“O software livre não é uma questão técnica, é social´

Alexandre Oliva é conselheiro da Fundação Software Livre América Latina (FSFLA) e tem como luta a liberdade do mundo virtual. Acredita que a conscientização da sociedade para as dependências vai libertá-la do escravismo digital. ´O único jeito de alcançar a liberdade é permanecer atento´, alerta.

O brasileiro já sabe o que é software livre?

Acho que ainda tem muito desconhecimento, porque muita gente não sabe nem o que é software. Tem gente que acha que software livre é aquela coisa esquisita que vem no ´Computador para Todos´ e você instala um Windows pirata por cima. Mas há um grupo pequeno de pessoas que entende a importância, não só do ponto de vista tecnológico ou do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista social. Este é o movimento do software livre.

Se têm o trabalho de copiar o Windows pirata, por que as pessoas não optam pelo programa já instalado?

Porque as pessoas têm medo, porque não conhecem. Porque tem toda uma indústria monopolista interessada em preservar este monopólio, e que não tem medo de dizer que as pessoas vão achar difícil, que não vão conseguir usar, que vão ter problemas e vão se sentir muito melhor usando o produto deles e pagando por isso.

Como surgiu o movimento de software livre?

O software desde o início era livre. Quando fizeram os primeiros computadores programáveis, nos anos 50, 60, o software era livre. As pessoas escreviam o software e este era só um acessório a mais para fazer o computador funcionar. E as poucas empresas e universidades que compravam estes computadores, recebiam o software de uma maneira que podiam estudar, entender como funcionava, modificar e compartilhar estas modificações com outros. Assim, eles podiam usar o software para a finalidade que eles quisessem. Isto resume as liberdades que caracterizam o software livre.

E o software proprietário?

No início dos anos 80, Bill Gates escreveu uma carta para a comunidade de programadores perguntando como iríamos ganhar dinheiro, se as pessoas podem compartilhar o software. E ele lançou um modelo para minar o valor de compartilhar. Ele lançou o modelo: ´o meu interesse privado é mais importante do que o interesse da sociedade´. Ganhou muito dinheiro com isso. Não tem nada de errado em ganhar dinheiro. O errado é impedir pessoas de fazer coisas boas para a sociedade.

Como seria este impedimento?

Existe uma enorme indústria que se baseia no cerceamento de liberdades com mecanismos de criação de dependência. Você fica à mercê do que eles te oferecem, de modo que se precisa que o programa faça uma coisa diferente, o único recurso é a empresa que te forneceu. Ou comprar outro programa, e, às vezes, significa abrir mão todas as informações que você armazenou usando o programa antigo. A não ser que abra mão de tudo o que você codificou.

Por que os consumidores não mantém o Linux que vem nos computadores e preferem piratear o Windows?

A razão principal é a inércia. É o (conceito) da física, e que você tenta colocar o objeto em movimento e ele resiste. As pessoas são assim, mudar é difícil. Toda mudança é difícil para as pessoas. É preciso que a pessoa tenha muito confiança em você para acreditar que dar este passo vai ser bom pra ela. Enquanto tem um monte de gente, como o vendedor do ´Computador para Todos´ e as empresas monopolistas de software proprietário, dizendo: ´a gente instala aqui o Windows para você, porque o GNU-Linux é difícil´.

As políticas públicas de incentivo ao software livre surtem o efeito programado?

Sim, e é clara essa mudança. Se você olha para o mercado de computadores como todo no mundo, você vai ver que os usuários de GNU-Linux são cerca de 3% dos desktops dos usuários finais, no mercado de servidores é bem mais do que isso. Um exemplo é o ´Computador para Todos´, que vem com o sistema operacional GNU-Linux pré-instalado, onde pesquisa mostra que 75% mudaram para Windows. Quantos sobram? 25%. São oito vezes mais do que a média mundial. E isso vai virar uma bola de neve, porque cada vez mais gente está percebendo que é uma coisa boa e fácil de usar.

