No vocabulário da exposição “Se Arar” — que se aproxima dos últimos dias em cartaz, após passar mais de um ano na Pinacoteca do Ceará —, os núcleos temáticos que compõem a mostra são denominados “afluentes”. O termo, que se refere a cursos d’água que deságuam em outros, dá conta das possibilidades múltiplas de percorrer as 177 obras expostas.
Seguindo disponível ao público até o próximo dia 31 de março, “Se Arar” teve abertura junto à própria inauguração da Pinacoteca, em dezembro de 2022. De lá para cá, chega à marca de 16 meses em cartaz, com realização de 579 ações educativas que alcançaram 8285 pessoas.
Reunindo obras do acervo do Governo do Estado do Ceará e trabalhos de artistas contemporâneos convidados, ela compõe a mostra “Bonito pra chover”, que conta com exposições em homenagem aos artistas cearenses Antonio Bandeira e Aldemir Martins
Os números e dados reverberam as grandezas também simbólicas de “Se Arar”, que se permite ser visitada a partir de diferentes fluxos e intenções, abrindo mão de um caminho cronológico e cartesiano.
“O mais potente às vezes é a relação que as obras podem construir, as histórias”, aponta Lucas Dilacerda, que assina a curadoria com Cecília Bedê, Herbert Rolim, Maria Macêdo e Adriana Botelha. Em visita guiada pelo curador, o Verso seguiu um curso cuja proposta foi destacar como a exposição conta a história do Ceará a partir de perspectivas sociais e também íntimas.
Seca e litoral
No primeiro afluente de “Se Arar”, intitulado Cearás Fabulados, as obras propõem um caminho que fricciona imaginários distintos do Estado. Um deles é evidenciado em “Relicário da seca” (2013), obra do artista cearense Zé Tarcísio.
“Ele parte da grande ‘Seca do 15’, esse episódio já muito registrado a partir da literatura, e vai registrar essa história por meio das artes visuais, por meio de pedras que coleta de rios que secaram”, inicia Lucas.
Pela concretude das pedras, a obra elabora a ausência da água a partir da guarda dessas rochas em relicários, descritos pelo curador como “local de memória”. “Eles são esse objeto de um sagrado pessoal, de cuidado, onde a gente guarda nossas memórias, que contam nossa história”, aponta.
“A gente tem a ideia de que a história tem que ser contada sempre por pessoas, mas a obra está falando como que os rios também contam histórias, como as pedras também são contadoras de histórias”, segue Lucas.
O curador lembra que o local onde hoje funcionam a Pinacoteca e outros equipamentos culturais foi, historicamente, a Estação Ferroviária Dr. João Felipe. “Durante os períodos de seca, retirantes vinham para a Capital em busca de água — que, aqui, é metáfora de emprego, moradia, alegria, condições para sobrevivência”, contextualiza.
“É como se a ausência da água mobilizasse esses deslocamentos territoriais, provocasse que esses corpos ficassem migrando de território em território. Então, a obra também fala sobre retirância, migração”, relaciona o curador.
Em Cearás Fabulados, há ainda outras obras que refletem sobre o imaginário da seca, da pobreza, mas o afluente faz um gesto em resposta a ele, evidenciando outro Ceará.
“A gente traz também imagens que contam a história de outra maneira: com fartura, felicidade, festa, fantasia. Esse conjunto lida com histórias mais pessoais, íntimas, que não entram nos livros, como por exemplo mostrando uma seresta, uma feira, a colheita”
Seguindo o fluxo das obras no mesmo núcleo, as diferentes artes em exposição passam a destacar, também, o imaginário litorâneo do Estado. O curador destaca, neste sentido, “Volta da Jurema” (1929), de Gerson Faria, que é a mais antiga da exposição e retrata a paisagem da praia na época.
“É interessante pensar como ela retrata certo modo de ocupação do espaço, como as casas eram construídas, a presença das árvores. Isso nos faz estranhar o presente: é olhar para essa imagem de quase 100 anos atrás e voltar hoje para esse mesmo lugar com ele já transformado”, aponta, citando da especulação imobiliária à ocupação da juventude do farol do Mucuripe, visível ao longe na pintura.
Outras formas de narrar a história
Chegando ao afluente Espelho do eu, as obras destacadas pelo curador propõem reconfigurações do olhar histórico, ressaltando artistas que o alargam para levar em conta atenção a temas como raça e gênero.
O “encontro” entre as obras “Deslimites da Memória” (2019), de Mestre Júlio e Cyro Almeida, e “Morango do Nordeste” (2021), de Trojany é um exemplo. Ligadas pela técnica tradicional da fotopintura, elas reconfiguram a prática.
“Fotopintores durante muito tempo deram conta da demanda de pessoas que não tinham condições financeiras para contratar um fotógrafo, ter direito a uma fotografia impressa. Também era uma maneira de fabular desejos delas, que pediam uma roupa mais arrumada, um brinco”, explica Lucas.
A fotopintura, porém, por vezes reproduzia lógicas de embranquecimento das pessoas, dado contraposto pelas escolhas tanto em “Deslimites da Memória” quanto em “Morango do Nordeste”. Na obra de Mestre Júlio e Cyro, há uma diversidade de pessoas retratadas. Já a de Trojany traz um gesto descrito pelo curador como “mais radical”.
Ao ter acesso às figuras dos avós por uma fotopintura, ela, uma artista preta, coloca a imagem em programas de inteligência artificial que vão “desconfigurando” as representações de raça e gênero na obra original. “Dá para pensar como essas histórias e gerações diferentes se encontram, como um saber atravessa gerações e se atualiza de outra maneira”, reflete.
