“Somos corpos reais, somos beleza e potência. Não precisamos e nem devemos nos violentar pra caber e existir na sociedade. Merecemos ser respeitadas em todos os âmbitos e lugares. Nossa existência é política”. Se hoje Letícia Vilhena, 29, brada com tanta força essa máxima, é devido ao reflexo de intensas transformações internas. Nem sempre foi assim.
Criança gorda e preta, a modelo e criadora de conteúdo digital logo se deu conta de que não se encaixava nos padrões de beleza exigidos pelas convenções sociais. Os meios de comunicação, a opinião de terceiros e programas como as novelas televisivas diariamente a ensinavam que, por conta das características físicas, beleza e afeto não lhe pertenciam.
Logo, o maior desafio dessa jornada foi ela perceber que é, sim, uma mulher bonita, vigorosa e capaz de ser o que quiser – mesmo com todos os olhares perversos e as portas fechadas, na maioria das vezes.
“Nossa sociedade tem em sua estrutura a gordofobia e o racismo enraizados. As agências são reflexo direto da indústria da moda. Se as grandes e pequenas marcas não produzem roupas para corpos reais e pessoas gordas, essas empresas consequentemente não nos contratam”, observa.
Essa foi outra percepção desenvolvida com o tempo, mediante a frequência de trabalhos em campanhas de valorização do plus size. Os movimentos nessa área aconteceram para Letícia quando ela menos esperava, tendo em vista nunca ter pensado em seguir a profissão de modelo. Após atividades esporádicas envolvendo maquiagem, em 2019 a cearense realizou o primeiro grande trabalho profissional na moda.
“Estava em Salvador e, durante a viagem, conheci algumas pessoas em uma festa. No dia seguinte, recebi o convite para modelar pra uma marca de biquínis”, conta. Não parou mais. Atualmente, ela protagoniza diversas campanhas e ensaios fotográficos, sobretudo envolvendo peças de roupa e moda praia.
Apesar da intensa procura, Vilhena não possui uma rotina e nem assina contrato fixo com uma marca ou agência. “Sempre busquei ter uma alimentação saudável e consumir produtos mais naturais, o que me ajuda a estar disposta e com uma ótima pele. Aí, quando os jobs aparecem, tô pronta pro jogo!”.
Formas de performar
A modelo sente que cada trabalho assemelha-se a uma encenação, uma vez que os clientes querem transmitir ideias e estilos diferentes, mas sempre contando com a personalidade e a presença dela ali. Inclusive, cada participação agrega também ao ofício de criadora de conteúdo e comunicóloga, possibilitando o uso de muitos dos registros nas próprias redes sociais. “Gosto de como tudo é dinâmico e das formas em que posso performar”, diz.
Letícia percebe um crescimento no mercado voltado para a beleza plus size. Segundo ela, nos últimos anos muitas marcas têm buscado aumentar a grade de produção, agindo em sintonia com as agências – estas possibilitando oportunidades para algumas modelos. O maior obstáculo, contudo, é mesmo a falta de interesse de algumas dessas próprias marcas e agências em contratarem mulheres gordas maiores e reais.
“99% das campanhas são realizadas com modelos curvy (com medidas acima do número 38, entre 40 e 44) e repetidas vezes são os mesmos rostos, ignorando a diversidade de corpos em suas formas e tamanhos. E não é por falta de pessoas qualificadas e buscando espaço no mercado”.
Não à toa, quando fura essa bolha e consegue ir além nesse processo, a cearense cada vez mais entende que o próprio corpo e existência são políticos. Não foram poucas as vezes nas quais ela ouviu de outras companheiras mensagens como “você me inspirou a usar cropped” ou “consegui usar biquíni depois que vi seus conteúdos e suas fotos”. “Nada paga isso. Recebo muitos feedbacks e histórias de mulheres reais, que de alguma forma foram acolhidas e se sentem representadas por mim. Acho que esse é o maior propósito da minha exposição”.
Agora, ela sonha em participar de campanhas para lojas de departamento – a partir de uma marca de alcance nacional e que tenha preços mais baixos de roupas. Igualmente deseja que mulheres reais e periféricas se sintam cada vez mais representadas por meio do trabalho que realiza, tendo acesso aos produtos e vendo os próprios corpos bem vestidos e humanizados.
“Muitas das marcas que eu trabalho são inaceitáveis para minhas amigas, minha vizinhas e para a maior parte das mulheres brasileiras. Por outro lado, para quem também deseja ser uma modelo, o primeiro passo é buscar conhecer e questionar o mercado, se valorizando desde o início e entendendo que você é potente e que seu corpo é político”, instrui.
