“Não existe nada mais perigoso do que a solidão”, registrou Goethe (1749-1832) naquela que é considerada a obra-prima do escritor alemão, o romance epistolar “Os sofrimentos do jovem Werther”. Publicado em 27 de setembro de 1774, o livro é um marco na literatura universal. Caminhando pelo tênue fio entre a ficção e a autobiografia, traça o panorama da dor de uma alma diante de uma paixão obsessiva e impossível, levando a melancolia até às últimas consequências.
Em resposta aos calamitosos efeitos da narrativa – sobretudo na juventude europeia daquele período – Mozart (1756-1791) se valeu da arte musical a fim de combater o suicídio, anos depois da publicação do livro. Em “A Flauta Mágica”, ópera em dois atos, o compositor austríaco traz a público o personagem Papageno para levantar discussões acerca do valor da vida. Quando decide que quer abreviar a própria existência, o protagonista conversa com três pessoas que, então, o afastam da ideia, apontando a ele outras saídas.
É a partir dessas duas obras seminais que o espetáculo cearense “Diomedes” se alicerça. Idealizada pelo grupo Avia de Teatro, a esquete será apresentada em três momentos deste mês, de forma virtual, no rastro da campanha Setembro Amarelo. A iniciativa – organizada desde 2004 pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM) – elege o dia 10 de setembro como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. A campanha, contudo, acontece durante todo o ano.
Com o apoio de inúmeras entidades, núcleos, associações e de toda a sociedade, a ação busca iluminar os cuidados no que diz respeito ao importante e delicado assunto, atuando na mesma frequência que o mais recente projeto do grupo Avia de Teatro. “Diomedes” parte da linguagem cênica para investigar o mito grego homônimo, homem comum que foi transformado em pássaro pela deusa Afrodite. Nesse processo, ele fica sem saber que é uma ave e que sua casa é, na verdade, uma gaiola.
“Usamos essa alegoria para representar a prisão psicológica na qual o suicida se encontra, sem, contudo, nos valermos de julgamentos ou vitimismo. O mais importante para nós foi construir uma narrativa que respeitasse o momento vivido pela pessoa, compreendendo que cada dor é uma dor, e que cada pessoa a vive de forma diferente. Não há como ter comparações”, explica a dramaturga Neide Oliveira, atriz, roteirista e diretora da peça.
Ênfase no diálogo
De modo a ir ao encontro dessas premissas, o desejo do grupo é apresentar em cena o que acontece no interior de uma pessoa com depressão. Para isso, se sobressai um particular destaque à questão do diálogo. Na peça, Diomedes acumula caixas com palavras não ditas. Durante o percurso, ele vai abrindo e expondo o que sente, passando a interagir com o entorno. “Escutar as pessoas, mesmo que em seus silêncios, é fundamental para entender o que se passa por dentro”, situa a diretora.
Ela conta que o espetáculo nasceu quando, em 2019, o grupo Avia de Teatro participou da I Mostra de Teatro Pró-vida, organizada pelo núcleo de saúde do Instituto Federal do Ceará (IFCE). Desde a época, a intenção foi abordar o assunto de forma poética e sensível. Começaram, assim, a fazer uma pesquisa na literatura e com pessoas que tentaram cometer suicídio.
“Sabíamos que o tema ainda é um tabu na sociedade. É até compreensível que pouco se fale sobre o assunto, pois existem gatilhos que podem ser acionados, caso ele não seja desenvolvido da forma correta. Essa também era a nossa preocupação: não acionar gatilhos”.
De posse de todos os dados, a agremiação partiu para a montagem, priorizando, em sua concepção, a realização de uma esquete (peça curta) de até 20 minutos. Para a surpresa de todos, esse é exatamente o tempo médio de uma crise de ideação suicida. “Utilizamos essa informação na peça, na qual o protagonista passa por diversas etapas de sua crise no período de 20 minutos. Enfatizamos na cena que, se a pessoa conseguir passar por esse tempo, possivelmente o desejo vá embora, mesmo que momentaneamente”.
Dois atores no palco ampliam os pontos abordados. Cada personagem possui uma alegoria própria e uma função representada, sobretudo, por seus figurinos. Diomedes, por exemplo, veste um pijama e, por cima, uma roupa de pássaro. Se, a priori, esse fato pode até passar despercebido por maior parte da plateia, na realidade foi fundamental para a construção do personagem.
Durante as entrevistas realizadas pelo grupo ainda na preparação do espetáculo, foi dito que é comum uma pessoa com depressão passar o dia de pijama e, quando chega alguém para visitá-la, ela apenas veste outra roupa por cima.
Não sem motivo, atentos a essa peculiaridade e a tantas outras, nas apresentações em formato on-line Neide e equipe decidiram adotar uma experiência estética e auditiva. Durante a peça, o público percebe o humor do personagem não apenas por meio do figurino, mas também considerando a luz e a sonoplastia. “Resolvemos investir em uma gravação feita no teatro, para que cada pessoa se sinta assistindo à peça da cadeira do equipamento cultural”, detalha.
Estreitamento de laços
Após a apresentação do espetáculo, é prevista, em cada uma das sessões, a realização de um bate-papo. A iniciativa reflete a preocupação do grupo Avia de Teatro em estreitar os laços com o público a fim de compartilhar impressões sobre a temática abordada.
“Não poderíamos apenas apresentar a peça e ir embora, uma vez que o assunto é delicado. Ao final da apresentação, deixamos um momento livre para compartilhar sentimentos, sempre deixando claro que ali é um lugar de troca, e não de julgamento ou de terapia. Em seguida, apontamos alguns elementos do personagem e questionamos o público acerca da percepção deles. A conversa vai sendo construída seguindo os signos apresentados na peça. E cada bate-papo é único”, contextualiza Neide Oliveira.
Ela reforça ainda que, apesar de voltado para todas as idades, o espetáculo pretende chegar principalmente ao público jovem, considerado o mais acometido pelos efeitos da depressão e consequente abreviação do próprio existir. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 24 anos. Nos estudos mais recentes da entidade, consta que uma pessoa tira a própria vida a cada quatro segundos no mundo, o que corresponde a 800 mil mortes por ano.
“Acreditamos que a esquete é complementada com o bate-papo, o que não é dito na cena é conversado depois. A arte abre a porta da sensibilidade e o bate-papo faz a função de informar”.
Serviço
Espetáculo “Diomedes”, do grupo Avia de Teatro
Apresentações nos dias 10 e 11 de setembro, às 17h, pelo canal do YouTube do grupo Avia de Teatro; e no dia 29 de setembro, às 17h, pelo perfil do grupo no instagram. Gratuito. Os espetáculos são seguidos de bate-papo sobre o tema