'Sinto falta do cuscuz, das praias', diz cearense que viaja há mais de dois anos pelo mundo

Segundo ela, os lugares do Ceará foram alguns dos mais bonitos que já viu entre diversos países

Josefa Feitosa, nascida em Juazeiro do Norte, deixou o Ceará para se aventurar em viagens pelo mundo. Confira a entrevista completa concedida ao Diário do Nordeste abaixo:

> Cearense de 59 anos deixou casa no Brasil e vive em viagens sozinha pelo mundo

Como nasceu a vontade de contornar o mundo?

Jô - Essa vontade de contornar o mundo foi saindo aos poucos. Desde criança eu prestava atenção nas pessoas que viajavam e eu achava interessante aquele movimento das pessoas chegando, saindo. E eu pensava: “Um dia, eu também vou sair pelo mundo assim”. Mas não foi uma coisa que foi planejada desde sempre, não. Eu sempre gostei muito de ler sobre os lugares, os países, mas era péssima em Geografia, uma pessoa horrível em Geografia. Não sabia olhar um mapa direito, tinha uma dificuldade enorme. Então, assim, com o tempo, eu fui começando a olhar revistas de viagem e gostar de escutar histórias de quem viajou… E comecei.

Morava no Juazeiro, numa família muito conservadora, cheia de homens. Tinha três irmãos homens e, assim, meu pai, ainda por cima, tinha umas dificuldades. E eu pensava muito em deixar aquilo tudo e ir embora e viver uma vida com liberdade. E aí sempre achei que o mundo ia me abraçar. Num momento desses, qualquer, eu achava que ia ganhar o mundo mesmo.

Então, essa vontade de contornar o mundo foi surgindo a partir do meu conhecimento que eu ia tendo das outras pessoas que viajavam. E também da leitura das revistas de turismo, do próprio jornal, que eu olhava e que tinha o guia de turismo, e eu sempre ficava olhando e pensando em um dia fazer isso.

Desde quando você está na estrada? Como faz para se manter e que dê tudo certo?

Jô - Eu tô na estrada desde novembro de 2016. Antes, eu já viajava muito. Qualquer feriado ou folguinha, eu tava correndo pra qualquer lugar do Brasil que eu ainda não tivesse ido. Então, eu conheci quase todo o país, faltava apenas a parte do Norte, Belém, que eu não tinha saído. Aí eu resolvi sair, comprei a passagem só de ida, obviamente, e fui pra Belém de avião e me hospedei e comprei uma passagem de barco, daqueles barcos que sobem o Rio Amazonas todinho. 

Aí eu fiquei cinco dias naquele barco, dormindo de rede, e viajando com o pessoal do Norte, ouvindo as pessoas… Foi uma aventura fantástica. Aí cheguei em Manaus e lá fiquei durante alguns dias. Olhei também Manaus. E depois fui para o Sul, fui para o Paraná, fiquei um tempo por lá; em São Paulo também, o litoral de São Paulo que eu não conhecia, e aí pronto, fechou. O Brasil eu conheço todo.

Sempre achei que o mundo ia me abraçar. Num momento desses, qualquer, eu achava que ia ganhar o mundo mesmo.

Aí recebi um convite pra ir pra Portugal. Um convite de uns meninos portugueses que estudaram no Brasil e que conheceram meu trabalho no presídio. E tinha saído nessa época,  tinha saído o documentário “Close”, sobre a prisão em que eu trabalhava. E a Rosane Gurgel, que é a cineasta, eu fazia fanzines na prisão com as meninas, as transexuais, e aí ela, jornalista, estava fazendo um trabalho de pós-graduação, ela foi fazer um trabalho em cima do meu trabalho, do fanzine na prisão. E aí ela ficou toda empolgada para fazer um vídeo, um documentário, e aí eu abracei com ela essa história do documentário e acabou saindo o “Close”.

E aí esses meninos lá em Portugal me convidaram para mostrar o vídeo, o trabalho, pra falar também, e aí eu tinha escrito um artigo para um livro deste meu amigo, ele ia lançar por lá, e pensei: “Bom, vou pra Portugal”. E aí foi, comecei a ir. Quando cheguei lá, não tive problema porque eu já tinha moradia, tinha estadia, então não tinha problema com relação a dinheiro.

