O mercado do autoconhecimento: o ChatGPT, a grávida e a sua mãe

Legenda: Marketing/SVM

O telefone toca, o gerente da loja atende e escuta a voz de um homem furioso dizendo “vocês estão encorajando minha filha a engravidar”. Sem entender o que estava acontecendo, o gerente pede desculpas e toma a atitude de cancelar o envio de marketing direto para o endereço da filha do reclamante.

Se tratava de uma série de ações de comunicação feitas pela loja Target nos Estados Unidos, que estava trabalhando ações de predição de consumo de seus clientes com base nas compras feitas pela filha do “pai furioso”.

Não se trata de um caso novo. Ele é muito bem descrito no livro O Poder do Hábito, de Charles Duhigg. 

O fato é que os dados da empresa concluíram que as compras feitas pela filha indicavam que ela poderia estar grávida, algo que o pai jamais teria cogitado. A verdade é que ela realmente estava.

Empresas apoiadas pelo poderosão big data evoluem de forma exponencial, e hoje conseguem até escrever por nós, como a nova ferramenta adquirida pela Microsoft, o ChatGPT, que está na boca do mundo ultimamente. O que se pode concluir de forma muito resumida é: não dá pra lutar contra, basta entender que é uma ferramenta nova e com ela iremos nos adaptar.

Assim, tem sido a humanidade desde a descoberta do fogo e todas as suas utilidades, seja para assar a carne do almoço, seja para produzir a viga de aço que faz o prédio que você mora ficar em pé, seja para realizar a delicada tarefa de estética facial com equipamentos que se utilizam da indução de calor.

O ChatGPT está ainda na fase do “assar a carne” o que significa que muita coisa ainda está por vir.

Você já imaginou que o hábito de pesquisar uma informação no Google e não precisar catar em inúmeros sites até construir nesse mix de links a resposta desejada pode ser trocado por uma pergunta de conversa de bar com o prompt do ChatGPT? Que você pode ter tudo prontinho e já mastigado?

Então, talvez a era do “dá um Google aí” esteja entrando no momento comum para tudo na vida, que é a substituição por algo mais moderno, simples e barato.

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Ocorre que, desde que a Kodak, Xerox, Yahoo, Olivetti e Atari perderam seus reinados, o entendimento de que o mercado se movimenta e nós temos que acompanhar para sobreviver, nunca esteve tão em alta.

Perderam por serem arrogantes, por acharem que tinham tudo na mão, que ninguém sabia mais do que eles, como diria Haroldo Guimarães, que eles eram os “bichão”.

Tudo bem que o Google vai lançar de novo o tal do Bard, após resolver as falhas do lançamento frustrado.

O ponto é que quem entrega uma função e não um desenvolvimento mútuo tende a ser substituído. Essa é a magia do mercado de dados, pois ele é feito de forma colaborativa no mundo digital.

Sim, a tecnologia evolui e sabe muito sobre nós, mais do que nós mesmos. Nasce então a questão mais relevante e pouco discutida que é o quanto você conhece de si? Não estamos falando aqui da questão do consumo e quanto você sabe sobre o que deseja comprar. Não estamos falando do seu exame de sangue e o quanto você sabe sobre o seu colesterol. Não estamos falando daquilo que você apura por meio de especialistas ou compra ou deseja comprar. Estamos falando de conhecer seus limites, seus medos, suas alegrias e seus melhores momentos. É sobre o que te faz bem. E como esse bem te faz evoluir dentro do seu ecossistema social. 

Então, esse mercado é gigante e tem se tornado, com o passar dos anos, bilionário. Em 2022, o mercado do autoconhecimento faturou US$ 13 bilhões nos EUA. Livros de autoajuda, coach’s de alta performance, yoga, terapias holísticas, mindfulness, cursos em universidades, retiros espirituais e o mais consagrado, científico e evoluído trabalho da psicologia. Todas ofertam soluções para um mundo onde pessoas, que na década de 90 queria atingir o máximo possível, hoje buscam descobrir os próprios limites.

Em uma sociedade em que crianças de 5 anos sabem mais sobre o mundo que os faraós, saber até onde a mente aguenta virou um mercado que não parece ter limite para crescer. A sociedade descobriu que para se conhecer foi necessário se entregar a colaboração, ter apoio dos outros, entender que pensar que você era o “bonzão”, o “sabe tudo” não está funcionando mais na sociedade da informação. Não basta mais saber das coisas, tem que entender o que se pode construir com esse novo dado aprendido. 

