Realidade de incertezas difícil de ser esquecida

Brasileiros que eram economicamente ativos na década de 1990 têm viva a lembrança da época de hiperinflação

Escrito por Redação ,
Legenda: Antes do real, os preços oscilavam muito e a carne era um dos itens mais caros
Foto: Foto: JL Rosa

Independentemente da profissão ou da condição financeira, conviver com uma inflação de mais de 2.000% ao ano é uma realidade muito difícil de esquecer. Preços variando diariamente, poder de compra cada vez mais baixo e salários deteriorados são apenas algumas das lembranças mais fortes para os brasileiros economicamente ativos no fim da década de 1980 e início dos anos 1990. Os anos antes ao Plano Real eram um época de dificuldades, de cautela e, sobretudo, incertezas.

>22 anos depois, maior desafio do Plano Real é a inflação resistente

>Cesta básica podia ser adquirida a R$ 60,55

>Lucro ou prejuízo era sempre uma dúvida

>Moeda brasileira ganha valor

"Você recebia o salário mensal, ou determinado rendimento de outras fontes que possuia, e não tinha ideia de como iria chegar ao fim do mês. Era tudo muito incerto, não tinha como você saber se conseguiria adquirir ou se manter com os mesmos produtos de antes. Sem dúvida, a realidade era altamente caótica", afirma a pedagoga Elen Azevedo.

Uma das maiores lembranças que ela tem da época é da movimentação nos supermercados. "Ninguém tinha parâmetro de nada, os preços oscilavam muito. Filas se formavam para comprar um simples produto que estava acabando no estoque, pois a reposição demorava bastante. Isso sem falar que você comprava uma produto em um mês e no outro não sabia se teria condições de fazê-lo novamente", diz.

Na época da hiperinflação, Elen morava em São Paulo e disse que ela e muitas outras pessoas deixaram de cogitar viagens. Conforme diz, era muito difícil saber se seria possível arcar com as dívidas. "Criou-se uma instabilidade financeira até com o cartão de crédito, com viagens. Como você iria parcelar algo sem saber o que esperar? Foi uma época que financeiramente deu uma dificultada para muita gente", diz a pedagoga.

Lembrança do 'gatilho'

Para o aposentado José Lopes, que já era economicamente ativo durante todo período que gerou a grande pressão inflacionária da década de 90, a principal lembrando daquela época era o chamado "gatilho inflacionário", que determinava uma correção automática dos valores assim que a inflação atingisse um determinado nível. "Isso em cima dos preços acabava com tudo. Não tinha o que fazer. A gente simplesmente vivia cada dia sem saber o que esperar", conta.

Implementado durante o Plano Cruzado, no governo Sarney, o "gatilho" é apontado por muitos especialistas como o principal causador da hiperinflação dos anos seguintes, já passava a alimentar a pressão inflacionária futura. Segundo José Lopes, o dispositivo "chegou a ser vendido como grande solução, mas não demorou para mostrar sua verdadeira face", comenta.

Comércio difícil

Ainda de acordo com o aposentado, outra lembrança bastante viva na memória é das dificuldades que existiam no comércio. "Você ficava em fila para comprar uma simples lata de leite. Para comprar três unidades, eu precisava levar mais duas pessoas comigo, pois as mercadorias eram controladas. O frango, por exemplo, era do mesmo jeito. Só podia levar um", afirma.

Conforme relembra José Lopes, a carne era um dos produtos mais inacessíveis da época, assim como o leite. Segundo ele, eram duas mercadorias caras e racionadas. "Cheguei a ver até um coronel forçar um pescador a vender mais de 1 quilo (kg) de peixe para ele. Ninguém queria vender muito", complementa.

Mudança de panorama

Com a chegada do Plano Real, em julho de 1994, a situação vivida por esses brasileiros começou a mudar. A moeda, cujas bases ainda estão refletidas no dia a dia da população, desde a ida ao supermercado até o crédito obtido, trouxe a estabilidade. Antes dele, só entre 1986 e 1994, foram sete tentativas de conter a inflação: Cruzado 1 e 2, Bresser, Verão, Mailson da Nóbrega e Collor 1 e 2, planos que funcionavam por pouquíssimo tempo.

A grande sacada do Plano Real, dizem especialistas, foi sua implementação em três etapas, sem causar um "choque na sociedade da época". A estabilização se iniciou em junho de 1993. Primeiro, veio a arrumação da casa, com o Programa de Ação Imediata (PAI), que tinha por objetivo reduzir e organizar os gastos da União. Num segundo momento, já em 1994, veio a desindexação dos preços, por meio da Unidade Real de Valor (URV), que serviu de referencial de valores até a desmonetização da velha moeda (cruzeiro real).

Salários, contratos e preços foram fixados por este indexador publicado diariamente com base em uma cesta de índices e muitos cálculos. Em 1994, foi editada a medida provisória 542, a MP do Plano Real, com a moeda passando a ser a que usamos atualmente.

Desde então, ao longo da trajetória do plano, mesmo diante de fortes ataques especulativos, incertezas políticas e crises econômicas externas pelo caminho, independentemente do governo que estivesse à frente do Palácio do Planalto, o combate à inflação foi perseguido e a tão sonhada estabilidade monetária finalmente alcançada. 

PROTAGONISTA

Hoje, é mais fácil saber o que vai acontecer

Dono de uma pequena indústria no município de Itaitinga, o microempresário Ronaldo Gurgel afirma que o principal problema do período de hiperinflação era o fato de os produtos subirem tão rápido que as pessoas não sabiam quanto custava a mesma mercadoria no outro dia. "É como se eu comprasse um carro novo hoje e não soubesse dizer quanto ele custaria amanhã". Segundo ele, apesar de a inflação ainda ser um problema, há mais transparência quanto aos preços. "É mais fácil saber o que vai acontecer. Não é comum, mas certas coisas até baixam de preço. Isso era impensável".

Ronaldo Gurgel

Microempresário

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.