E eu me mantinha nas minhas viagens, durante o tempo que eu passei no Brasil – fiquei três meses viajando pelo Brasil, essa parte do Norte e do Sul – e quando foi no final de fevereiro ou pra março, eu viajei pra Portugal, e aí participei do movimento feminista de lá, da Marcha Mundial das Mulheres, e o Festival Feminista de Porto… E, enfim, comecei a andar e andar.

Me convidaram para ir pra Espanha e, nesse período, eu tinha onde ficar, estava trabalhando, tinha o contato com essas pessoas, me davam comida, me davam tudo. Depois eu vi que estava trabalhando, eu digo “Oxe, eu saí pra não trabalhar, e tô trabalhando demais”, porque ficava aquele compromisso, de dar as palestras, de mostrar o vídeo, de conversar, e eu fui ficando muito atarefada e sem condições de fazer o que eu queria, porque ficava atrelada aos compromissos. Aí eu resolvi parar com essas palestras, essas rodas de conversa, e disse: “Não, não quero mais saber de nada, não. Agora, vou viver do meu salário e vou ficar na casa dos amigos”. 

 

Aí tinha uma amiga que morava na Suíça, ela me convidou para ir para lá. Eu fui. Depois, fui pra Itália. Não lembro muito bem, mas fui, fui, fui.

Quanto ao dinheiro: antes, quando eu comecei mesmo a fazer esse projeto, ele começou em 2008, minha vontade de ir embora. Estava separada e, quando me deparei, fiquei com três filhos, a mais nova tinha oito anos de idade, e ia ser uma luta para mim dar conta de dois adolescentes e essa criança. E eu trabalhava muito, sofria muito, porque meu tempo era todo dedicado a trabalho.

Eu trabalhava no presídio e dando aulas nas faculdades, naqueles cursos da Secretaria de Segurança Pública que a UECE montava, então trabalhava com a UECE nesses cursos, trabalhava com a UVA, e era de manhã, de tarde e de noite e estava muito cansada e pensei: “Um dia, eu me livro disso. Esses meninos vão crescer, vão ser donos da vida deles e eu vou ser dona do meu tempo. Meu ouro, meu tempo, vai ser todo pra mim”. E aí eu resolvi olhar com carinho essa coisa de sair pelo mundo, de viajar pelo mundo.

Então, eu resolvi comprar um apartamento, porque pensei que se colocasse dinheiro na poupança não ia dar em nada. Pensei: “E aí quando eu for embora, quando for me aposentar, eu vendo o apartamento e, com esse dinheiro, e vou começar a viajar”. Só que foi tudo diferente, eu não consegui vender o apartamento, até hoje tá aí – eu fiz foi quitar o apartamento – e hoje vivo do meu salário. O meu salário é um salário que dá pra viver porque eu sou muito econômica. Eu faço um monte de coisas – faço minha comida, faz é tempo que eu não compro nada, aliás eu não compro nada, só dinheiro de passagem e atrações. Fora isso, nada mais.

E eu trabalhava muito, sofria muito, porque meu tempo era todo dedicado a trabalho.

A minha alimentação, que agora não estou mais em casa de amigos ou nada, eu me hospedo em hostel – hostel não, deck pack mesmo – e também minha alimentação é assim: eu faço, não como muita carne, passei muito tempo sem comer carne, e agora, do Vietã e das Filipinas pra cá, é que eu comecei a comer uma carne, um ovo.  Mas, assim, eu fazia minha alimentação e comia. Eu sou diabética e eu fazia a minha comida, porque aqui eles fazem muita fritura, muito açúcar nos molhos, nas comidas, então eu prefiro fazer. E dá tudo certo. Eu tenho algumas despesas aí no Brasil e eu dô conto, e olha que o meu salário não é essas coisas.

Quais as dificuldades de realizar um projeto como esse?

