Recordes de audiência, elenco prestigiado, engajamento nas redes. Dentre as séries que retratam o público juvenil, a bola da vez está com “Euphoria” e a recentíssima “Heartstopper”. Produções da HBO e da Netflix, respectivamente, são um chamariz. Os números comprovam e o alcance reitera. Há interesse ali, e mais ainda: há identificação.
Mas o que essas histórias sobre descobertas, sexualidade e traumas dizem sobre a juventude contemporânea? É certo afirmar que ambas radiografam esse período específico da vida no hoje? Professora do curso de Sistemas e Mídias Digitais da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do Laboratório da Relação Infância, Juventude e Mídia (LabGrim), Georgia Cruz analisa o assunto.
Segundo ela, as duas séries trazem recortes das dores vivenciadas por jovens e adolescentes. E fazem isso dando ênfase a aspectos que muitas vezes não eram discutidos no cotidiano das pessoas. “O sucesso que elas têm feito se deve, em muito, pelo modo pouco convencional de abordar questões sensíveis de formas até mesmo didáticas”, situa.
Vamos aos detalhes. Criada pelo americano Sam Levinson, “Euphoria” foi lançada em junho de 2019 e retrata um grupo de estudantes do Ensino Médio a partir das diferentes situações da idade. Drogas, sexo, busca pela identidade, traumas, comportamento nas redes sociais e amizade são as grandes temáticas da atração – no momento, com duas temporadas e uma terceira a caminho.
“Heartstopper”, por sua vez, desembarcou no streaming no último mês de abril e tem alavancado ótima reputação entre público e mídia – mesmo trunfo de “Euphoria”, a propósito. Aqui, bullying, representatividade, aceitação, homofobia e transfobia cercam a história de amor de dois garotos também no Ensino Médio. A criação é de Alice Oseman, baseada na HQ homônima desenvolvida por ela.
Semelhante aos dois programas, Georgia Cruz ainda destaca “Sex Education”, da Netflix, como outro produto capaz de dialogar com os hormônios em ebulição. “Diria que essas séries trazem uma narrativa honesta, mas não se configuram como retratos, uma vez que a relação com a realidade é bem ficcionalizada e exagerada para destacar os pontos que muitas vezes ficam ocultos”.
Muito além dos jovens
Ultrapassando o público juvenil, “Euphoria” e “Heartstopper” conseguem furar a bolha e chegar também a outros públicos – feito notável. Algumas variáveis explicam essa projeção. Para Georgia Cruz, um primeiro ponto a se observar é a forma de divulgação, que acaba atraindo não somente pessoas de uma faixa etária específica.
Outro aspecto é o fato de as duas apresentarem boas histórias e personagens complexos, os quais permitem identificação com mais estratos sociais. “As personagens têm características que conversam comigo, com você, independentemente de onde a trama se passa. Isso se dá porque o foco dessas narrativas é justamente no ‘como’”.
Ou seja: não são enredos apenas de adolescentes com problemas de adicção ou com medo do que vão pensar sobre a própria sexualidade. As narrativas aprofundam a maneira como essa jornada de descobertas das personagens acontece. O diferencial está aí.
“O audiovisual é também um produto da cultura e de seu tempo. Faz parte buscar trazer histórias e personagens que dialoguem com quem se pretende como público. É o que chamamos de espírito do tempo”, contextualiza a pesquisadora.
Nesse sentido, ela rememora atrações com proeminência sobretudo no Brasil e em diálogo com outras gerações – caso de “Malhação” e “Rebelde”. Juntamente às duas séries americanas aqui abordadas, compõem um poderoso time de programas cuja intersecção se dá na abordagem sobre mudanças que a adolescência traz. Questões internas e externas que começam a entrar em conflito.
“Você tem uma pessoa que começa a descobrir quem ela é para além da sua casa, da tutela de adultos. Do ponto de vista das narrativas, como vivemos hoje num mundo mais conectado, elas tendem a acompanhar essa complexidade e trazer para os personagens os desafios de um cotidiano em que as ações e consequências são instantâneas”.
Motor de transformações
Questionada se séries sobre o público juvenil – uma vez geralmente tratarem de temas delicados – possuem algum compromisso com a audiência, Georgia é enfática: o compromisso deve ser inerente a qualquer produção, por uma questão de respeito. “Quando pensamos no público juvenil, porém, nem sempre esse compromisso está presente como se espera”, pondera.
Isso porque são muitos interesses a serem equacionados: os dos produtores, os da equipe criativa, das plataformas, do público e da sociedade. De todo modo, como tem havido um maior escrutínio em relação à responsabilidade das informações passadas e uma chamada desses players à responsabilização, podemos observar que eles têm estado mais cautelosos com conteúdos sensíveis.
Talvez o maior exemplo recente disso é “13 Reasons Why”. Lançada em 2017, pautou várias discussões sobre suicídio – temática principal da série – e como essa prática deveria ou não ser abordada numa produção de alcance global.
No fim das contas, a juventude sempre foi motor de mudanças e lutas ao longo da História. Estar atento ao que ela tem a dizer é essencial. Importante também compreender que cada geração tem um modo de fazer isso – o que muitas vezes não é compreendido pelas demais.
E o que esperar das futuras séries dedicadas à juventude contemporânea? “Questões sobre direitos básicos e sustentabilidade têm, a meu ver, um potencial para serem exploradas por estarem cada vez mais na ordem do dia. Vejo em diversos grupos um descontentamento ou mesmo preocupação com o futuro, com a falta de acesso a oportunidades de ensino, carreira.. E pontos ligados às outras letras de ESG (sigla para ‘Governança ambiental, social e corporativa’, em português) também têm despertado boas discussões”, conclui Georgia Cruz. Aguardemos.