Quem sabe mais de você? Você ou a inteligência artificial? 

Um ponto forte nessa busca pelo autoconhecimento é a capacidade de gerar um certo desapontamento em pessoas do seu entorno. Pois é, assim como dados colocam em segundo plano aqueles que não agregam muito na receita, na Sociedade do Cansaço (termo muito bem explanado por Byung-Chul Han, no seu livro que usa esse termo como título) as pessoas também estão aprendendo a retirar do seu entorno quem não agrega. É o correto? Depende do caso de cada um.

Ajudar o próximo sempre será uma máxima da humanidade que não podemos deixar jamais de praticar. Só que tem cidadão na terra que não está muito afim de ajuda, quer mesmo é tudo na mão.

São os conhecidos vampiros sociais, seres que enxergam uma utilidade no outro e não tem necessariamente uma empatia. Se a sua utilidade não tem mais valor, você não tem mais motivo de estar por perto.

Por isso, que o autoconhecimento tem tanta força na sociedade hodierna, pois ajuda a entender não só que funções estamos prontos para entregar, mas, principalmente, que construções estamos aptos a desenvolver. Isso tem um valor muito maior e, apenas enxergando suas potencialidades, que a coisa vem. Não basta saber, importa fazer, e fazer sozinho não é tão simples em um mundo tão competitivo. 

Quando olhamos para nós mesmos, começamos a deixar de olhar para o outro e entender melhor o entorno. Por isso, que as redes sociais são tão banalizadoras em nossa sociedade, pois a comparação ganha mais força que a compaixão.

Não são pessoas ao redor apenas e como elas estão, é o ecossistema e isso fará falta em quem se acostumou a ser olhado e cuidado por um terceiro e não teve que se preocupar nunca com o autocuidado.

Você pensou na sua mãe?

Então, talvez seja a hora de você assumir as responsabilidades de adulto e tomar de conta sozinho da sua vida ou então o mais legal, retribuir tudo que ela te deu. Já passou da hora de você ser vampiro de sua mãe.

A sociedade da comparação e não da compaixão se acostumou com o conforto de não ter que decidir seus rumos. Se seu autoconhecimento não consegue ver a gratidão de quem te apoiou, você apenas descobriu o seu egoísmo, vai ficar faltando um bocado ainda para você observar quando estiver de frente para o espelho. Sem se enxergar, você não irá sair de uma asa para ter seus próprios voos. 

Os dados sabem sobre o seu ser comparado. O seu autoconhecimento sabe sobre sua paixão pelas experiências, aprendizados e pessoas. Nesse estágio, não é a sociedade do consumo que te posiciona, é a comunidade que te apoia e você corresponde. Só que tem que corresponder para fazer parte e conseguir crescer. 

O que seria ideal para você e o mundo

Se unirmos a busca por uma vida melhor que a sociedade tanto pede e tem investido bem mais. Juntarmos com os dados de mercado que o big data tanto evolui. Juntarmos a inteligência artificial para compreender o momento do indivíduo e não do mercado, talvez tenhamos não uma ferramenta que te destrói, mas uma que te ajuda a construir pontes.

O mercado tem uma oportunidade de ser um apoiador de clientes sustentáveis e não apenas tiradores de pedidos com base em desejos desnecessários que ajudam metas de empresas a serem batidas com clientes que amanhã não poderão consumir mais o básico.

Vamos olhar a sociedade brasileira, entre 2011 e 2021, perdemos 12,8% de brasileiros que eram consumidores da classe C para a estatística da linha de pobreza, os miseráveis. Os motivos dessa queda são inúmeros e vale uma análise muito profunda, mas a queda é muito substancial.

Na era do ESG, sustentar os próprios clientes com um capitalismo responsável é a resultante de clientes felizes, fiéis, de longo prazo e que você o ajuda a melhorar e ele te devolve com benefícios para sua empresa evoluir sempre e não virar uma nova Kodak.

Marcas jamais serão tão legais na hora de apoiar quanto sua mãe, obviamente, mas sendo uma marca, já será bem mais que a simples existência de uma transação comercial se ela puder entender suas dores para além do produto.

E a menina grávida da Target? Bom, acho que o autoconhecimento do corpo tava em falta e aquela educação de autoajuda que muitos criticam, talvez tivesse sido oportuna. O pai? Bom, esse não conhece a filha, a loja e nem a si mesmo. Talvez o neto ajude a conectar a todos, pois ele terá mais uma vez a oportunidade de construir pontes junto com os seus, seja com um genro ou não.

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