Qualquer pergunta que os nossos filhos façam será uma surpresa, mesmo quando acreditamos prevê-la. Toda pergunta inocente é, por isso mesmo, carregada de sentido. Após reconhecer as cores, e me encontrar nelas, Lis revela em palavras uma percepção de mundo e, então, aos quatro anos de idade, abre questão. Uma que muitos anos antes abri.
Algumas questões torcemos que os filhos não façam, e pensarmos assim pode revelar do que tentamos fugir. Mas aqui foi o contrário. Responder sobre o que já me perguntei traz alívio - momentâneo, já que conhecer-se é infinito.
Porque na epopeia pelo autoconhecimento não basta que eu saiba quem sou, mas que cor sou. A indagação de Lis veio com a constatação do diferente - afinal, não perguntou por que ela própria não era marrom. Naturalmente.
Na adolescência, portanto com mais idade que minha filha, perguntei-me do marrom, ou melhor, negro. Uma tentativa de saber por que não ser igual aos não-negros que predominavam em minha vida - e quem não é negro já se sente branco. Era uma vidinha urbana de interior, mas de escola particular. Na maioria das séries, o mais "diferente" na turma. Nos filmes, o negro, quando havia, era mau. Nas novelas, o engraçado, malandro ou escravo (o Brasil tem uma tara por novelas de escravidão). Poderia ser bom sujeito, mas era sub.
Desde que me entendo por gente (antes que por negro), negritude era associado a trevas. No meu seriado preferido, Jaspion, o vilão Satangôs vestia uma armadura...Preta. É a cor do pecado. Depois veio a novela Carrossel, e Cirilo tinha em comum comigo ser o único negro da sala. Suficiente para sermos diferentes iguais.
Quando cursava a oitava série, um colega imprimiu cartazes e espalhou pela escola, no melhor estilo west "procurado". A sombra negra de um desenho qualquer. Embaixo, meu nome e a recompensa de cinquenta centavos. Um professor revoltou-se. Saiu pela escola arrancando os cartazes. Convocou a reunião com a turma após o recreio. Quando entrávamos na sala, deparamos com um cartaz com os dizeres "respeito" e "igualdade". A turma ficou constrangida, e antes que os colegas pudessem (porque quiseram) julgar o colega 'culpado', foram questionados sobre por que não fizeram nada. Pelo contrário, riram da brincadeira. Saí chorando pra casa, desejando apenas não ser. "Nos gostamos, e não fizeram nada". Mas quem poderá julgá-los?
Não há, neste mundo, consciência de cor sem choque de realidade, sobretudo quando o meio em que vivemos ainda é dos privilegiados: universidade, cinema, restaurantes, condomínios, um bom emprego. No início da carreira, ouvi que "parece tudo, menos jornalista". Mas já tinha amadurecido, inclusive, a consciência do não-lugar. Nos últimos anos, fui aplaudido por plateias brancas das principais cidades do País, depois fora dele. Nas calçadas de Fortaleza, diariamente, pessoas à minha frente apressam o passo, fecham o portão da loja, sobem o vidro do carro, apertam nervosamente as campainhas para que os porteiros lhes ouçam e abra. Diariamente. Um dia, quem sabe, talvez seja perguntado sobre "por que as pessoas correm". Por hora, foi de minha cor.
Respondi a Lis com orgulho:
- Pra quando a gente se abraçar, misturar os diferentes. Se juntasse todo mundo do Planeta num abraço, ia ser colorido, igual seu pijama. Igual aquarela, asa de passarinho.
- Eu gosto. Cor de chocolate.
- Da cor ou do chocolate? Indaguei.
- Dos dois.
Depois, fomos lá. Ser 'guache' na vida.