Um impulso irmanado se revela na instalação “Caderno de viagem” (2017), de Simone Barreto, do afluente Ancestralidade e natureza. Na obra, a artista registra pelo bordado os caminhos que refez seguindo a “estrada do algodão”, como é conhecida a CE-060, caminho marcado por plantio e colheita da fibra vegetal.
“Ela vai colhendo e narrando histórias de cada cidade. Um aspecto importante que ela leva em consideração é como há muita desigualdade de gênero nesse processo. Ela vai trazendo histórias de mulheres para essa materialidade fundamental para a economia do Ceará”, explica Lucas.
O “ciclo do algodão” no Estado foi pujante entre o final do século XVIII e início do século XIX. “Em certos períodos históricos, ele era a nossa grande importação. Mas como contar essa história se se ignorarem as relações de gênero?”, provoca o curador.
“Hoje, tem se discutido muito isso: a gente não tem como narrar a história se não levar em consideração esses aspectos de gênero e raça”
Religação
Ainda no fluxo de Ancestralidade e natureza, Lucas destaca o protagonismo das religiões em obras dispostas no núcleo. “A etimologia da palavra ‘religião’ vem de ‘religare’, ou seja, é uma religação com essa energia ancestral da natureza, essa força cósmica que é muito mais que humana”, explana.
Entre obras como “Xirê de cura" (2021), de Maria Cecília Calaça — que, a partir da própria disposição, convida o público presente a girar, em um movimento que guarda ativações múltiplas —, o encontro entre “A dança dos orixás” (2008), de Canttidio Brasil, e “Os doze apóstolos” (sem data), de Mestre Noza, retrata “a nossa história de sincretismo”.
“A gente não faz aqui uma distinção de valor, são duas religiões diferentes e elas merecem estar nem acima, nem abaixo, mas ao lado uma da outra. É o gesto de colocar esse imaginário ao lado desse imaginário e ambos merecem respeito. Esse encontro fala muito de como há muito sincretismo e muito atravessamento entre essas duas religiões”, relaciona.
História viva
Os caminhos são fluidos e, reforça-se, não se limitam por cronologias e lógicas cartesianas. “AGITPROP”, um dos destaques da exposição assinado pela artista Aline Albuquerque, reverbera nas palavras e frases de ordem dos papelões como que um acúmulo de demandas históricas.
“Essa obra é a história do Brasil. Ela fala dos desejos, da vontade, dos sonhos de diversos povos, diversas populações. Essas várias frases, juntas, criam esse grande coro, essa grande reivindicação”, aponta Lucas.
“O trabalho de Aline é essa obra viva, porque enquanto houver política vai haver o trabalho dela. É uma obra que está sempre em transformação, como a própria história. Para além da história do Ceará, é a história brasileira”, reforça o curador.
Já em “Se não me falha a memória” (2019), movimentos recentes ocorridos na região da Beira Mar de Fortaleza são ressaltados pelo artista Samuel Tomé. Meio instalação, meio jogo da memória, a obra traz imagens e textos impressos nas duas faces de placas de madeira.
De um lado, representações de peixes que povoam a costa da região Nordeste; do outro, manchetes jornalísticas que se referem ao projeto abandonado do aquário do Ceará e às constantes “revitalizações” da orla fortalezense.
“Ela ao mesmo tempo lembra o formato de um aquário, só que de madeira, e um jogo. A gente tem uma espécie de anamnese política e o artista faz esse jogo da memória para a gente lembrar dessas notícias de novo”, afirma.
Próximos passos
“Se Arar”, inicialmente, tinha previsão de ocupar o Pavilhão 2 do museu entre dezembro de 2022 e junho de 2023. “Todas as nossas exposições são de longa duração — e seis meses é considerado de longa duração — porque os processos formativos são tão importantes quanto a própria exposição”, afirma o diretor do equipamento, Rian Fontenele.
Com “a visita e a identificação do público com a arte cearense”, incluindo as ações educativas e formativas que ocorreram a partir da exposição, a equipe do equipamento reconheceu “uma necessidade de amplificar esse tempo”. “Ela foi tão buscada que não tínhamos como ‘antecipar’ (a saída). Não é permanente, mas é a nossa exposição de mais longa duração”, aponta o gestor.
O diretor da Pinacoteca adianta ao Verso, ainda, o que acontecerá no local que acolhia a exposição até aqui, o Pavilhão 2. Uma espécie de “antessala” será dedicada ao acervo, contando com diferentes obras, e ao educativo. O restante do espaço será ocupado por uma mostra de obras da fotógrafa Claudia Andujar.
As outras duas exposições da mostra Bonito pra chover — Amar se aprende amando, de Antonio Bandeira, e No lápis da vida não tem borracha, de Aldemir Martins — seguirão em cartaz como “salas especiais”.
Finalmente, a outra exposição em cartaz na Pinacoteca, Leonilson e das amizades, prevista para permanecer aberta ao público até maio deste ano, dará lugar a uma exposição sobre arte cibernética e cinética em parceria com o Itaú Cultural.
Últimos dias da exposição “Se Arar”
Quando: visitação até 31 de março; de quinta a sábado, das 12 às 20 horas (entrada até 19h30), e aos domingos, das 10 às 18 horas (entrada até 19h30)
Onde: Pinacoteca do Ceará (Rua 24 de Maio, 34 - Centro, Fortaleza)
Gratuito.
Mais informações: no site da Pinacoteca do Ceará e no Instagram @pinacotecadoceara