Um projeto coletivo de contos baseados em “escrevivências” de mulheres quilombolas, outro que destaca as revoluções íntimas possíveis sendo mulher no Brasil, mais um que reúne pequenos textos poéticos que se aproximam das artes visuais e, ainda, um que fabula trajetórias de vida em meio à Guerra de Canudos. Estes são os motes das quatro obras cearenses selecionadas no Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres, promovido pelo Ministério da Cultura em 2023.
No total, 61 projetos de todo o País foram contemplados pela premiação, cuja realização buscou fomentar a produção literária de mulheres e, ainda, homenagear a escritora mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977), de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”.
Os projetos cearenses premiados são de um total de sete escritoras do Estado: Ana Eugênia, Tainara Eugênio, Joseli Cordeiro e Marleide Nascimento, do livro de contos “Mulheres Quilombolas: contando o que nos contaram”; Maria Vitória, do roteiro de teatro “São dela os olhos inquietos”; Carolina Campos, do livro de poesia “Esvai”; e J. Cavalcante, do romance “Guerra no Sertão”.
Autoras de gêneros distintos, vindas de territórios diferentes e também com vivências específicas, as cearenses se irmanam em especial pela crença nos poderes da palavra. Em entrevista ao Verso, Ana, Carolina, J. e Maria Vitória compartilham processos de contato com a arte, inspirações e reverberações das obras.
Mulheres Quilombolas: Contando os que nos contaram
“Nós somos quatro mulheres escrevendo, mas as vozes são de muitas pessoas”. A coletividade expressa na fala da quilombola, militante e artista Ana Eugênia não é apenas sobre Tainara Eugênio, Joseli Cordeiro e Marleide Nascimento, que escreveram com ela os contos de “Mulheres Quilombolas: Contando os que nos contaram”, mas tem caráter ancestral.
“O tempo (do edital) era curto. Sou mãe solo, estudo, sou militante. Não iria conseguir sozinha. Então, convidei outras mulheres quilombolas para se somarem comigo”, explica Ana, que é, como Tainara, do Quilombo Sítio Veiga (Quixadá). Já Marleide vem do Quilombo de Alto Alegre (Horizonte) e Joseli é do Quilombo Batoque (Pacujá).
“Elas disseram ‘mas é literatura, eu nunca escrevi’ e eu dizia ‘a gente sabe’”, segue. A insegurança inicial reflete o que Ana define como uma “negação de direitos à população negra”.
“Sempre gostei de escrever, só não sabia que era literatura. Essa negação faz com que a gente não se veja nesse espaço, assim como não conseguiam ver Carolina no espaço de produtora de conhecimento”, ressalta, referindo-se à mineira homenageada no prêmio.
Filha de professora, Ana aprendeu a ver a educação como elemento primordial para a vida. Desta forma, a escrita se transformou em instrumento essencial. “Ela me ajudava a enfrentar”, define. Entre os enfrentamentos vivenciados, Ana cita de um câncer de mama pelo qual passou ao racismo cotidiano sentido por mulheres como ela.
Mulheres como a própria Carolina Maria de Jesus, e ainda Conceição Evaristo, Beatriz Nascimento, bell hooks ou as companheiras de projeto Tainara, Marleide e Joseli. As referências se somam. “Assim como as escritas dessas mulheres me fortalecem e nos inspiraram, nós acreditamos que as nossas também vão inspirar outras mulheres”, confia.
“O título (‘Mulheres Quilombolas: Contando os que nos contaram’) foi escolhido por nós como forma de demarcar: somos mulheres, de um território distinto e nossas escritas são pautadas na ancestralidade, na oralidade e nas vivências nos nossos territórios”, explica. “É isso que a gente precisa, que outras pessoas escrevam, sobretudo a partir do chão em que pisam”, segue.
O reconhecimento adquirido pela premiação, Ana compartilha, carrega diferentes importâncias concretas e simbólicas. “Quando saiu o resultado final, as meninas diziam: ‘Isso vai me impulsionar a escrever’”, celebra.
“Esse prêmio é muito importante. Ele vai fortalecer, visibilizar. Nós — mulheres, quilombolas, literatas — queremos estar vivas com as nossas escritas, com as potencialidades que nos foram passadas a partir da oralidade e queremos compartilhar esses ensinamentos”, convida.
São dela os olhos inquietos
Filha de uma “família de teatro”, Maria Vitória foi uma das três selecionadas que submeteu ao prêmio um texto teatral. O formato é natural para ela, cuja trajetória artística é múltipla e inclui atuação como atriz, diretora, dramaturga, educadora e professora.
A convivência desde cedo com um “passeio entre linguagens” estimulou o caminho profissional da cearense. “O teatro é uma arte que agrega muitas outras: escrita, música. Desde criança comecei a escrever, geralmente histórias que poderiam ser montadas”, compartilha.
Definindo seguir o “viés da dramaturgia” na escrita, a artista também destaca um interesse em produzir textos sobre relações, pessoas e comportamentos. A tendência é presente em “São dela os olhos inquietos”.
Com trama passada quase sempre em um consultório psicológico, o texto acompanha a relação entre uma analista e uma paciente. A partir do conflito da analisante, a história vai aos poucos abrindo espaço para as questões da terapeuta.
“Esse é o pano de fundo para falar sobre acreditar na vida, no outro, em si mesmo”, resume a autora. “É sobre uma visão não maniqueísta das pessoas. Elas não são boas ou más, elas são complexas”, avança.
As personagens da obra, ela define, são “mulheres que se reinventam, se confrontam consigo mesmas e com a outra”. “Todos nós somos essa mescla de conflitos e revoluções internas. Também passa pela questão das revoluções femininas”, aponta.
