Onde vivem os mestres?

A casa dos Tesouros Vivos da Cultura cearense é móvel. Atravessa cidade, serra, praia e sertão para encontrar tradições em movimento

Alguns viajaram duas horas, outros dez. Partiram de geografias diferentes para "morarem" por quatro dias no Centro de Sobral e, sob o sol de dezembro, alumiarem os caminhos dos outros e os seus. Sabiam o que esperar e não sabiam. O Encontro Mestres do Mundo é, afinal, uma reunião de fazeres distintos, uma celebração ao conhecimento popular e tradicional, um terreiro aberto para a expressão da diversidade. Mas, para os Tesouros Vivos, pode ser muito mais do que isso.

"Quando o povo se junta, o poder se espalha", entoou a quilombola Maria de Tiê após uma sequência de emboladas com a irmã Francisca. A caririense foi uma dos 11 mestres diplomados nesta XIII edição do evento que, de 4 a 7 de dezembro, reconheceu também dois grupos e uma coletividade. O que todos eles representam, porém, não cabe em algumas letras escritas no papel. A maior expressão de arte é a própria vida, como bem ressaltou o pai da Carroça de Mamulengos, Carlos Gomide.

E para que servem os diplomas se os mestres não vivem neles? Nesse mundo-casa, há quem não valorize aquilo que é da natureza da oralidade, e é por esse motivo que o título timbrado no papel e na carteira de identidade também se faz necessário. Mas que fique registrado: um saber cultural não se perde nem se invalida, mesmo que a institucionalidade seja picotada.

Os mestres já sabem disso. Cresceram sendo questionados pelo que fazem. Muitos deles passaram por situações-limite pelo simples fato de entrarem na "brincadeira". "Olha esse cara aí, vive botando boneco e nunca foi preso; eu já tive que responder processo por causa da minha máscara no Reisado de Caretas", conta entre risos o mestre Antônio Luiz, de Potengi, apontando para Gilberto Calungueiro, de Icapuí. No dia, não deve ter sido tão engraçado. Mas o que realmente importa é o fato de, naquela data, a cultura ter vencido a arrogância dos homens fardados.

Trocas

Lá em Sobral, além da "arena-anfitriã" na Praça São João, enfeitada com as cores do Boi Paz do Mundo, do Mestre Panteca (in memoriam), e os sabores do doce de fartes, da Mestra Rita, as ruas da cidade também se abriram para cortejos ou passeios solitários de bicicleta. O evento atravessou as grades e arquibancadas, ultrapassou as feirinhas e se fez dentro das vans, elevadores e quartos de hotel compartilhados.

Acordar 7h e dormir mais de meia-noite jogando conversa fora com velhos e novos conhecidos virou rotina. Era possível encontrar Espedito Seleiro numa esquina às 23h e receber um convite dele para uma viagem até Nova Olinda. Por trás dos holofotes, os mestres trocavam causos e segredos de suas respectivas regiões e manifestações, e mais: aprendiam uns com os outros o ritmo da novidade.

Uma quilombola tocou pífano com um dos irmãos Aniceto; indígenas acompanharam o som dos pandeiros com os maracás; um balaieiro de 92 anos ficou surpreso por conseguir dançar pé de serra por mais de 20 minutos; e alguns brincantes de reisado juntaram-se à quadrilha junina como se fosse a própria especialidade.

Os mestres ignoraram todo tipo de distância e fizeram do próprio corpo o templo de suas respectivas regionalidades. Abriram as janelas de si para mostrarem-se uns aos outros como casa. Foram transparentes, espontâneos, fortes, livres. Poderia apostar que Belchior, se ali estivesse, cantaria com todos eles e para todos nós que "o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente".

*A jornalista viajou a Sobral a convite da Secult