Jô - É a questão mesmo de você largar a família, largar a sua casa. Mas eu acho que, tu sabe que eu nem tive muita dificuldade? Porque, como eu já tava trabalhando desde cedo na minha cabeça, eu comecei cedo a me dar conta de que eu tinha que passar algumas coisas. Como salão de beleza, eu já fui deixando – deixando meu cabelo ficar branco –, fui deixando de fazer unha, eu mesmo fazia minha unha, arrumava alguma coisa que eu podia fazer pra economizar. 

Então, fui deixando de comprar muita coisa, de ir pra restaurante, e umas programações que não tinha como porque ia gastar dinheiro. Não que eu miserável. Não, pelo contrário: eu me divertia muito. Agora, assim, do meu jeito: ao invés de gastar e ir pra restaurante, eu fazia minha comida em casa, evitava muitas despesas que a gente normalmente tem por besteira. Tipo, shopping, eu deixei de ir totalmente. Não curto mais shopping, não curto mesmo. E coisas de casa também passei a fazer, deixei de contratar faxineira. Essas coisas, pra não gastar dinheiro.

Então, as dificuldades maiores são essas, de você ir desapegando desses serviços, dessa mordomia. A única coisa que eu usava, que eu não desapeguei mesmo, foi o carro. O carro eu fiquei com ele até perto de ir embora, porque, na verdade, ele para mim era uma necessidade na época, porque, como eu tava me desfazendo de muita coisa, tinha que estar sempre levando e trazendo coisa, eu fiz muita doação pra presídio, pra amigo, de tudo que era meu.

Ao invés de gastar e ir pra restaurante, eu fazia minha comida em casa, evitava muitas despesas que a gente normalmente tem por besteira.

A coisa que mais me dava pena de fazer doações eram os meus livros, que eu fazia doações para algumas pessoas, outras eu deixava levar de qualquer jeito, e eu ficava muito mal, porque tinha livros com dedicatórias lindas, fantásticas, e eu ficava com uma pena… Mas, também umas fotografias dos meus filhos, três filhos, tinha muitas fotografias, minha vida. Mas, nada como desapegar daquilo tudo, eu precisava desapegar.

Outra situação que é difícil também: os entraves que acontecem nessa idade que eu tô. Porque, nessa idade que eu tô, é quando a gente tá com os nossos pais velhinhos indo embora, é quando começa a aparecer as dificuldades com relação à questão da saúde; a questão dos filhos, que vão dificultando algumas coisas, como, por exemplo os casamentos que não dão certo e eles voltam para casa. E você fica louca porque você quer dar um suporte, mas pensa: “Pô, mas a escolha foi deles, não minha. Por que eu tenho que me responsabilizar? Então, assim, essas coisas são muito dolorosas, sabe? 

Meus pais morreram, mas eu fiquei ali com eles. Enquanto eles estavam lá, eu tava dando o suporte que eu pude dar. Eles moravam no Juazeiro e eu ia todo mês, então era bem difícil assim, minha vida. Então, quando acabou tudo isso, eu aliviei e disse: “Pronto, é por aqui”. 

E também com relação ao trabalho, que ficou uma desgraça, mas depois que eu consegui fazer algumas mudanças – eu sempre trabalhei com o público LGBT, fui uma das pioneiras, acho que tudo começou comigo, esse trabalho nas prisões com esse público começou comigo – e aí depois que eu deixei uma coisa mais arrumada, as meninas lá no Imelda (Unidade Prisional Irmã Imelda Lima Pontes), que foi aberta essa prisão só pra elas lá, então fiquei mais aliviada com essa história. Pra mim, eu já tinha cumprido essa missão. Aí eu disse, “pronto, é agora”. Afora também a questão das facções, já estava difícil, elas começaram a atuar dentro da realidade que você já conhece, de tanta violência.

O que você deixou para trás para começar a viagem e o que está abraçando agora, a cada nova viagem que está fazendo?