Existe problema com a qualidade do GNU-Linux?

Existe uma outra faceta dessa situação. Os fornecedores do ´Computador para Todos´ não têm nenhum compromisso com a qualidade do sistema operacional que eles instalam nesses computadores, porque não existe uma fiscalização do Governo Federal de que o sistema operacional que está instalado lá de fato funciona. Os produtos estão indo para o mercado quebrados.

Você faz parte de uma entidade internacional de software livre, como funciona?

Sou um dos fundadores da organização da FSFLA (Fundação Software Livre América Latina), irmã da que Richard Stallman criou nos EUA em 1985. Ainda, como organização muito nova na AL, somos um grupo de pessoas. Não existe ainda uma pessoa jurídica. Em 2005, nos reunimos fisicamente pela primeira vez e declaramos fundada a organização. A decisão mais recente é que não vai existir uma organização jurídica FSFLA, mas braços jurídicos nos países em que isso faz sentido. A gente trabalha juntos por um ideal bem definido, temos uma estrutura interna, mas não quer privilegiar nenhum país para ser a sede.

As linhas de ação?

Temos atuação junto às comunidades de softwares. Publicamos artigos, fazemos palestras, e levamos a mensagem do software livre com participação em fóruns não-especializados. O software livre não é uma questão técnica é uma questão social. É de respeito à sociedade.

Uma questão social?

Um exemplo é o escravismo. Há pouco mais de um século era moralmente aceitável na sociedade e legalmente permitido você cercear a liberdade de um ser humano só porque ele tinha a pele escura. Hoje sabemos que é um absurdo, entendemos que é moralmente inaceitável você criar duas classes de pessoas: as donas e as escravas; quem controla e quem é obrigado a fazer tudo o que o outro quer. Isso acabou, só que não no mundo do software. Lá existem duas classes: a classe daqueles que controlam a tecnologia e a daquelas pessoas que se tornam escravas dela.

Como a indústria de discos e os piratas?

Nesta linha. É o controle de quem detém o poder econômico e o poder de influenciar as decisões que dão sustento e, para isso precisam de leis para que eles poderem fazer valer estas obrigações. A lei não determina o que é certo ou errado, mas o que é punível. O que determina o que é certo ou errado, é a moral. E a lei tenta espelhar a moral, mas ela falha. Às vezes não consegue capturar nuances do que a sociedade considera o que é certo ou errado. Às vezes a lei cede às pressões econômicas tenta impor à sociedade uma noção que não corresponde ao que a sociedade entende sobre o certo e o errado, logo o que acontece é que a sociedade rejeita a lei. O próprio agente, que deveria exigir o cumprimento da lei fica sem graça de fazer valer isso, se ele mesmo não faz e acha que é errado, a lei não pega.

Dê um exemplo.

Um exemplo é o Zune, da Microsoft, tem música que já está em domínio público ou cujos autores disponibilizaram para todo mundo e você pode compartilhar desde que nos mesmos termos. E quando a música é convertida para o formato secreto deste equipamento da Microsoft, ela impõe restrições para copiar, e isto está violando a vontade do autor original. Há no Brasil uma legislação que diz que se um titular de direito autoral colocar medidas de controle digital, de restrições, você quando tentar contornar estas medidas você é um criminoso. Há países que é crime até você ter ferramentas ou fazer pesquisas para saber como funciona é crime.

Há a questão da segurança?

O software que você não sabe o que faz é um cheque em branco. Os Estados Unidos deixaram de comprar computadores da chinesa Lenovo, que em 2005 adquiriu a linha de notebooks da IBM (fornecedora oficial até então), e os EUA decidiram deixar de comprar, porque eles têm medo que a China obtenha informações do que eles estão fazendo. Mas isso um hardware, que é uma coisa mais fácil de investigar, mas tangível que um software, que te dá uma possibilidade de controle escondido muito maior.

