'O Homem Ideal' : amor e solidão no mundo guiado por algoritmos

Com delicadeza, bom humor e profundidade, o filme alemão que chega ao HBO Max entrelaça romance e ficção, numa realidade onde a Inteligência Artificial se dispõe a livrar a humanidade da solidão

O que você faria se pudesse ter um parceiro perfeito, projetado sob medida pela Inteligência Artificial?  O tema, embora não seja inédito, ganhou nova abordagem com o filme “O Homem Ideal”, adicionado ao catálogo da HBO Max na última semana.

O título pode até remeter a um romance adoçicado,  mas a verdade é que  o longa segue na contramão: foi feito para pensar e não apenas divertir. Tanto que arrebatou o Prêmio de Cinema Alemão como Melhor Filme  de 2022. 

A produção, dirigida por Maria Schrader (mais conhecida no Brasil por seu trabalho na série “Nada Ortodoxa”), oferece um olhar original sobre a relação entre humanos e robôs/humanoides.

Incomum, esse modelo de romance, que pode virar realidade num futuro não tão distante, já fez sucesso em histórias emblemáticas da telona. “Blade Runner, O Caçador de Andróides”, “Ela”, “Ex-Machina”, “O Homem bicentenário” e alguns episódios de “Black Mirror” são bons exemplos de como esse argumento pode sustentar uma boa narrativa. 

Medos inerentes

Aqui, Schrader dá um passo a mais para mostrar o abismo entre criaturas biológicas e digitais. Para isso, entrelaça a ficção e o drama a partir de fios filosóficos inerentes aos que temem a finitude, o fracasso e acima de tudo a rejeição amorosa. 

E assim começa a história de Alma (Maren Eggert), uma pesquisadora acadêmica que desenvolve um projeto sobre escritas antigas. Independente, do alto de seus quarenta e poucos anos, ela enfrenta dois desafios: primeiro superar o fim de um relacionamento mal resolvido com um colega da universidade e, depois, conseguir recursos para bancar sua pesquisa.

Trocada por uma mulher mais jovem e sem verbas para avançar em sua pesquisa, Alma aceita participar de um  experimento que tem o potencial de remodelar o mundo inteiro. Em troca receberá a doação que precisa para o seu projeto. 

Para isso, terá que conviver e interagir com Tom (Dan Stevens), um robô que tem a forma de um homem atraente, programado sob medida para ser o seu companheiro ideal. Alto, bonito, com belos olhos azuis, inteligente e atencioso, o rapaz é o pacote completo, um “match” difícil de achar nos aplicativos de encontros. 

A ideia parece revolucionária. Mas... já no primeiro encontro, em um bar lotado de casais em aparentes encontros marcados, Alma ouve o primeiro elogio de Tom: “Seus olhos são como dois lagos numa montanha”. Uma citação “ipsis litteris” de seu autor preferido. No livro funciona. Fora dele parece bizarro e deslocado. Três perguntas depois, e ela está convencida de que não vai conseguir ficar ao lado de um ser tão artificialmente perfeito.

Peso do futuro

A realidade que falta na experiência a dois, sobra em viscissitudes no dia-a-dia de Alma. Colocando o drama de muitos de nós em cena, ela vê a idade avançar sem grandes perspectivas. O vazio existencial que a ronda se agiganta quando faz suas visitas semanais ao pai, um idoso octagenário que, embora dê fortes sinais de que está perdendo a sanidade, prefere viver sozinho, afastado da cidade, perdido entre suas memórias.

É como se o pai, sempre mal-humorado e ausente, fosse um enorme espelho onde ela vê refletido o seu próprio futuro, caso não consiga achar alguém para dividir bons e maus momentos. 

Embora tenha a ajuda da irmã para cuidar do pai e  por mais que tente ser otimista, Alma sabe que já passou da idade de planejar o filho que tanto quis e que poderia ser uma “saída” para combater a solidão.

Depois de encarar seus dilemas familiares, ela se deixa persuadir e aceita a proposta de morar com Tom por três semanas seguidas. É devidamente avisada pela funcionária da empresa de tecnologia (Sandra Hüller) que o protótipo está programado para se ajustar e ser o tipo de homem com quem ela poderia viver, ou mesmo amar.