Jô - Eu deixei pra trás toda aquela coisa da vaidade, dos amigos, da família, principalmente da família – eu deixei minha família ela estava fazendo faculdade, estava terminando a Psicologia, e a outra terminando Sociologia. Para mim, foi difícil deixar a minha filha, a mais nova – quando eu me separei, ela tinha oito anos, então eu fiquei muito apegada, porque a outra casou e saiu de casa, o outro foi morar fora… Então, a gente ficou muito unidas. Somos ainda hoje unha e carne, nossa relação é simbiótica. 

Somos ainda hoje unha e carne, nossa relação é simbiótica. 

Então, foi uma das coisas que eu mais sofri foi deixar a família, meus filhos, os amigos, e o conforto. No começo, mas depois eu fui levando aquilo como sendo desnecessário você ter um banheiro só pra você, um carro só pra você, um apartamento enorme que cabe você e outra pessoa – como era eu e minha filha lá em casa – enfim, um monte de coisinhas que eu deixei pra trás e que, pra mim, agora o que eu abraço é o minimalismo, que é viver justamente com o necessário. Eu não pago excesso de nada, eu também não compro nada, porque eu não tenho mais casa, não tenho mais necessidade de ter tanta roupa, então eu não compro mais tanta coisa, não compro nada. Então, o consumismo pra mim não rola mais. Eu abraço essa causa hoje do minimalismo: quanto menos você tem, mais feliz você é.

Quais países e culturas já conheceu? E por onde ainda pretende passar?

Jô - Eu comecei pela Europa, foram 15 países por lá. Comecei por Portugal, depois Espanha, Suíça, Alemanha, França, Bélgica, Inglaterra, Rússia, Irlanda, Áustria. Depois eu vim para o continente africano e agora estou na Ásia. Eu dei graças a Deus ter ido logo pra Europa porque depois que eu andei pela África e pela Ásia, aí eu fico olhando assim, principalmente pela África, como esses países da Europa são sacanas com a Namíbia, com Moçambique, com Angola, e enfim. E aí você começa a ter raiva, sabe? Porque são países jovens, começaram a viver independentemente agora por último, e ver que essa gente toda foi sacrificada por portugueses, pelos franceses, é muito horrível. 

Então, dei graças a Deus ter passado antes lá porque, se fosse depois, acho que eu queria. Se eu tivesse chegado na África antes e tivesse o conhecimento que eu tive com o que a Bélgica fez com Ruanda, por exemplo, incitou aquelas duas etnias a se matarem e eu sinceramente nunca posto o pé na Bélgica. Mas é uma cultura diferente, é um povo muito católico, é cheio de igreja, cheio de comportamentos assim reprimidos – eu acho, né, o europeu muito fechado, pra dentro – e chegando na África não. A África é aquela alegria, é aquele povo, sabe, é um povo miserável, sei lá, mas transborda uma alegria, um contentamento, que eu não sei de onde é que vem. É uma alegria viver com aquele povo.

E na Ásia também, muita desgraça, no Vietã, em Camboja, e é um povo feliz, que se ergue depois de toda uma devastação, depois de tanto massacre, de tanta guerra, e esse povo pra cima, botando vida onde não existia nada. O Nepal também, com o problema do terremoto, destruído, mas as pessoas trabalhando para construir o país, e eu acho isso tudo muito fantástico, sabe? E fico olhando assim pro Brasil e fico com pena da gente, porque a gente não tem coragem de fazer absolutamente nada. Eu fico ouvindo as histórias do Vietnã, que botou os alemães e americanos pra correr, e taí, um país lindo, o Vietnã é um país maravilhoso, lindo, um país que você anda, no meu caso, mulher, com segurança, respeito…

Então, são essas coisas que eu vejo que eu fico com cada vez mais vontade de ver mais, ver mais, ver mais.

