Partiu da vida o mestre João Gilberto, cantor e compositor nordestino, reverenciado mundialmente. Faço questão de qualificá-lo como nordestino porque sabe-se que foi esta região que legou ao Brasil o samba e, décadas depois, legou ao país, através de João, também sua mais importante renovação: a Bossa Nova.
Mas o Nordeste são muitos, e legou outras relíquias à nossa música de orientação diferente, outras bossas, não necessariamente velhas. Uma delas é a composta por ritmos e musicalidades egressas dos folguedos populares formadas pela conjunção das tradições europeias (a modinha, o schottisch, o trovadorismo, as danças coletivas e circulares etc.) com os ritmos e danças sincopados de origem afro-brasileira e indígena (principalmente no Ceará, Maranhão, Pernambuco e Paraíba).
Foi Luiz Gonzaga o grande agente mediador dessas tradições. Ele, visionariamente, transformou a música desse caldeirão buliçoso de manifestações populares, praticadas pelo povo do Nordeste setentrional (rural e praieiro) em um produto condizente com o gosto das massas dos grandes centros urbanos e o traz para o mercado nacional provocando, se não um impacto, uma repercussão talvez tão forte quanto o da Bossa Nova.
A geração de artistas cearenses que mais pôde se expressar na mídia (Belchior, Ednardo e Fagner), sem esquecer de Amelinha, Cirino, Fausto Nilo, Rodger Rogério, Téti, e outros preferiu reler essa tradição, referenciando-se musical e textualmente na cultura e na realidade desse Nordeste. Só que não apenas nele.
Marcada pela urbanização desnorteante a que boa parte do povo nordestino por necessidade teve que se submeter, a música desses cearenses vai sofrer grande influência da música anglo-americana “jovem” da época, que já exercia fascinação sobre a juventude do período por seu caráter de rebeldia e de inconformismo.
Em relação à voz cantada, tais artistas vão conjugar elementos da tradição nordestina com o estilo vocal característico do rock: a voz de som áspero e forte produzida mais pela garganta (tensão da laringe) e cavidades nasais, do que das câmaras de ressonância do peito e da cabeça.
Então, a música cearense não só não adere à vaga da Bossa Nova, como se posiciona contra a estética bossa-novista. Não só porque a Bossa Nova exclui, em seu recorte estético, a vertente nordestina (salvo na obra dos que fizeram a dissidência intitulada “canção de protesto”). A própria forma de cantar dos cearenses comete “pecados” condenados pelos bossa-novistas.
Ouça-se, por exemplo, o “trinado” ou vibrato das interpretações de Ednardo e Fagner (acompanhando neste uma vibração vertical da cabeça); a voz metálica e um tanto estridente deles dois e também de Rodger Rogério, Fausto Nilo, Téti e Amelinha (comparem-se as vozes de ambas com as vozes apolíneas de Nara Leão ou Sylvinha Teles); os sussurros sensuais e a rouquidão, bem como os trechos em murmúrios rápidos, da interpretação de Belchior.
Em todos esses casos se ultrapassam os limites da contenção proposta pela estética bossa-novista. A rascante melancolia de canções como Retrato marrom (Rodger Rogério/Fausto Nilo) e Asa partida (Fagner/Abel Silva), cantadas por Fagner; os protestos e as ironias ferinas de Belchior e Ednardo, tudo isso é impensável ou soaria muito estranho na voz de João Gilberto.
No entanto, a Bossa Nova deixou uma espécie de efeito colateral e, nesse ponto, os cearenses coadunaram com o movimento: depois de João Gilberto, o ouvido musical brasileiro, já bastante sensível, se abriu para outras texturas vocais que antes não tinham lugar, o que provocou um profundo enriquecimento da paleta de vozes masculinas e femininas que puderam sair dos banheiros e/ou das esquinas diretamente para o estúdio e o palco.
Isso encorajou gerações de cantores a exporem suas vozes no mercado de tal modo que podemos afirmar que sem João Gilberto não haveria nem Fagner, nem Belchior, nem Ednardo, nem qualquer um dos outros citados aqui enquanto personas cantantes.
*Professor do Departamento de Letras Vernáculas da UFC e coordenador do projeto de extensão “Ouvindo Letras: conversas semanais sobre a música brasileira”