Premiado livro do catalão Enrique Vila-Matas investiga os motivos do ‘não literário’

Em nova edição, “Bartebly e Companhia” descortina, num híbrido de gêneros, o que levou autores a preferirem não mais escrever

Ultrapassando o dispositivo fácil da simples recusa, a afirmação do não é tão complexa quanto irresistível. Multiplicam-se os motivos. A apatia com as intransigências do cotidiano, o desejo de silêncio para a escuta atenta de outras demandas, a rebeldia da insubmissão. O famoso “preferiria não” – expressão atrelada ao personagem Bartebly, do romance de Herman Melville (1819-1891) – parece cumprir expediente infindo no ontem e no hoje.

Não é surpresa, assim, que logo nas primeiras páginas de um dos mais famosos títulos do catalão Enrique Vila-Matas haja uma demarcação precisa desse modo de experienciar as coisas. “Todos nós conhecemos os barteblys, seres em que habita uma profunda negação com o mundo”, ele diz. 

Neste caso, o narrador arma o campo de análise para investigar especificamente o “não literário” de um sem número de autores. Em “Bartebly e Companhia”, a pulsão negativa, ao mesmo tempo que enredo, é guia, articulando reflexões por caminhos tão particulares quanto curiosos e, por que não dizer, dotados de atração

O premiado livro ganha nova edição pela Companhia das Letras nos 20 anos de lançamento, comprovando o quanto a pena de Vila-Matas contorna a efemeridade e chega, vibrante, em novos e veteranos públicos. Afinal, se a impossibilidade gera o criar, o que pode sublimar esse mesmo latejo para a produção literária?

Hibridismos e impulsos

A incógnita atravessa a obra num híbrido de gêneros que muito abraça o caráter amorfo do que se configurou chamar de pós-modernidade. Ora espécie de diário, ora em tom de crônica, ensaio e conto, os textos do romance (?) encaram a pluralidade da literatura de frente, aspecto capturado com maestria já na capa do livro. Nela, um arranjo desordenado de páginas não impede que essas mesmas folhas estejam juntas, encapsuladas.

De J.D. Salinger (1919-2010) a Arthur Rimbaud (1854-1891), passando por Franz Kafka (1883-1924) e o suíço Robert Walser (1878-1956) – este que tinha como maior sonho ser esquecido – o panorama é fértil de referências ao “não”. Enrique, inclusive, não apenas se detém nos inúmeros casos verídicos de fissura com o “sim”, como concebe personagens fictícios tão ou mais vorazes nos delírios da palavra inversa, silenciosa.

Em determinado instante das narrativas, por exemplo, conhecemos o caso de um poeta que, ao término da escrita dos versos, fuma a própria criação, num deliberado ato de soberania. Pouco mais à frente, deparamo-nos com o excêntrico Paranoico Pérez, cujo motivo para nunca publicar livros deve-se ao fato da crença de que todas as ideias por ele concebidas são roubadas por José Saramago (1922-2010).

Entre a fina ironia e a pesquisa apurada, os trajetos paradoxalmente conduzem a uma aguda ebulição criativa. É como se Vila-Matas, ao deter-se nas ocorrências negativas que traz a público, imergisse ainda mais na escrita e produção literária, passeando pelos mutismos alheios de modo a encontrar um jeito próprio de falar dos interesses artísticos, dos universos em riste eclipsados na calada de inspirações.

Não deixa de ser também um tributo à autonomia, ao desejo de independência. “Lembrei de Albert Camus: ‘O que é um homem rebelde? Um homem que diz não’”, provoca o narrador. Renúncia que é igualmente lacuna das formas extremas sob as quais se apresentou o mal-estar da cultura e cujo horizonte parece não ter fim. A bem da verdade, se propaga toda vez que há despedida, quebra, fenda. Toda vez que nasce mais um bartebly.


Bartebly e Companhia
Enrique Vila-Matas
Tradução: Josely Vianna Baptista e Maria Carolina de Araújo

Companhia das Letras
2021, 184 páginas
R$ 69,90

 

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Rinha de galos
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Moinhos
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Relicário Edições
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R$ 55,90