Mãe e filha moravam em uma cidade pequena e turística do Nordeste, famosa pelos quarteirões preservados do bairro histórico. A mãe nasceu, se criou e agora tinha medo de ser devorada ali. Fazia alguns dias que as duas não colocavam os pés para fora de casa. É como se a cidade sequer existisse até a entrada em cena de Diana e sua mãe. A rua, a cidade e suas onças invasoras eram esse livro que se abre e do qual depois se esquece.
A mãe sempre gostava de monitorar as reações iniciais da filha. A menina primeiro se punha em alerta, à procura de qualquer vestígio, na rua, de uma onça. Depois, relaxava. Por fim, um reconhecimento triste – havia uma rua, ela era real? – atravessava o rosto da filha. Melhor não chamar a atenção delas. A mãe sabia, contudo, que, quando as onças decidem pegar você, não adianta correr.
Corta para o interior de um galpão. Nele, encostada em dois pilares improvisados de pedra, ela descansava. A Noiva. Goteiras caíam do teto. O ar estava carregado de terra, bem como de um perfume doce – um incenso queimava perto da Noiva. Ela se espalhava. Por todo lugar. A Noiva habitava as pupilas dos garotos que ali estavam. As palavras e silêncios deles.
Estava nua e fria. Pés sujos. Joelhos arranhados. Lábios roxos; marcas-manchas estranhas ao redor do pescoço; olhos vazios. A Noiva tinha cabelo muito escuro, longo, que descia sobre os ombros e cobria um pouco os seios. Na cabeça, alguém tinha colocado uma coroa, tecida com uma mistura de folhas secas, palha e casca verde de milho. Aos pés dela, presentes.
Estes são recortes de duas narrativas de “Gótico nordestino”, novo livro de Cristhiano Aguiar, publicado pela editora Alfaguara. O escritor, professor e crítico literário paraibano é mais um nome a contribuir para o mergulho nos causos da região, não sem antes imprimir originalidade em cada uma das nove histórias contadas.
São universos que se aproximam de nós feito nuvem densa do sertão: há mistério, temor e, por que não, grande fascínio por esse clima quase sempre noturno. “As influências que se revelam mais explicitamente em ‘Gótico nordestino’ – o terror, o neofantástico, o insólito, a ficção especulativa – sempre estiveram presentes em tudo que escrevo”, explica o autor. “Mas desde 2018 decidi que elas seriam mais predominantes nas minhas narrativas”.
Abrindo as portas da imaginação, Aguiar achou, assim, um caminho que fez sentido para ele. Logo, começou a perceber um conjunto de contos sob sua assinatura que dialogavam com referências do gótico e da literatura fantástica do século XIX, bem como com outras referências semelhantes na cultura pop.
Ao mesmo tempo, notou que essas mesmas histórias eram todas ambientadas no Nordeste, usando raízes culturais e sociais da Paraíba e de Pernambuco. Assim nascia a obra recém-lançada, um poderoso inventário de figuras tão aterrorizantes quanto próximas.
Construindo o universo
Narrativas sobre o aspecto sombrio da região não são novidade. Mas “Gótico Nordestino” instaura algo bastante singular pela maneira com que apresenta novas faces do assunto. No correr das páginas, nos deparamos, por exemplo, com “Lázaro” – capítulo no qual uma estranha epidemia traz os mortos de volta à vida, embora eles não sejam mais os mesmos.
Há também “Firestarter” e sua legião de seguidores do fogo, que atravessam o Brasil registrando incêndios e a ruína de pessoas e espaços. E – como se entoasse, ao fundo, “Mistérios da meia-noite”, de Zé Ramalho – ainda nos é apresentado um vampiro no último conto da obra. “É ruim uma cidade ter um vampiro? Não é ruim, mas também, nos explicavam, está longe de ser a condição ideal para um lugar. Havia os vampiros brasileiros e os estrangeiros (os últimos sempre pareciam ser mais sedutores, interessantes, misteriosos)”.
Para construir esses tipos e essa atmosfera, Cristhiano partiu de bases encontradas, por exemplo, no livro anterior do autor, “Na outra margem, o Leviatã” (2018, Lote 42). São dramas psicológicos, epifanias vividas pelas personagens, conflitos familiares e a problematização da memória. Contudo, o realismo no sentido tradicional se esgotou para Aguiar, justificativa para que os contos atravessem as veredas da literatura fantástica.
“Lendas e causos nordestinos alimentam meus contos de maneira indireta porque penso que já existem ótimos livros que lidam com essa matéria-prima de modo mais explícito. Senti que meu caminho era outro. Ao escrever, queria que existisse uma narratividade bastante sedutora aos possíveis leitores do livro, enquanto ao mesmo tempo tentei propor crítica social e reflexões sobre política, família, a natureza do mal, a violência, o sagrado, o desejo”.
Há um componente a mais. Desde criança, o autor é fascinado por histórias fantásticas e lendas, tendo contato com elas por meio da tradição oral que o cercava e pelos livros. Cristhiano amava acompanhar obras que recontavam mitologias de diferentes povos. Se tivessem ilustrações, melhor ainda.