Eu pretendo passar em Singapura. Eu passei esse tempo todinho só entrando em países bem precários. Eu tive acho em 16 países da África, incluindo o Egito, fui em Israel também, e agora eu quero ficar mais por esse aqui, por esse lado da Ásia. Eu gostei muito de Filipinas – passei um mês lá – mas eu amei o Vietnã, é o meu lugar lindo na Ásia. Eu quero ir na Indonésia também, quero ir em Singapura. Eu tô aqui na Malásia, mas é uma coisa assim fantástica, a Malásia é linda, linda, linda, muito limpa, a tecnologia, assim, a cidade muito arrumada, muito tecnológica. Você vê um calor danado, mas você sai andando na cidade por umas passarelas todas no ar-condicionado, e você vai de um canto a outro, e tem shopping e sai em shopping, enfim, e é um povo arrumado, educado. Depois de tanta miséria, eu chego num negócio desse e penso: “Eu tô na Ásia mesmo?”. Mas é outra Ásia. 

Eu quero ir em Singapura e depois Indonésia. Eu tava pensando da Indonésia ainda ir, para fechar mesmo minha volta ao mundo, passando na Nova Zelândia. Inclusive, eu até convite – depois dessa reportagem, muita gente me convidado, o mundo inteiro me convidando pra sair, para ir passar lá na casa deles, e ficar na casa deles – eu até pensei em ir, mas eu estava com medo porque a Nova Zelândia é um país muito caro, mas agora estou até considerando, já que não vou pagar hospedagem.

De qual parte do Ceará você é? Desde sempre alimentou esse espírito aventureiro? Possui filhos? Quantos? E netos?

Jô - Eu sou do Juazeiro e minha família era de oito pessoas: três homens e três mulheres. E já morreram todas as mulheres dessa minha família, só tem eu pra contar a história. E minha mãe morreu, minhas irmãs morreram, então sou só eu. E eu tenho três irmãos homens, e eles super machistas, e eu sou a última, fui a última filha, e a minha diferença de idade era bem considerável – coisa de oito a dez anos, de eu para meu irmãos. Então, eu sempre fui muito olhada porque minha outra irmã ela tinha umas deficiências – a idade cronológica dela não batia com a idade mental – então todo mundo virou-se pra mim, então sempre fui considerada a louca, a revoltada.

Mas aí eu consegui sair dessa loucura, desse caos, que era essa história desse monte de homem mandando em mim, e fui pra Fortaleza. Lá, fui pra estudar e fiquei lá, arranjei um marido, casei, fiz três filhos, fui trabalhar no Sistema Penal, antes trabalhei no Nutec. Aí passei 18 anos casada – meu marido me trocou por uma pessoa com a metade da minha idade – e, assim, foi uma coisa que me maltratou muito porque eu trabalha muito para ajudar em casa.

E aí eu fiquei sozinha com três filhos para criar, e essa criatura sem dar um centavo foi muito difícil, muito difícil. Então, comecei a ver outras coisas, fui dar aula – foi bom porque conheci outra profissão, que era dar aulas. Então, fui dar aulas na UVA, na UECE, enfim, onde me chamasse eu tava indo. Mas foi difícil pra mim esse tempo, de ficar com essas crianças.

Trabalhei no Corpo de Bombeiros também; trabalhei nos presídios. Em Fortaleza, eu trabalhei em todos os presídios. Eu comecei trabalhando nos presídios em 1989, só existia o IPPS, o IPPO e o feminino. Então, eu trabalhei em todas as cadeias, no feminino, no masculino, no manicômio judicial, então sou bem rodada no Sistema Penal.

E isso foi uma coisa que pra mim contou muito, essa questão de sair, de sair pelo mundo, foi porque eu sentia que não tinha mais cabeça, não, eu tinha uma caçamba de entulho existencial e biográfico das pessoas, de tanto escrever relatório, de tanto me envolver com as histórias dos outros. E não tinha nada meu, nada escrito meu, eu não tinha nada na minha cabeça sobre mim mesma. Era muito mais do povo. Isso me obrigou a sair pelo mundo despejando esse entulho, eu precisava. Hoje eu nem falo tanto mais em cadeia, graças a Deus, mas quando você começa a trabalhar em prisão, parece uma cachaça, você vicia, é um negócio absurdo, foi muito tempo. Hoje, não tenho mais isso.

