As salas de aula tradicionais têm dado lugar, no Brasil, a espaços virtuais. Em constante crescimento nos últimos 10 anos e impulsionado pelo contexto da pandemia da Covid-19, o ensino à distancia (EAD) oferece aos estudantes custos mais baixos e mais flexibilidade de horários. Contudo, essa mudança tem despertado preocupação no Ministério da Educação (MEC), que vê a própria formação de professores migrando para os ambientes on-line.
Segundo dados do Censo da Educação Superior 2022, no ano passado, 7 em cada 10 pessoas do Ceará que ingressaram em um curso de licenciatura — que permite ao estudante dar aulas no ensino fundamental, médio e profissionalizante — optaram pelo EAD.
As informações foram divulgados pelo MEC na última terça-feira (10) e mostram que, dos 28.425 ingressos em licenciaturas no Ceará, 20.140 foram em cursos EAD — aproximadamente 71% do total. É a maior quantidade de ingressantes do Estado em cursos de formação de professores nessa modalidade de ensino desde o início da série histórica, em 2010. A segunda maior quantidade foi registrada em 2020.
Marco histórico
O ensino à distância como um todo teve um rápido crescimento no Brasil: entre 2018 e 2022 houve um aumento de 189% no número de cursos EAD oferecidos no País. No ano passado, o total de ingressantes nessa modalidade ultrapassou a marca histórica de 3 milhões de pessoas, considerando as graduações de todas as áreas.
Esse movimento foi classificado como “alarmante e desafiador” pelo ministro da Educação, Camilo Santana, que informou que foi determinada a reavaliação de todo o marco regulatório do EAD no País.
O gerente de políticas educacionais do Todos Pela Educação, Ivan Gontijo, aponta que essa expansão “descontrolada” é um fenômeno específico dos cursos de formação de professores.
Pedagogia, por exemplo, é o curso com maior quantidade de profissionais formados na modalidade EAD em todo o País, com ampla vantagem em relação aos demais integrantes do ranking. Só em 2022, o total de pedagogos formados à distância foi mais que o triplo do número de profissionais da Administração, curso que está em 2º lugar.
Entre os elementos que explicam esse cenário, Gontijo cita a alta demanda por cursos de formação de professores, o perfil de alunos — que normalmente precisam conciliar estudo e trabalho — e a alta taxa de lucro dos cursos EAD para as instituições.
“Mas precisamos colocar a questão do interesse social que o Brasil tem em formar bem os seus professores. Um professor vai ensinar milhares de alunos ao longo da sua vida. Se ele for mal formado, qual o custo que isso vai ter para o País? Por isso que o MEC precisa entrar forte na questão da regulação”, questiona.
Perda de qualidade
Na última quarta-feira (11), o Todos Pela Educação publicou um levantamento sobre o assunto com os dados do Censo da Educação Superior 2022 e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) aplicado em 2021. A análise mostra que a quantidade de professores formados por cursos na modalidade EAD dobrou na última década e que a qualidade desses cursos vem caindo ao longo dos últimos anos.
Gontijo afirma que, segundo o levantamento, os estudantes de Pedagogia e Licenciaturas na modalidade EAD têm resultados piores no Enade do que os estudantes do modelo presencial. “Então, existe uma evidência de que eles estão tendo uma formação deficitária”, afirma.
Sem “demonizar” o ensino à distância, o gerente de políticas educacionais do Todos Pela Educação aponta que essa não deve ser a principal estratégia de formação de professores.
Se queremos mudar a Educação Básica, a forma como os professores ensinam, melhorar de forma substancial a formação inicial de professores é uma agenda fundamental. No Brasil, o que está acontecendo é que, por interesses privados, estamos deixando essa questão no segundo plano. E o custo talvez não apareça hoje. Mas daqui a 10 anos, por exemplo, quando a grande maioria dos professores brasileiros vão ter sido formados em EAD, qual vai ser o custo disso para o País e para a aprendizagem das crianças? Provavelmente vai ser muito alto.
