Adarias de Lima, vizinha à construção da Linha Leste do Metrô de Fortaleza. Segundo um morador, a expectativa inicial era de que eles retornassem nesta quarta-feira (14), mas ainda não houve essa sinalização.
Em nota enviada à reportagem na noite de quarta-feira, a Secretaria da Infraestrutura do Ceará (Seinfra) informou que já encaminhou um laudo detalhado para a Defesa Civil do Ceará comunicando ao órgão que as casas atingidas já estão aptas a receberem as famílias de volta.
O laudo foi elaborado pela Secretaria por meio do Consórcio FTS, responsável pela obra da Linha Leste do Metrô de Fortaleza. Após removidas, as famílias haviam sido alocadas nos hotéis Mar Aberto e Centro Fashion, no Centro.
"Dentre as medidas adotadas pela Seinfra, por meio do consórcio construtor, estão: a urgência na remoção dos moradores, para evitar danos à população e às residências próximas ao local atingido pelas fortes chuvas; montagem de força tarefa em conjunto com os órgãos de apoio, para realização da operação dos reparos, com aterramento e concretagem no local atingido", complementa o comunicado.
50 casas alagadas no Vila Velha
A chuva do último sábado invadiu 50 casas na área conhecida como Favela do Inferninho, no bairro Vila Velha. Por lá, 35 famílias tiveram perda de todos os bens que estavam dentro dos imóveis, conforme o Instituto Pensando Bem, que atua na área com ações solidárias.
Rutenio Florencio, fundador da organização, trabalha com um grupo de voluntários para doar refeições prontas no café da manhã, almoço e jantar, além de cestas básicas e eletrodomésticos para as pessoas prejudicadas.
“Nove casas estão em risco de desabamento ou foram condenadas, uma delas afundou o piso”, exemplifica sobre o trabalho feito pela Defesa Civil. “Estamos trabalhando desde o sábado e, infelizmente, essa é uma realidade comum no período de chuva. Os moradores parecem ter se acostumado”.
Das famílias afetadas, cinco estão na casa de parentes ou amigos e quatro são apoiadas pelo Pensando Bem, com ajuda de até R$ 500 enquanto aguardam o aluguel social.
Os voluntários articulam melhorias para a área e buscam estrutura para evitar a recorrência dos alagamentos. “A gente conseguiu contato com o poder público e começou uma obra de drenagem feita pela Prefeitura. No domingo, o Governo do Estado mandou a Defesa Civil e foram enviadas 45 cestas”, completa.
O dinheiro doado por meio do Pensando Bem é usado para a compra de proteínas e os voluntários buscam formar uma reserva e um estoque de alimentos. “Estamos sensibilizando porque essa foi só a primeira chuva do ano”, frisa Rutenio.
Trabalho deve ser preventivo
A Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF) também contabilizou alagamentos e famílias com perdas patrimoniais em diversas comunidades, como Pau Fininho, no entorno da Lagoa do Papicu; Riacho Doce, no Jardim Iracema, e Morro das Placas, no Vicente Pinzon.
Para o presidente da entidade, Ivan Batista, o número de ocorrências é reflexo da falta de investimentos em prevenção nos meses que antecedem a quadra chuvosa, sobretudo nas históricas 89 áreas de risco da Cidade.
“Foi uma destruição total. Muitas famílias perderam móveis, eletrodomésticos, documentos. Faltou ter um plano emergencial para as questões climáticas. Os efeitos da chuva ainda estão acontecendo”, entende.
Já a Prefeitura afirma que investiu R$ 640 milhões em obras de drenagem e urbanização em mais de 700 ruas localizadas na periferia da Cidade que todos os anos registravam alagamentos, incluindo limpeza de bocas de lobo e recursos hídricos, e podas de árvores.
Segundo a gestão, 16 localidades recebem intervenções atualmente pelo Programa de Infraestrutura em Educação e Saneamento de Fortaleza (Proinfra):
- Mondubim
- Comunidade 3 de Junho (Barroso)
- Comunidade Maria Tomásia
- Sítio São João e Jagatá (Jangurussu)
- Genibaú I e II
- Barroso
- Conjunto Palmeiras II
- São Miguel
- Expedicionários II (Dendê)
- Presidente Vargas
- Comunidade Marrocos (Siqueira)
- Granja Lisboa I e II
- Comunidade Portelinha (Planalto Ayrton Senna)
- Caça e Pesca (Praia do Futuro)
- Comunidade do Inferninho (Vila Velha)
Para auxiliar as famílias impactadas, a FBFF vem arrecadando alimentos e mantimentos. A Defesa Civil do Estado também vem realizando a entrega de cestas básicas em algumas comunidades. “Também conseguimos entregar algumas coisas, mas é muito pouco pra amenizar a multidão de pessoas que precisa de auxílio”, lamenta Ivan.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o coronel Eduardo Holanda, secretário da Segurança Cidadã de Fortaleza, avalia que a Cidade "conseguiu passar bem" pela maior chuva dos últimos 20 anos, uma vez que não houve vítima ou "caso de maior gravidade". Ele destacou o papel do trabalho preventivo realizado pela Prefeitura para o período de chuvas e citou a limpeza de locais críticos. Segundo Holanda, mais de 124 canais, 25 lagoas e 5 mil bocas de lobo passaram por uma "limpeza preventiva".
"No canal do Lagamar, que historicamente alagava e transbordava, no ano passado fizemos quatro limpezas e neste ano de 2024, antes do período de chuva, fizemos mais uma limpeza", exemplifica. Ele citou, ainda, a implantação de pisos intertravados por meio do Proinfra, auxiliando a drenagem.
Holanda também destacou a redução do número de áreas críticas ao longo da atual gestão na Prefeitura de Fortaleza de 85 para 64. Ao final da atual quadra chuvosa, esse número será reavaliado. Se o problema tiver sido "resolvido" em algum ponto crítico, esse número deve diminuir.
"Em todos os pontos de sensibilidade no que se refere à Defesa Civil, esses 64, nós temos videomonitoramento 24 horas por dia, 7 dias por semana. Nós conseguimos, lá da nossa central de operações da Defesa Civil, nos antecipar. Por exemplo, quando a calha do Rio Maranguapinho, começa a subir, anteriormente nós mandávamos viatura para saber como estava o comportamento do rio ou recebíamos alguém dizendo que o rio transbordou. Hoje temos monitoramento por câmera de todos esses pontos sensíveis da cidade de Fortaleza", comentou.
Quanto às famílias que tiveram suas casas invadidas pela água, o coronel explica que há dois caminhos: o aluguel social ou o abrigo solidário em casa de parentes ou amigos, com suporte da gestão pública para o "mínimo necessário de subsistência". Posteriormente, órgãos da Prefeitura, como a Defesa Civil e a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), acompanham essas pessoas até elas poderem retornar para suas residências, caso não seja em uma área de risco.
Para o secretário, apesar de haver problemas e riscos, a Cidade está preparada para lidar com situações semelhantes à que foi vista durante o Carnaval. "Embora a gente tenha um prognóstico de que (a quadra chuvosa) desse ano seja abaixo da média, em compensação, eventos extremos ficam mais fáceis de acontecer. Mais ou menos como esse, a maior chuva dos últimos 20 anos. Mas a Prefeitura está preparada para dar a resposta à população da melhor maneira possível", afirmou.
Onde buscar ajuda
Em caso de qualquer risco, a Defesa Civil de Fortaleza deve ser acionada via Ciops, através do fone 190. Os agentes trabalham em regime de plantão, 24h, para atender as demandas da população.