“Elas são mulheres que buscam essa revolução íntima, que talvez seja a mais difícil de operar dentro de um contexto de ser mulher no Brasil e enfrentar a estrutura machista. São revoluções femininas do dia a dia, não as que vão fazer uma grande modificação na história, mas no mundo interior”, finaliza.
Esvai
“Habitat”. É assim que a poeta Carolina Campos define a literatura. O contato com essa arte, de fato, a cearense traz nos genes, na gênese, fruto herdado do avô, Moreira Campos, e da mãe, Natércia Campos — ambos reconhecidos nomes da produção literária do Estado.
Como forma de “conservação e construção” da “tocha” passada para ela pelos ascendentes, a cearense foi reconhecida pela premiação que leva o nome da xará — a cearense é também Carolina Maria como a homenageada no nome do prêmio, a quem louva como uma “contadora de histórias” de “legado literário e resiliência” — com o livro de poesias “Esvai”.
A obra selecionada na contenda é descrita pela autora como um “colar”. Na metáfora proposta, as “miçangas” que compõem o objeto são “pequenos textos de minha vida toda”, como ela define. Já o “fio/corda bamba”, ela segue, “estende-se entre duas artes: a poesia e a visual”.
Em “Esvai”, Carolina aproxima a escrita das artes visuais, em um projeto, ela compartilha onde “importa a posição das palavras, os cortes no papel, as colorações”. “Desenhar é escrever dando cambalhotas”, define, ressaltando a ludicidade dos gestos que guiam a obra.
Além da própria Carolina Maria mineira, a Carolina Maria cearense cita nomes como a polonesa Wislawa Szymborska, a russa Anna Akhmátova, as brasileiras Cecília Meireles, Helena Kolody, Ana Miranda e Ângela Gutierrez, além dos Campos ancestrais, como referências e influências da própria prática.
Com o reconhecimento da premiação do Ministério da Cultura, Carolina divide que irá buscar publicar “Esvai” ainda em 2024. “O livro está vivo e crescendo”, celebra.
Guerra no Sertão
Um “ponto fictício da Guerra de Canudos” que parte da obra basilar e clássico nacional “Os sertões”, de Euclides da Cunha, publicada em 1902 e se irmana com “A guerra do fim do mundo”, livro do peruano Mario Vargas Llosa publicado em 1981 e que também narra o conflito ocorrido no sertão baiano entre a ficção e a realidade.
A descrição acima ajuda a dar conta do romance “Guerra no Sertão”, obra da cearense J. Cavalcante que foi selecionada ao Prêmio Carolina Maria de Jesus. O texto, explica, vem na esteira de outros dois lançamentos de autoria dela em 2023: os romances “As pedras de sal não mentem” e “Dos olhos de Maria das Candeias”.
“Os três livros se passam no sertão do Ceará. São livros cearenses, Literatura Cearense. Há muito do Ceará nos três”, reforça a autora. O romance premiado pelo MinC acompanha, conforme J., um grupo de onze pessoas que empreende uma tentativa de recomeço das vidas em uma cidadezinha do interior.
O texto, então, narra as histórias de vida das personagens, indo das trajetórias que as levaram até aquela região e chegando na participação delas em meio ao conflito histórico.
Formada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará, J. se voltou à prática literária quando decidiu trocar o caminho profissional seguido até ali para cursar Letras na Universidade Federal do Ceará, aprofundando o caminho no mestrado e doutorado.
Citando Carolina Maria de Jesus, cujas palavras descreve como “a consciência de uma mulher viva”, Conceição Evaristo, Paulina Chiziane, Chimamanda Ngozi e mais, J. celebra as autoras. “Como leitora, admiro muito a literatura escrita por mulheres. De Safo à Carolina Maria de Jesus, e todas as que vieram depois, as mulheres vêm contribuindo muito para a escrita de textos em diferentes gêneros”, afirma.
Políticas afirmativas
Secretário de Formação, Livro e Leitura, o cearense Fabiano Piúba destaca que o Prêmio Carolina Maria de Jesus é mais do que uma política de uma só linguagem. “Gosto de pensar a literatura como tradução da diversidade cultural de um povo e de sua nação. Nesses termos, para além da literatura, o Prêmio se apresenta como uma política cultural mais abrangente”, afirma o gestor.
Promoção da cidadania e diversidade cultural, fomento às artes e economia criativa, promoção do livro e da leitura e políticas afirmativas e territoriais são elencadas por ele como partes da ação.
O Prêmio, inclusive, foi o primeiro do Ministério da Cultura a contar com políticas afirmativas. As mais de 2,6 mil inscrições no edital revelam, como aponta o gestor, “um cenário rico de mulheres escritoras em nosso país”, mas a intenção é “aprimorar e ampliar a diversidade étnica, territorial e de gêneros”.
“Cremos que a avaliação com as críticas e sugestões será vital para que uma próxima edição possamos radicalizar no acesso, acessibilidade e nas políticas afirmativas”, adianta o secretário.
Para as primeiras contempladas pelo instrumento, o caminho após o reconhecimento pode ser o da concretização das publicações. “Um Prêmio dessa natureza pode chamar atenção do mercado editorial e algumas editoras podem se interessar em publicar as obras premiadas”, afirma Fabiano.
“As escritoras premiadas terão toda liberdade de publicar suas obras da maneira que considerarem mais adequada no cenário editorial brasileiro. Elas são detentoras dos direitos autorais e são autônomas em relação às suas obras”, segue.