E quais outras linhas?

Temos uma campanha contra softwares impostos. Começamos com foco no programa do Imposto de Renda da Receita Federal, o Governo exige que algumas pessoas usem o programa que não é livre, significa que eu não posso estudar o que o programa faz. Se alguém quiser uma coisa com o CPF é do Alexandre Oliva, pode não deixar sequer eu preencher as informações. Acusar CPF inválido. Ou então posso preencher as informações e o que está vendo na tela pode não ser a informação que está armazenada.

O cidadão tem que saber o conteúdo do programa?

Sim. É uma questão de transparência. Pela Constituição Federal eu tenho o direito de receber de qualquer órgão público informações sobre assuntos de interesse pessoal ou de interesse público que não ameacem a segurança nacional e nem a privacidade de outras pessoas. Quando eu mando minha declaração, recebo um recibo que não entendo. Sei que o número do recibo já estava na declaração que eu enviei e eu não sei como foi calculado. Se for mover uma processo contra a Receita para quem eu vou pedir a informação que eu preciso? É dormir com o inimigo.

Mas é uma questão de segurança?

Como, se o programa roda no meu computador? Eu peguei o programa que eles distribuíram , transformei de volta para o código-fonte e fiz modificações e publiquei para que todo mundo pudesse usar esse programa e está sob uma licença de software livre. E, assim, eu pude cumprir minha obrigação fiscal sem desrespeitar minhas convicções filosóficas, que eu tenho direito pela Constituição Federal.

Isso nos remete às urnas eletrônicas?

A urna eletrônica é mais complicada porque não é só o software que roda na urna — que já é um problema, porque no mundo inteiro as pessoas que têm acesso encontrando problemas de segurança —, mas no software totalização, aquele que recebe os resultados das urnas. Ninguém vê. É uma piada a recontagem de votos. A urna não pode gravar sobre cada voto, senão iria identificar as pessoas, aí ela grava um total. Daí só resta somar para dar o mesmo resultado. Mas o mais surpreendente é que às vezes não dá.

E a polêmica dos padrões?

Estamos com uma campanha para padrões abertos livres. Para que os governos publiquem seus arquivos em vários formatos. Não só o .doc, que é uma atestado do Governo para que as pessoas comprem o Office, da Microsoft. Enfim, padrões abertos livres são documentados por organizações de padronização internacional, documentado e que qualquer um pode saber como faz e ninguém pode se opor ao uso deste padrão. São padrões de texto (OpenDocument Format- ODF), planilha e apresentações, aprovado pela ISO e em processo de produção.

E a reação da Microsoft?

Eles reagiram à chegada deste outro padrão. E ela já existem várias implementações deste padrão ODF para o Office da Microsoft. E ela pode, incorporar o produto, mas não quer fazer isto. Resolveu publicar a forma que guarda a informação, e escreveu um documento de sete mil páginas(que está incompleto) que faz referência à várias tecnologias exclusivas da Microsoft que viola outros padrões internacionais, e publicaram em um dos órgãos de padronização internacional. E isso está em discussão hoje entre os órgãos de padronização. Encontrando um monte de erros e um monte de dependência que não poder ser uma padrão aberto livre e, mesmo assim, tem risco de que isso seja aprovado.

Por que é ruim dois padrões?

Porque dá mais trabalho. Imagine o Governo ter que publicar todo documento em dois formatos diferentes e para preservar a informação para possibilitar o acesso daqui a 20, 50 anos. É dizer que para compartilhar informações, tem que ter programas que falem a mesma língua. Se um pessoa escolhe um padrão e outra pessoa outro padrão, não conseguem se comunicar. Vocês não falam a mesma língua.

Essa coisa parece uma Matrix, com medos de vigilância... Parece que estamos em um Big Brother. Isso não é exagero?

Não sei te dizer... Pode ser que não, pode ser que sim. Eu só queria poder saber.

Adriana Santiago
Editora