Além disso, como foi criado em ambiente muito religioso – a família dele é protestante – o sobrenatural sempre foi uma dimensão fascinante a ocupar o cotidiano. De imediato, ele não queria repetir o livro de 2018, assim como não planejava que o projeto da nova obra fosse uma compilação de causos do imaginário sobrenatural nordestino.
“Estabelecendo essas duas balizas, mergulhei na escrita dos contos procurando criar personagens psicologicamente críveis, envolvidas em situações-limite que ameaçam a nossa certeza sobre a essência do que é, ou não, a realidade. O que eu vou dizer é um clichê de escritor, mas todo lugar comum tem sua sabedoria. ‘Gótico nordestino’ foi escrito como o livro que o Cristhiano-Leitor procurava nas livrarias, porém não encontrava”.
Metafisicamente rachado
Para além de figuras ficcionais psicologicamente realistas, outra preocupação foi tornar reconhecíveis os elementos temporais, históricos e os espaços nordestinos de cada conto. Afinal, o universo ficcional de Cristhiano Aguiar não é nonsense. Na verdade, está metafisicamente rachado. Muitas das personagens estão em uma jornada de sobrevivência, ameaçadas por forças corrosivas dentro delas mesmas. O quadro depressivo da protagonista do conto “Anna e seus insetos” é um exemplo.
Existem também aqueles que estão tentando sobreviver a um mundo que lhes é hostil, como no capítulo intitulado “Anda-luz”. Ao longo da escrita do livro, o autor buscou diversificar não apenas a idade, a raça e o gênero das personagens, mas em especial o tipo de relações familiares que elas estabeleciam entre si em cada narrativa. “Parto, portanto, de uma grande influência do realismo flaubertiano do século XIX, bem como da prosa realista modernista do XX, e depois tento implodir isso com ecos do gótico, do terror, do fantástico”.
Diante desse cenário, fica a dúvida: o quanto de verídico existe no livro, principalmente considerando que ele abarca períodos como o da ditadura militar e até a pandemia de Covid-19? Cristhiano diz que a cena inicial do já citado “Anna e seus insetos” – quando a protagonista, recostada na cabeceira da cama, observa um inseto dando voltas no ar até que ele caia em um copo cheio de água – aconteceu, de fato, com ele e foi o “gatilho” do conto.
“A cena seguinte, do besouro na pia, também aconteceu. Mas acho que estas são das poucas cenas que foram traduzidas diretamente da vida real, digamos. Há mais recriações de contextos sociais e de angústias minhas”.
A claustrofobia e a ameaça da pandemia, por exemplo, estão presentes do início ao fim da obra. Os canaviais pegando fogo em “Firestarter” são resultado dos incêndios à beira da estrada que o autor via quando viajava de Campina Grande para Recife (e vice-versa). “A Noiva” é ligeiramente baseado em lembranças de infância do pai de Aguiar.
“Para escrever ‘Gótico nordestino’, eu não tive medo do tempo presente. Porém, tentei a todo custo criar histórias nas quais leitores reconhecessem fatos políticos e sociais, por um lado, mas os vivessem, no ato da leitura, como entidades autônomas, com vida própria”, explica.
Diálogos entre criações
Posicionado junto a escritoras do calibre de Mariana Enríquez e Samanta Schweblin, Cristhiano diz que a literatura latino-americana será sempre seu porto seguro. Ele vai de Maria Luisa Bombal (1910-1980) e Jorge Luis Borges (1899-1986) a Bioy Casares (1914-1999), Gabriel García Márquez (1927-2014) e Juan Rulfo (1917-1986).
Também tem como referências a prosa modernista brasileira – em especial Clarice Lispector (1920-1977) e toda a turma do romance de 30. Em tempos recentes, passeia pela prosa de autoria feminina contemporânea, a exemplo de Elena Ferrante, Alice Munro, Margaret Atwood, Ursula Le Guin e Djaimilia Pereira de Almeida.
“A gente vive um boom da literatura fantástica no Brasil. Autores e autoras têm se afirmado com força em tempos recentes. Creio que o público leitor brasileiro é hoje mais aberto para consumir literatura fantástica nacional. Escolas e universidades também têm franqueado as portas para essa produção, assim como o jornalismo cultural”.
Ele sente essa aderência igualmente em outras linguagens artísticas. Eis uma prova: a produção de curtas, médias e longas metragens de terror no Brasil se intensificou nos últimos anos. Na Paraíba, estado natal de Aguiar, está sediada uma das principais produtoras de terror no audiovisual nacional, a Vermelho Profundo.
As influências podem ser percebidas inclusive em cineastas brasileiros que não produzem terror ou cinema fantástico no sentido estrito da noção. Os três últimos longas do pernambucano Kleber Mendonça Filho têm por todo lado digitais da atmosfera do horror, da ficção científica e do fantástico.