Sempre fui muito aventureira. Viajava nas escolas, quando tinha as excursões; na faculdade, quando tinha os encontros de estudante, sempre com pouco dinheiro. Aliás, nunca importou, dinheiro para mim nunca importou. Uma vez eu viajei com a roupa do corpo (risos), mas deu tudo certo. Eu passei três dias com a roupa do corpo, saí de casa, nessa época era estudante, morava na residência universitária, e aí eu saí, acho que foi pra Natal. Era um encontro e eu queria muito ir pra esse encontro e não tinha vaga, porque eu não trabalhei pra ajudar na viagem. Então, quando eu cheguei que o ônibus ia sair, aí uma pessoa não ia, desistiu, aí do jeito que eu tava eu fui. Deu tudo certo. Passei três dias (risos) com o dinheiro que eu tinha levado para o ônibus, o lanche, e a roupa que eu estava vestindo. Não foi muito problema pra mim não, esse negócio, eu queria mesmo era ver movimento.

Então, eu tenho três filhos, um homem e duas meninas, e um neto, de 13 anos, da minha filha mais velha. A minha filha mais velha teve esse filho muito cedo, casou muito cedo, mas eu nunca dei colher de chá. Eu ajudei, mas sempre deixei muito claro que foi uma escolha dela, foi ela que quis casar, ela que quis ter filho, então ela que assumisse. Até hoje é assim, ela é muito responsável. Não está mais casada com o pai da criança, mas divide as responsabilidades com o pai, e eu ajudo como posso. É meu único neto e óbvio que, se tiver uma coisa que ele precise, eu ajudo mesmo. E sou louca, louca por ele, mas passei muito tempo dando apoio, indo buscar na escola e deixar, mas agora mais não. Mais não.


Como atitudes como a sua podem inspirar outras pessoas, sobretudo mulheres, a ser resistência em um meio acostumado a estereotipar determinados perfis sociais?

Jô - Eu não sei te responder direito a essa pergunta porque eu não me vejo exemplo pra ninguém. Mas se eu puder inspirar, fazer a vida diferente, pra mim já é muita coisa. Quando eu vi a reportagem, eu comecei a ler as críticas, dizendo “Ah, essa velha, não cuida do neto”, eu parei de olhar e não quero nem saber.

Primeiro: não me sinto velha. Não me sinto velha de forma alguma, pelo contrário, eu rejuvenesci tanto, tanto depois que eu comecei a andar, e eu morro de pena dessa questão das mulheres ficarem cuidando dos filhos. Cara, os filhos casam, voltam pra casa depois...Eu tenho colegas, eu tenho exemplos de colegas, que a filha voltou pra casa e aí, quando ela olhou, não era mais a casa dela, porque a filha voltou e ela começou “mãe, tua geladeira tá feia, vou botar aqui a minha; mãe, teu sofá tá feio, vou colocar isso assim”, enfim: quando a gente chegava na casa, não estava mais com a cara dela. Era da filha dela. E ainda por cima ela tinha que cuidar dos netos e depois veio outro filho, então, assim, ela tinha uma vida muito sacrificada, pensando inclusive em voltar a trabalhar porque prefere ficar se desgastando do que ficar na situação que ela está em casa.

E conheço outras que também estão vivendo umas vidas muito sacrificadas com essa questão dos filhos voltando pra casa.

E eu acho que a gente tem que fazer alguma coisa pela gente, tem que dar um significado à vida da gente, porque não é brincadeira, você passar todo o tempo trabalhando, sendo dona de casa – no meu caso, trabalhando de manhã, de tarde e de noite, com três filhos, sozinha, largada de marido, sem ajuda de ninguém nessa Fortaleza – e depois de tudo, que eu me aposento, eu ainda vou criar filho, ver filho? Olha, não tem isso, eu vou me dar prazer. E eu acho que a gente tem que olhar isso. E ficar nessa loucura também, de se cuidar, “eu prefiro me cuidar”. Que cuidar? Cuidar pra ficar bonita…

Você gastar 10 mil, 15 mil, em cirurgia plástica, se cortando, sabe? Que é isso? Quer ser jovem, ganhe o mundo. Eu me sinto extremamente jovem, eu moro em back pack. Eu tô num quarto que tem oito pessoas. Das oito pessoas, sou só eu e outra mulher, o resto tudo é homem. Eu não tenho mais problemas hoje de dormir num quarto com dez pessoas, misto. Já aconteceu de eu dormir com cinco homens, eram três beliches. Eu fui dormir e, de manhã, tinha cinco homens. Hoje, para mim, isso não é problema, eu sou muito respeitada, não tenho medo de ninguém fazer nada comigo. 