Outro levantamento do Todos Pela Educação, publicado no último mês de setembro, aponta que a maioria dos concluintes dos cursos de licenciatura ou não realizou o mínimo de horas exigido para o estágio curricular obrigatório, ou sequer fez o estágio obrigatório no Brasil. Essa análise também utilizou os dados do Enade, que avalia o rendimento dos concluintes dos cursos de graduação, aplicado em 2021.
O estágio é obrigatório tanto para os cursos presenciais quanto para a modalidade à distância. Porém, para Gontijo, no EAD é “muito mais frágil”. “O estágio não é só ir lá na escola. Também é você ver os casos que você vivenciou na escola com o professor, ter espaço para trocar as experiências com outros alunos”, afirma.
A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) também aponta preocupação com esse cenário. Em um posicionamento público a favor da valorização dos profissionais, a entidade cita o “aumento significativo do número de concluintes em cursos à distância” como um dos principais problemas na formação inicial de professores.
Além disso, também são listadas a baixa qualidade geral dos cursos, as altas taxas de evasão de alunos de Pedagogia e Licenciatura e a ausência de uma política de incentivo para os cursos presenciais. No documento, a Undime aponta a necessidade de se efetivar uma política nacional de valorização dos profissionais da educação, com piso, carreira e formação inicial e continuada.
A formação inicial de professores, cuja oferta é de responsabilidade da União, é um tema crucial para a melhoria da qualidade da Educação Básica, afetando diretamente as redes públicas de ensino, principais responsáveis pela contratação de docentes no País.
No documento, a Undime aponta “entusiasmo” com a retomada do Comitê Gestor Nacional para Acompanhamento da Política Nacional de Formação de Profissionais de Educação pelo MEC e a criação de grupos de trabalho para tratar desse assunto. A entidade também cita a expectativa de que sejam efetivadas medidas estruturais e céleres.
Necessidade de mudanças
Ivan Gontijo afirma que a formação de professores deve ser uma agenda do Ministério da Educação e exige prioridade política. “Tem muitos interesses envolvidos por trás, então o Ministério precisa abraçar essa pauta. Se é um Ministério comprometido com uma educação de qualidade, ele não pode admitir esse número de professores formados no EAD no Brasil”, diz.
Para ele, é preciso melhorar a forma de avaliação dos estudantes, por meio do Enade, e dos próprios cursos, além tornar a regulação mais rígida para a abertura dessas graduações na modalidade EAD.
Hoje em dia, a forma como os indicadores são montados permite, por exemplo, se um curso EAD que os alunos que foram mal no Enade contratar um pouco mais de professores doutores ou comprar mais livros para a biblioteca, ele não fique com uma nota tão ruim, e aí a regulação não vai direto nele.
No evento em que os dados do Censo da Educação Superior 2022 foram divulgados, Camilo Santana citou algumas medidas voltadas para a formação de professores. Entre elas estão a destinação de 40% das vagas remanescentes do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para as licenciaturas e a criação de um financiamento diferenciado para esses cursos.
O objetivo, segundo o ministro, é estimular a formação de profissionais não apenas em Pedagogia, mas em áreas como Matemática e Física. Esses são alguns dos cursos que, segundo os dados do Censo, têm baixa taxa de conclusão.
O MEC está preocupado com esses números, mas que só podemos melhorá-los se todos nós — instituições públicas, privadas, sociedade, conselhos — dialogarmos e construímos os passos para melhorar a qualidade do acesso, para cumprir as nossas metas e a qualidade da formação dos nossos profissionais nas instituições de ensino superior do Brasil.
Camilo Santana também apontou a intenção de aperfeiçoar o Enade para esses cursos já em 2024, com reformulação dos testes, realização anual do Exame e avaliação do estágio supervisionado.