Tempos líquidos

Chegamos à questão principal. O tal do amor. Zygmunt Balman há tempos nos esclareceu sobre a fluidez dos tempos líquidos. Descreveu como seria amar em um mundo onde as relações se tornam cada vez menos sólidas e estáveis. Nas palavras do filósofo, “amor líquido parte do padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação”. Uma premissa que pode se transformar numa sombria profecia. Quem sabe?!

Claro que nem todos se contentam com amores líquidos. Além disso, a uma certa altura da vida,  percepções e até mesmo valores podem mudar. O “fica” e as múltiplas conquistas já não são tão divertidos e libertadores quando amadurecemos ou quando nos sentimos deslocados em tempos modernos. Vale para homens e mulheres.

O que queremos

O grande trunfo do filme está justamente em gerar reflexão sobre o que desejamos, sem apelos morais e sem perder o bom humor. Inspirado em um conto de Emma Braslavsky, “O Homem Ideal” é um romance contemporâneo divertido e inteligente. 

Um dos pontos altos da trama é ver o quanto a perfeição pode assustar. Como não tem filtros e máscaras sociais, Tom faz perguntas desconcertantes. Como não é programado para mentir, diz o que pensa (com base nas análises digitais) e coloca Alma diante da verdade nua e crua. Os humanos tendem a minimizar os danos nas interações sociais, para isso existem as farsas delicadas e as meias verdades. Um robô não faz concessões. Ele joga a real sem se importar com as consequências.

É engraçado encarar nossa demasiada hipocrisia humana. Todos nós vivemos apregoando o quanto seria maravilhoso ter uma pessoa 100% sincera do lado. “Não me esconda nada”, dizemos. Mas será que suportaríamos 24 horas seguidas de opiniões autênticas ou de questionamentos genuínos? Só vendo para entender como nossas imperfeições são exatamente aquilo que torna únicos e especiais. 

Ambientada em Berlim, com um  visual bem sutil, a história segue o dia-a-dia de Alma e Tom. Juntos, no apartamento dela, os dois, se estranham quando ele segue o algoritimo e faz examente o que ela disse gostar. Ela, por sua vez, acha tudo exagerado, forçado como se estivesse vivendo um teatro. Tom não entende. Afinal, fez tudo que a companheira sempre sonhou ter. Ainda assim, é rejeitado. Os desencontros seguem até que a lucidez do robô acaba desarmando Alma.

O roteiro traz tudo para a realidade, sem espetacularizar o digital ou idiotizar o humano.

A interação de Tom com outros personagens, como a irmã, sobrinho e pai (Wolfgang Hübsch) de Alma, além de seu ex-noivo Julian (Hans Löw), são especialmente curiosas, gentis e divertidas. Todos o adoram. Aqui vale um parêntese para reconhecer a interpretação convincente de Dan Stevens (conhecido pela série Downton Abbey). 

Alma, no entanto, fica mais e mais confusa à medida que vai descobrindo e gostando dos novos padrões que passa enxergar em Tom. Carente, com raiva por ter sido trocada e arrastando traumas pessoais, não demora até que ela cogite a possibilidade de se render à versão digital do amor.

Quanto mais a trama se aproxima do surreal, mais as questões existenciais ganham importância. Enquanto o corpo fala sim, a mente sussura não. É como se ouvíssemos os pensamentos da protagonista: “a solidão pode mesmo ser aplacada por simulacro”? “Quanto de humano restará em mim, se embarcar nesse viagem de autoengano”? “E se não me restar nada além dessa opção”?

Tom percebe o dilema e confronta Alma: “A verdade é que você não sabe o que quer”.

Sim, Alma não sabe. Quem sabe afinal? De um lado há aquela sensação de solidão avassaladora  e as incerteza quanto ao futuro. Do outro, o risco de nos contentarmos com falsas ideias de satisfação vindas de amores passageiros ou artificiais.

O desfecho dado pela diretora é comovente, sincero e, acima de tudo, coerente com aqueles que enfrentam os dilemas do amor. Paradoxalmente pode ser esse sentimento que faz a gente se arriscar tanto em busca de alguém, mesmo que não seja o ideal.