A rede de saúde do Ceará lida com a dengue desde 1986, quando a doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti foi introduzida no Estado e iniciou uma mobilização de controle a partir da eliminação de criadouros. Contudo, cerca de 50 anos antes, municípios do interior do Estado iniciaram uma campanha semelhante para combater uma doença epidêmica que causou milhares de mortes na década de 1930: a malária.
Essa é uma doença infecciosa febril aguda, causada por protozoários do gênero Plasmodium transmitidos por uma fêmea infectada. Conhecido por propagar a forma mais letal da malária no continente africano, o inseto da espécie Anopheles gambiae foi detectado pela primeira vez nas Américas próximo a Natal, capital do Rio Grande do Norte, em 1930, segundo registros históricos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Porém, à época, as autoridades federais tinham como foco o combate à febre amarela no Rio de Janeiro e deixaram o Anopheles em segundo plano. Como resultado, houve um surto de 10 mil casos da doença em Natal; na sequência, o mosquito se alastrou silenciosamente pelo interior daquele estado e do Ceará, entre 1932 e 1937, causando uma epidemia na região.
Diante do desafio, o governador potiguar, Juvenal Lamartine de Faria, recorreu ao Serviço Cooperativo de Febre Amarela (SCFA) da Fundação Rockefeller - associação beneficente norteamericana de estímulo à saúde pública -, para que auxiliasse no combate ao novo mosquito. Foi iniciada uma ação emergencial bem sucedida de combate às larvas, mas o mosquito já havia se espalhado para áreas fora da atuação do Serviço.
Para a doutora em História e especialista na temática de História da Saúde e da Doença, Glaubia Arruda, que investigou a epidemia de malária no Ceará, foi a negligência governamental que permitiu o alastramento da doença para o Ceará - aliado às condições climáticas ideais para o desenvolvimento do mosquito.
“Foi considerado um escândalo porque os mosquitos não costumam migrar para outro continente sem que haja intervenção humana, mas, com a seca de 1932, eles foram deixados ao léu. Acreditava-se que ele não se adaptaria tão bem ao solo brasileiro e que seria naturalmente exterminado”, explica. Era um grande engano.
Chegada ao Ceará
De Natal, o Anopheles gambiae avançou até Mossoró, espalhando-se por todo o litoral norte do estado até a Serra do Apodi. Segundo a Fiocruz, em 1938, o Rio Grande do Norte registrou 50 mil casos de malária - cerca de 20% dos 240 mil habitantes, à época - e 5 mil mortes pela enfermidade. Em alguns municípios, mais de 90% da população ficou enferma.
No Ceará, ele se proliferou do litoral de Aracati em direção ao Vale do Jaguaribe: foram afetadas cidades como Jaguaruana, Russas, Morada Nova e Limoeiro do Norte. Em Russas, onde ocorriam cerca de 200 mortes anuais, foram registrados cerca de 14 mil óbitos por malária apenas de janeiro a agosto de 1938.
Glaubia Arruda entende que, por se reproduzir em águas paradas, o Anopheles encontrou um cenário ideal no clima quente. Afinal, a população precisava guardar grandes volumes de água em cacimbas e potes para consumo diário, além dos reservatórios de dessedentação dos animais.
Cemitérios não eram suficientes
Jornais de Fortaleza começaram a denunciar surtos de malária em Jaguaruana, à época município de União, ainda em 1937. Porém, a Capital não reconheceu o fenômeno por divergências políticas entre o prefeito da cidade e o interventor do Estado. Como resultado, a doença se espraiou ainda mais pelas regiões vizinhas e, embora haja algumas estimativas, Glaubia aponta que muitas mortes “nem foram calculadas”.
Em 1938, a crise já estava instalada. Em Russas, tiveram que criar um cemitério de emergência porque não tinham onde sepultar. Algumas pessoas nem foram sepultadas em cemitério, foram enterradas em quintais, levadas dentro de redes, especialmente porque não havia pessoas para transportar. Nem caixão tinha, porque a demanda era grande e nem todos tinham recursos.
Nem mesmo os ritos fúnebres podiam ser totalmente seguidos, pois muitos habitantes sequer apareciam nos velórios de conhecidos com receio de pegar a doença - tanto por não entenderem direito como ela funcionava quanto porque precisavam cuidar de seus próprios parentes enfermos.
A assistência profissional também foi comprometida. Autoridades políticas da época passaram a distribuir medicamentos, mas eles “eram insuficientes diante da demanda”. “Não havia profissionais ou hospitais”, diz a historiadora.
Lidando com o problema
Para tentar resolver o desastre, surgiu o Serviço de Malária do Nordeste (SMNE), em janeiro de 1939, a partir de cooperação entre a Fundação Rockefeller e o governo brasileiro. O programa contra a febre amarela foi adaptado para lidar com o novo mosquito, restrito apenas ao Ceará e ao Rio Grande do Norte, atacando principalmente os criadouros preferenciais: poças de água rasa expostas ao sol.