Corrosão de democracias, ascensão do neo-fascismo, pandemias, algoritmos que fomentam polarizações políticas, robôs influenciando eleições, redes sociais nublando a noção da realidade, radicalizações religiosas enxergando no outro o demônio a ser aniquilado. Conforme o autor, estes são tempos que nos fazem lembrar de enredos sombrios. Não à toa, o interesse não só pelo gênero cuja insígnia é o medo, mas pelas narrativas especulativas e do fantástico, em geral.
“Desde sua origem, o terror tem algo a dizer sobre política. Livros, séries, quadrinhos e filmes recentes têm voltado a pontuar com veemência essa vocação do gênero. É o caso de temporadas de ‘American Horror Story’; dos livros de Mariana Enríquez; ou de um filme maravilhoso como ‘O animal cordial’, de Gabriela Amaral de Almeida. Meu livro sofre influência de tudo isso, sem dúvidas”.
Notícia boa: existe o projeto de estender o rastro de “Gótico nordestino” – embora o próximo volume ainda vá demorar. Cristhiano tem ideias rascunhadas para outros contos, inclusive porque não conseguiu, nas nove histórias apresentadas no primeiro volume, homenagear tudo que gosta no terror e no insólito.
Para adiantar, falta um conto sobre exorcismos; e outro sobre o tema do Fausto, da pessoa ambiciosa que vende a própria alma e das consequências que daí advêm. “Mas meu próximo livro de ficção será, com certeza, uma novela ou romance. Tenho algumas ideias, mas vocês podem esperar algo na linha da atmosfera insólita do ‘Gótico nordestino’, sim”, vibra.
“Pode parecer estranho, mas sinto que ainda estou em processo de entender o que significa esse livro para mim e como ele me escreveu enquanto eu o escrevia. Em relação ao Nordeste, posso dizer com certeza que uma das provocações da obra é sobre como definir essa palavra e, por consequência, como narrar e interpretar o Brasil em que vivemos no século XXI. Acredito que há vários Nordestes existindo em múltiplas realidades – sociais, imaginárias – e o Nordeste dos meus contos é somente uma dessas possibilidades”.
Gótico nordestino
Cristhiano Aguiar
Alfaguara
2022, 136 páginas
R$54,90/ R$37,90
> Outros livros sobre o fantástico na região Nordeste
“O Auto da Maga Josefa”, de Paola Siviero
Demônios, múmias, vampiros, chupa-cabras: são muitas as criaturas sobrenaturais que assombram o sertão. Ultimamente, para Toninho, um reconhecido caçador de demônios, herdeiro de uma linhagem antiga de outros caçadores, trabalho não falta. Seu ofício, entre tantas outras especialidades, é viajar no lombo de uma mula encantada, Véia, levando peixeira mágica e caçando cada um desses seres. Em uma dessas aventuras, Toninho conhece uma misteriosa mulher que acaba se tornando sua companheira de caçadas: Josefa é maga e, por isso, filha do sete-pele. Por isso, a alma dela está condenada a ir para o inferno. Mas tal origem não a impede de tentar expurgar o mal da Terra.
O Auto da Maga Josefa
Paola Siviero
Gutemberg
2021, 224 páginas
R$49,80/ R$34,90
“Farras fantásticas”, por vários autores
A antologia reúne 18 contos de autoras e autores nordestinos, misturando a tradição e o contemporâneo. São histórias que celebram as festas populares de cada um dos nove estados da região com um toque do fantástico, do especulativo. O livro é uma homenagem ao que há de melhor na cultura popular e, ao mesmo tempo, vai além. Procura entender o passado para ressignificar o presente e construir outro futuro. Os nomes que compõem a antologia são: André A. Lima, Auryo Jotha, Carol Vidal, Cesar Miranda, Chico Milla, Fernanda Castro, Franz Andrade, G. G. Diniz, Guilherme Ramos, Henggo, Henrique Ferreira, Igor Chacon, Laís Lacet, Laísa Couto, Márcio Benjamim, Mariana Madelinn, Nina Ladeia e Thiago Lee.
Farras fantásticas
Vários autores
Organização: Ian Fraser, Ricardo Santos e João Mendes
Editora Corvus
2021, 352 páginas
R$50
"O Cravo Roxo do Diabo: O Conto Fantástico no Ceará", por vários autores
Lançada em 2011 e organizada pelo escritor Pedro Salgueiro, a antologia traz 172 contos e um apêndice com 17 capítulos de romances e 60 poemas, compondo, assim, um amplo panorama do texto fantástico cearense produzido entre os séculos XIX e XXI. Na primeira parte do livro dedicada aos contos, constam 172 narrativas organizadas em ordem cronológica do ano de nascimento dos seus autores, tal como ocorre nos dois Apêndices. Todos os textos, embora focalizem o extranatural por procedimentos estéticos diferentes, inserem-se no que se denomina, hoje, literatura fantástica, com histórias de mistérios que confrontam o racional e o irracional.
O Cravo Roxo do Diabo: O Conto Fantástico no Ceará
Vários autores
Organização: Pedro Salgueiro
Independente
2011, 673 páginas