Você gastar 10 mil, 15 mil, em cirurgia plástica, se cortando, sabe? Que é isso? Quer ser jovem, ganhe o mundo.

Enfim, hoje eu me redescobri. E o que eu quero é que as mulheres façam isso, sabe? Deixem esses medinhos, essas coisinhas de lado, e enfrentem, porque ninguém vai fazer nada por elas. Essa coisa de a gente ter que ficar sempre dando suporte, dando suporte, dando suporte, e, quando a gente olha, a gente tá acabada, velha, desrespeitada. Eu vejo netos assim tão mal-criados com a avó. Isso não acontece comigo, isso comigo não dá certo. A gente tem que remodelar esse negócio. Ninguém é velho, ninguém é obrigado a ficar criando e recriando situações de isolamento e de aprisionamento em sua própria casa. Não, sabe, eu tô fora. Tô fora disso.

Qual mensagem deixa para quem ainda não pegou a estrada para viajar?

Jô - Eu acho que quem nunca pegou uma estrada pra viajar não sabe o que tá perdendo. As pessoas gastam tanto dinheiro com besteira e esquecem de alimentar a própria alma. Quando dizem que viajar é alimentar a alma, é isso mesmo. Porque as viagens deixam você tão antenado, tão informado, e dá uma autonomia incrível. Você ter a consciência de sair de situações que antes nem imaginava entrar e sair bem. Porque você está sozinha, como no meu caso, já houve situações horríveis e eu conseguir sair delas. “Poxa, como é que pode, eu consegui isso!”. Pra mim, isso é fantástico, saber que eu tenho esse poder de resolver as coisas. E de assumir minhas coisas também, porque eu, sozinha, não tenho em quem eu jogar a culpa, tem que ser em mim mesma. Então, eu trato de resolver, não espero por ninguém, e acho que isso é muito bom, pra você se empoderar, ter noção de seu limite, de sua potencialidade, pra você se reconhecer, como uma pessoa que está ainda fazendo essa leitura do mundo com amor. Porque a leitura do mundo é fantástica, a gente se perde na leitura, a gente fica analfabeto porque a gente não sai pra olhar o mundo, a gente fica trancado dentro de casa. E olhar o mundo é uma coisa muito essencial. Paulo Freire dizia que antes dos livros serem escritos, a pessoa que escreveu fez a leitura do mundo. Então, tudo que existe de escrito, antes foi lido com os olhos, com as reflexões, os seus sentimentos, e eu acho isso muito bacana. E você só pode ser uma leitora do mundo se você abrir pra ele, enfrentar, se sair, for atrás. Tem que sair pra ler o mundo.

Olhar o mundo é uma coisa muito essencial

O que mais chamou a sua atenção nos lugares por onde passou? Houve alguma situação específica que vivenciou que considera a mais bonita? Ou a mais triste?

Jô - Dos lugares onde eu passei, começando, por exemplo, pela Europa, lá eu fui muito amada, muito querida, eu pensei que ia passar por preconceitos, por questão de cor, e não passei nada. Passei por Suíça e Áustria, não tive nenhum tipo de problema. Na África também não. Lá, eles têm três cores: o color, o black e o white. E alguns eles não gostam, que é o color, que é a mistura do branco com o preto. Mas eu sempre fui muito querida, nunca tive nenhum problema com relação a essa questão com eles, e sempre me envolvi muito com os lugares onde estava. Quando chegava, procurava saber qual a história do lugar, como viviam as pessoas, me engajava, fui voluntária na Zâmbia, no Quênia – onde eu trabalhei com crianças, num orfanato, e com mulheres, no projeto Ubuntu, que é de uma brasileira. Foi muito bom, dois momentos fantásticos na minha vida, que foi essa de voluntariado, e em Ruanda foi lindo, lindo, lindo. Não sabia nada de lá, o que eu sabia era daquele filme, “Hotel Ruanda”, sobre o genocídio, e, na verdade, quando eu cheguei lá, encontrei uma cidade linda, totalmente diferente de toda a África que eu tinha passado, um país limpo, de pessoas felizes. Fiquei em êxtase com aquele povo.