Respeito ao corpo
A literatura também está repleta de conteúdos com o objetivo de extirpar preconceitos e ampliar a compreensão das mulheres sobre o próprio corpo e aparência. Um dos livros mais referenciados nesse âmbito é “O Mito da Beleza” (Rosa dos tempos, 2018), de Naomi Wolf. Tendo como subtítulo “Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres”, a obra já se tornou um clássico por aprofundar os ideais feministas de emancipação intelectual, sexual e econômica, elegendo como principal norteador o corpo.
Nas páginas, é possível conferir que o Mito da Beleza é uma forma elaborada de controle de mulheres na sociedade patriarcal. Entendendo a beleza como qualidade essencial, ela estimula a competição entre os femininos. Esse modo de manipulação incentiva a busca da aparência ideal para se encaixar em um padrão pré-definido pela sociedade.
Médica, influenciadora digital e modelo cearense, Flora Mota, 25, cedo entendeu essa lógica perversa por trás da visualização e do tratamento dos corpos, sobretudo de mulheres gordas. “As pessoas precisam entender com urgência que o corpo do outro não é propriedade pública. Que só em olhar para um corpo você não sabe sobre a saúde dele. Que existe um preconceito chamado gordofobia, e que precisamos apenas respeitar o corpo e a vida da outra pessoa. A moda, nesse sentido, é uma forma muito massa de comunicar isso, mas espero que logo seja apenas um dos meios de comunicação transmitindo essa mensagem”, defende.
Faz quatro anos que ela começou a participar de projetos como modelo de maneira bem orgânica, sendo convidada por algumas marcas parceiras durante esse processo. O primeiro passo de tudo isso, contudo, foi realmente a partir de publicações no perfil do instagram, nas quais falava sobre autoestima e bodypositive. “Acredito que isso foi chamando atenção e acabou unindo a necessidade de me reencontrar na moda e no mercado plus”.
Apesar das atividades junto à indústria da beleza, é mesmo na Medicina que Flora encontra o principal modo de atuação profissional. O ingresso no universo da moda foi consequência de uma percepção: ela não encontrava mais roupas que representassem seu estilo pelo fato de ter engordado. A ausência, ao mesmo tempo que gerou indignação, também promoveu outras formas de agir.
“Isso me movimentou a procurar marcas que tinham interesse em me vestir, que estavam dispostas a vestir o corpo gordo. A partir daí, comecei a realmente divulgar mulheres, ajudar no trabalho delas modelando e realmente me engajar nesse processo. Com o tempo, entendi que precisava levar essa discussão para o meio médico, falar sobre diversidade dos corpos, autoestima, autocuidado e partir de outra perspectiva de cuidado na minha profissão: a de educação em saúde e acolhimento da pessoa gorda”.
Outros caminhos
Na visão da influenciadora digital, a moda no Ceará está finalmente começando a entender a demanda proveniente desse público, bem como a necessidade de mais mulheres terem possibilidade no momento do vestir. Os passos, embora ainda bastante lentos, já provocam revoluções nos contextos de inúmeras vidas.
“Acho que as pessoas gordas estão começando a ver outro caminho além de odiar seus corpos. E isso abre nossa mente pra tudo, inclusive para modelar”, considera Flora Mota. O caminho nessa seara, porém, ainda é repleto de desafios. No caso dela, aconteceram situações bastante ruins. Um exemplo é estar fazendo um trabalho modelando e, ao lado, pessoas estarem sendo gordofóbicas.
A lembrança traz consigo uma dura realidade: é extremamente cruel como falam do corpo gordo, considerando-o descartável, sem merecimento de amor e carinho. Por isso mesmo, quem procura Flora são marcas que já possuem um pensamento revolucionário, buscando se atualizar no mercado. Isso, de acordo com ela, diminui muito os estresses do serviço.
“Por outro lado, amo as possibilidades, ver meu corpo de diversas formas, em diversos ângulos, as pessoas que conheço nessa caminhada, estar com outras mulheres gordas que vivenciam um processo parecido com o meu… Enfim, são muitas vivências que me acrescentam”, vibra.
E conclui: “Demorei um tempo para entender isso não mais como um hobby mas, sim, parte da minha vida profissional. Hoje afirmo que trabalho com moda, com muita coragem pra mudar esse padrão que é tão violento com nossos corpos. Sinto que levo inspiração para mulheres com corpos semelhantes ao meu por justamente mostrar um novo caminho, uma nova perspectiva do autoamor e como podemos viver bem e de forma saudável sem odiar a nossa casa, o nosso lar por toda essa vida”.
Serviço
Você pode acompanhar os trabalhos de Letícia Vilhena e Flora Mota por meio dos perfis @leticiavilhena e @floramota, respectivamente