Conforme Glaubia, a campanha “iria se expandir para onde o mosquito fosse”. Os dois Estados possuíam centrais de cartografia que se dedicavam a mapear a expansão do Anopheles para, assim, saber onde agir.
Naquele período, a Fundação criou 3 focos de combate:
- Cordões de isolamento por terra e água: nenhum carro, carroça ou outro meio de transporte terrestre poderia passar sem antes ser fiscalizado e “expurgado”. O mesmo por vias aquáticas, onde nenhuma canoa ou navio ancorava sem passar por fiscalização. As barreiras se moviam de acordo com a presença do mosquito;
- Guardas volantes: eram responsáveis por pesquisar criadouros e eliminar larvas em espaços públicos, rios, riachos e lagoas. A hierarquia era clara: cada guarda-chefe era responsável por fiscalizar 12 guardas terrestres. Cada um desses recebia um mapa e era responsável por cobrir um raio de 5 km. Uma vez detectado um foco, sinalizava com placa e andava 3 km à frente para ver se havia expansão. Na semana seguinte, retornava ao local para saber se ainda havia focos ou não. No primeiro ano, mais de 4 mil pessoas trabalhavam na região;
- Trabalho nas casas: como agentes de endemias do passado, guardas adentravam as residências para averiguar focos do mosquito. Como tinham liberdade para “revirar tudo”, diz Glaubia, sua presença não era bem vista por parte da população. Em alguns casos, eles destruíam potes cheios de água, num contexto em que o acesso dependia de longas caminhadas até mananciais e de familiares doentes necessitados do recurso.
Um quarto movimento começou por pressão popular: a distribuição de remédios, depois da criação da categoria dos “guardas medicadores” pela Fundação Rockefeller. Mesmo sem formação médica, eles percorriam vizinhanças portando uma tabela de medidas e prescreviam as doses com base no peso e na idade dos pacientes.
Outra crítica dos moradores foi a morte de animais de rebanho, atribuídas por eles ao despejo excessivo de larvicidas na água - algo negado pela Fundação.
Ameaça para as Américas
O agente transmissor era combatido em espaços públicos e privados no Vale do Jaguaribe. Cada cidade tinha um posto de controle, mas o escritório central ficava em Fortaleza. Mais precisamente no Castelo do Plácido, construído em 1921 no antigo bairro do Outeiro, atual Aldeota, como presente de casamento do comerciante Plácido de Carvalho à italiana Pierina Rossi.
Com a vantagem da Capital, os líderes da operação podiam se comunicar diretamente com o escritório da Fundação Rockefeller em Nova York. Além disso, Fortaleza centralizava todos os mapas e relatórios de produtividade para avaliar até quando a campanha prosseguiria.
Aliás, a Fundação só decidiu intervir no Nordeste por causa da ameaça que a malária representava para todas as Américas, na leitura dos norteamericanos. À época, o Governo brasileiro já estava assumindo a campanha contra a febre amarela e não restava muito trabalho a ser feito pela entidade.
“Dada a grande incidência de mortes, começaram a construir o discurso de que o problema da malária no Brasil não era um problema só daqui, mas para a América como um todo. Nos casos gravíssimos, ela matava 1% da população; aqui na região, essa porcentagem chegou a mais de 15%”, afirma Glaubia Arruda.
Por isso, o foco da campanha no Ceará começou num sentido inverso, investigando até onde o mosquito havia chegado para eliminar os focos em direção ao núcleo. “Muito dessa intenção era não deixar o foco chegar a Fortaleza, para que a doença não se expandisse pelo porto e chegasse a outros países”, confirma a historiadora.
Em dois anos de campanha, a expansão já estava sanada e, o mosquito, erradicado nos dois Estados. Por precaução, a Fundação ainda permaneceu nos territórios até 1942. Em 30 de junho daquele ano, o Serviço de Malária do Nordeste foi extinto definitivamente.
Malária versus dengue
Traçando um paralelo entre o passado e o presente, a historiadora Glaubia Arruda percebe que o Aedes aegypti não recebeu a mesma atenção do Anopheles gambiae, provavelmente porque o número de mortes não foi tão volumoso. Afinal, o transmissor da malária foi extinto em cerca de uma década; já o vetor da dengue está no Brasil há mais de 40 anos, e bem adaptado a todo o país.
“No caso da malária, a população, as políticas públicas e as autoridades estavam todos focados no combate. Hoje, você sabe como conter a dengue, tem todos os instrumentos, mas é como se não quisesse visualizar. Enquanto todo mundo não assumir seu compromisso de conter e sanar, cada ano vai ser esse mesmo impasse. É preciso que haja essa junção de poder público e população”, conclui.