“Pensam que surdo não gosta de música?”. A provocação foi lançada por Leo Castilho durante entrevista na última edição do Rock In Rio. O intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) tornou-se um dos destaques do palco Sunset ao transformar a experiência dos shows mais acessível e inclusiva – neste caso, para a comunidade surda.
A presença dele no evento e a de outros profissionais em apresentações do ramo tem, inclusive, despertado a atenção do público no retorno das atividades presenciais. Em telão próprio, eles estreitam a conexão entre o artista no palco e a plateia que, por condições biológicas, não consegue desfrutar completamente do som.
“Esse movimento é bem recente. Em alguns lugares do País, como na região Sudeste, existiam alguns eventos em que já era ofertado esse tipo de ofício. Mas ficou aparente e com mais força na pandemia com a necessidade de trazer acessibilidade às pessoas surdas que estavam em casa. Dar entretenimento a elas”, introduz Roberto Negão, tradutor e intérprete da Aponte Libras, empresa cearense que presta serviços na área.
Segundo ele, desde 2002 existe uma legislação que regulamenta a Língua de Sinais como língua de instrução do sujeito surdo. Logo, o poder público deveria ofertar, em todas as programações, esse tipo de acesso para a comunidade a partir de intérpretes nos eventos. “Mas isso funciona para a educação, já que, na parte cultural, é muito mais tardia a acessibilidade em espetáculos e apresentações”.
No caso da Aponte Libras, fundada em 2020, trabalha-se principalmente com acessibilidade na parte de tradução de Libras. Mas também oferta-se consultoria para projetos acessíveis na Língua de Sinais, promovendo eventos para surdos e agenciando artistas surdos, além de atuar com audiodescrição e legendagem.
Para se ter uma ideia, eles estiveram presentes em quase todas as lives do cantor Wesley Safadão durante o pico da pandemia de Covid-19, bem como de nomes como Taty Girl, Felipão e Marcos Lessa. Artistas de menor alcance também solicitaram apoio.
“Surgimos a partir da necessidade de profissionalizar demandas na parte burocrática para lidar com trâmites de negociação, valores e recebimentos de maneira institucional. Todos os intérpretes que prestam serviços para a empresa são experientes, com anos de atuação na área, e isso influenciou também”, sublinha Roberto.
Jornada desafiadora
Atuante na área desde 2007, a professora do Curso de Formação de Tradutores e Intérpretes de Libras/Português, Graziele Gomes Fraga, situa o desafiador panorama do ofício. Para ela, é difícil elencar todas as barreiras, uma vez que vão de interpretativas, logísticas e técnicas a estruturais e de acesso às informações.
“Interpretar na esfera artístico-cultural já é, por si só, um desafio pelas nuances, subjetividades e vicissitudes intrínsecas a ela. Muitas pesquisas sobre intérpretes no meio artístico levantam questões relativas à necessidade do profissional ir além da fluência em Libras. É preciso ser também um artista”, diz.
Sendo a música uma manifestação cultural muitas vezes à parte da cultura surda, a realidade fica ainda mais complexa. De todo modo, uma coisa é certa: nem por isso essa linguagem não pode ser acessível a eles.
“As outras questões – logística, estrutural, técnica etc – são um desafio porque o mercado não sabe como lidar com intérpretes, ou melhor, com o serviço de interpretação. Assim, antes de prestar o serviço, precisamos explicar como funciona, qual a estrutura necessária e, muitas vezes, essas questões afetam diretamente na produção”.
Em resumo, para que um show realmente aconteça de forma acessível, o intérprete de Libras precisa estar em um lugar de destaque, visível ao público surdo tanto quanto o artista para o público em geral. Inclusive, esse geralmente é o principal calcanhar de Aquiles nos eventos. Mas há mais. O profissional precisa ser qualificado, tendo familiaridade com a esfera e, mais ainda, com a produção.
Outra forma de esse trabalho ter êxito é possuindo surdos tradutores na equipe de interpretação. Conforme Graziele, “temos, a nível nacional, muitos surdos tradutores e intérpretes com vasta experiência na esfera artística, renomadíssimos”. Mas esse também é um gargalo no diálogo com produtoras e artistas. Eles não querem aceitar que um surdo também pode realizar essa tarefa.
“Isso depende muito de quem está à frente das apresentações, de quão próximo estão dos surdos e de quão estão abertos a aprender e a atender as questões necessárias para oferecer o serviço. Há produtoras e companhias que já trabalham com profissionais intérpretes há um tempo, e já sabem como funciona. Nesse caso, o trabalho flui e é mais fácil discutir e aparar o que ainda não está bom”.
No Ceará e no Brasil
A intérprete ainda tece um quadro de como está a situação tanto no Ceará como no Brasil – sobretudo diante da data que celebramos nesta quarta-feira (21), o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência. Em Estados como a Bahia, por exemplo, antes mesmo da pandemia de Covid-19, o cantor Saulo já contratava intérpretes para determinadas apresentações. Detalhe: ele mesmo, pessoalmente, tinha contato com a equipe.
Mas são raros os casos. No Ceará, mais ainda. Na visão de Graziele, primeiramente é preciso que grandes festivais e casas de shows entendam que a comunidade surda também pode ser consumidora em potencial. Ela também se diverte, sai, precisa de entretenimento.
“Na verdade, leis falam do acesso ao lazer, mas essa questão ainda está longe de sair do papel. Precisamos de mais políticas públicas, que os surdos sejam ‘ouvidos’, que eles possam dizer o que precisam, o que querem. E que o profissional intérprete de Libras seja valorizado e reconhecido. Isso talvez mudaria se tivéssemos surdos em cargos públicos, pois possivelmente se pensaria neles ao organizar esses eventos”.
Ela ainda destaca que shows particulares quase nunca pensam na interpretação. Por outro lado, no que diz respeito a festivais e apresentações organizadas pela gestão – Prefeitura e Estado – algumas já estão contando com o serviço. “Eu mesma estive na última edição de Férias em Fortaleza, no aterrinho da Praia de Iracema. Não temos como saber quantos surdos estavam presentes, mas, os que foram, se divertiram tanto quanto nós, ouvintes”.
A dúvida se havia ou não surdos presentes acende outro ponto valioso: por falta de divulgação anunciando que a apresentação contará com intérpretes de Libras, muitas pessoas da comunidade nem arriscam ir aos eventos. Não à toa, o desejo de Graziele e, certamente, o de todos os surdos e intérpretes Brasil afora, é que haja investimento nessa seara.
“Espero que os organizadores dos shows lembrem que os surdos existem e que eles também precisam e querem se divertir. Podem ajudar a movimentar a ‘catraca’ da economia. É importante manter e fomentar porque, acima de tudo, é um direito constitucional. Além disso, precisamos de uma sociedade, de fato, inclusiva. Temos dívidas históricas com várias minorias sociais, e com os surdos não é diferente. Eles já passam a vida tendo que se adaptar a uma família de ouvintes, a uma educação para ouvintes, ao mercado de trabalho com ouvintes. A sociedade é que precisa se adaptar a eles, não o contrário”.
Roberto Negão segue no mesmo fluxo. “Falta colocar o serviço de interpretação de maneira mais geral na programação pública, e não apenas em momentos pontuais. Já é uma conquista, claro, mas nada começa e fica do mesmo jeito pra sempre, principalmente quando se fala de acessibilidade. A forma com que esse assunto é tratado ainda é como um custo, e não como forma de acesso ao indivíduo que necessita daquela intervenção para poder ter equidade”.