Participei de alguns trabalhos com mulheres por lá e foi tudo muito bonito. Também fui em Uganda e trabalhei em associações de mulheres, que me chocava em muitas coisas. Por exemplo, uma menina que aos 28 anos já era avó. Pô, com 28 anos eu tive minha primeira filha e aquela mulher,  com essa mesma idade, já era avó. Então, são coisas assim que chocam e tantas outras coisas que eu vivi. No Quênia, foi muito difícil porque roubaram meu celular, foi terrível, fiquei sem informações, foi terrível. 

Mas eu conseguia sair das situações. Enfim, tenho muitas histórias, dificuldades ainda para lidar com as informações. Por exemplo, na Índia, é um caos, os homens não respeitam as mulheres, eu fui assediada e foi difícil para mim em Mombai. Por outro lado, em um lugar no sul da Índia, fiquei com uma família no final do ano e foi muito bom.

No Cairo também fui assediada, mas na Índia foi muito pior. No Egito, caminhei durante muitos dias sozinha e fiquei quatro dias num acampamento de beduínos, já pra atravessar a fronteira para ir pra Israel, e não tive problema, sempre fui vista como mãe. A meninada é louca por mim e me ensinaram muitas coisas, abrindo caminhos, me ensinando coisas, as vestes mais apropriadas em cada caso, coloquei até um piercing no nariz, e sempre tenho muito contato com gente jovem, porque eu me hospedo em hostel e, para mim, é uma alegria. Pego minha juventude, então, para mim. Aprendi a mexer nessas coisas de redes sociais com eles, já que meus filhos não tinham tempo de me ensinar, e aí faço macarrão, compro verdura, boto todo mundo pra comer, aí eles compram cerveja, vinho… Nunca estou só, tem sempre alguém comigo. Tô amando viver no mundo, nunca mais quero uma casa na minha vida.

Há quanto tempo você já está viajando? Sente falta de alguma coisa aqui do Ceará? Se sim, do quê?

Jô - São dois anos e 5 meses viajando. Sinto falta do cuscuz (risos), das praias. São lindos os nosso lugares, Jericoacoara, Canoa Quebrada… Há lugares que se aproximam do Brasil, mas é muito diferente. Nossa gente, nossa música, nossa comida, não tem lugar mais lindo que o Brasil, não. Olha, eu ando, ando, ando, mas eu quero um dia me aquietar em algum lugar do Brasil. Eu penso muito no Paraná, caminhei muito por lá, conheci um pessoal que fazia treccking e fui junto e acampei muito e gosto muito daquela região. Penso muito em voltar a morar no Brasil num cantinho bacana, tranquilo. Eu nem sei, tem tanto cantinho tranquilo e bom pra morar. Na verdade, às vezes eu penso em não morar em lugar algum. Por exemplo, eu posso ficar três meses nas Filipinas, numa cidade linda, gostosa, nas montanhas; posso passar três meses na Tailândia, em Portugal, e que eu tenho amigos que me chama, “vem pra cá, vem pra cá”.

Mas de tudo, o que mais gostei, foram as amizades, as pessoas. Tenho muitos amigos mesmo, que eu sei que, se eu chegar, as portas vão estar abertas para mim. Se eu for escolher um ano pelo mundo, eu tenho lugares para escolher sem problema. E como eu não preciso de muita coisa, basta uma caminha, num cantinho. Tudo que eu tenho é 10 kg de bagagem, nada mais. E nunca mais vou querer nada mais do que 10 kg. Não carrego nada mais comigo além desses 10 kg. Só compro uma roupa quando a outra não presta mesmo. Não tenho nada, só isso mesmo.