Minissérie de terror da Netflix se inspira no suspense gótico de Edgar Allan Poe; veja crítica

O diretor Mike Flanagan está de volta com uma obra inspirada nos famosos contos de Poe. ‘A Queda da Casa de Usher’ é um terror suntuoso e sob medida para maratonar em tempos de Halloween

Ancorada em um roteiro inteligente, embora por vezes se mostre um tanto previsível, a minissérie tem tudo que os fãs de Poe gostam. É gótica, com cenários sombrios, criaturas estranhas, mistérios sobrenaturais, violência e desfechos bem executados.

O sucesso que a série vem ganhando, desde a sua estreia no dia 12 de outubro,  não surpreende os fãs de Flanagan. O diretor já levou para a telona títulos como ‘Jogo Perigoso’ e ‘Doutor Sono’, adaptados da obra de Stephen King. Também é dele megassucessos da própria Netflix: ‘A Maldição da Residência Hill’, ‘A Maldição da Mansão Bly’, ‘Missa da Meia-Noite’ e ‘Clube da Meia-Noite’. Todas produções aclamadas pelo público.

Nada, porém, se compara à ousadia de usar uma das histórias mais famosas de Allan Poe, ‘A Queda da Casa de Usher’, como referência central para uma minissérie com oito episódios, ambientada no mundo moderno, e ainda flertando com a premissa de duas produções super-premiadas. São claras às referências à luta insana pelo poder vista em ‘Sucession’ (HBO) e a denúncia sobre a epidemia de opioides retratada em ‘Dopesick’ (Star+).

O poeta além do tempo

Quem conhece clássicos da Sétima Arte, já ouviu falar em ‘Um Cão Andaluz’, terror surrealista de 1928, fruto da parceria de Luis Buñuel e Jean Epstein. O que nem todo mundo sabe é que o longa da era do cinema mudo é uma bizarra adaptação de ‘A Queda da Casa de Usher’, conto de 1839 o que nos mostra como Allan Poe se mantém atual com seus contos de ficção policial, recheados de fatos macabros e cenários góticos.

Ciente da grandeza do poeta, Mike Flanagan usa os personagens da ‘Casa de Usher’ para evocar outros contos famosos de Poe que transpassam a trama. Isso faz a minissérie ficar ainda mais instigante, com ‘easter eggs’ literários espalhados pelos episódios.

Mortes e monstros

A história começa com uma missa fúnebre e três corpos sendo velados. Na Igreja, o luto deixa o ar denso, triste, condizente com a obra de Poe. Na primeira fila, o bilionário Roderick Usher (Bruce Greenwood / Zach Gilford) acompanha ao lado da irmã Madeline Usher (Mary McDonnell / Willa Fitzgerald) os ritos de despedida.

Através de cenas com uma montagem da cobertura da imprensa, descobrimos que os mortos foram vítimas de acidentes estranhos e suicídios incomuns que destruíram a linhagem de Roderick. Apesar do luto inimaginável, Usher, dono da poderosa farmacêutica Fortunato, parece mais aterrorizado do que triste. Para onde se vira, visões estranhas o encaram. São vívidas e sugerem ser velhas conhecidas, como se saíssem de um passado nebuloso.

Já de início, a minissérie alterna presente e passado para situar o espectador na trama que se desenrola de forma sinistra desde que os irmãos Roderick e Madeline eram crianças. Donos de uma sagacidade ímpar, os dois carregam um trauma - a visão de duas mortes macabras - e um desejo: vingança.

Um salto no tempo e chegamos aos dias atuais, onde somos apresentados à numerosa família Usher. Com uma vida opulenta, egos inflados e interesses bem diferentes, os herdeiros de Roderick têm em comum a arrogância, covardia e devassidão. Os seis filhos desfrutam do dinheiro, enquanto sonham com seus próprios impérios.

Enquanto os irmãos se tratam como inimigos potenciais, o velho Usher enfrenta a Justiça. Ele é acusado de provocar a morte de milhares de pessoas por dependência de seu principal remédio, o Ligodone. Aqui, a ficção faz uma referência direta ao caso real da Purdue Pharma, empresa envolvida em uma gigantesca conspiração, retratada também na série ‘Império da Dor’ (Netflix).

Esqueletos no armário

Entrelaçar a decadência do mundo moderno, com histórias soturnas do século passado, poderia ter resultado em uma obra confusa, ainda mais com muitos personagens e tempo não linear.

Mas graças ao estilo de Poe e ao talento de cinco roteiristas envolvidos no projeto, a trama flui de maneira clara e eficiente. Os flashbacks são bem colocados e revelam, aos culpados, ele segue os rastros de sangue e dinheiro.

No flanco de defesa dos Usher está o indecifrável advogado da família, Arthur Pym, interpretado por Mark Hamill (o Luke Skywalker, de ‘Star Wars’). Além da interpretação sóbria (como pede a trama), sua presença na série é um sopro de nostalgia e um choque de realidade, visto que, nesse papel, o ator parece se dobrar ao peso da idade, parecendo ter bem mais que os seus 72 anos.

Pym é do tipo que fala pouco, age rápido, é quase uma sombra. Assim consegue abafar escândalos provocados pelos jovens herdeiros. A seu favor, está o dinheiro e o poder da família que abre portas e silencia pessoas. Ainda assim, os fatos que beiram o sobrenatural e as mortes que cruzarão o seu caminho farão sua missão ficar mais difícil a cada dia.

O Corvo

À espreita de todos está a misteriosa e sedutora Verna (Carla Gugino). A personagem é inspirada no poema mais célebre de Poe: “O Corvo”. Aliás, embora se apresente com diferentes identidades para cada membro da dinastia Usher, seu nome real revela uma pista... Verna é, na verdade, um anagrama da palavra corvo em inglês (Raven).

Enquanto o corvo ronda, Roderick Usher enriquece às custas de seu opioide. Mas o número de processos aumenta e ele é levado ao Tribunal. Lá, fica convencido de que existe um informante dentro de seu clã. Alguém que pode delatar a empresa e causar a ruína da Casa de Usher.

Com dois filhos do primeiro casamento e quatro herdeiros frutos de aventuras pelo mundo, ele entende que os irmãos são, de fato, inimigos. Decide usar isso a seu favor. Oferece US$ 50 milhões a quem lhe entregar o traidor.

A oferta dá início à corrida pelo prêmio, coloca irmão contra irmão e instiga uma perigosa (e divertida) rede de investigação. Quem conseguir o dinheiro poderá alavancar seus empreendimentos pessoais, movidos por ideais nada éticos ou nobres.

À medida que mergulham na busca pelo próprio sucesso, não importando quantas transgressões tenham que cometer, os filhos de Roderick descobrirão que tudo na vida tem um preço. E nem sempre a dívida é paga em dinheiro. Ainda mais quando se está amaldiçoado.

O primeiro a descobrir isso é o caçula Prospero “Perry” Usher (Sauriyan Sapkota). Playboy hedonista, ele sonha ser proprietário de um clube VIP onde nao existem limites para quem pode pagar por prazeres proibidos. No episódio dedicado a ele, Verna surge como uma esfinge sexy, durante os acontecimentos chocantes que fazem alusão direta ao conto “A Máscara da Morte Rubra”, escrito por Poe em 1842.

A partir desse ponto, a tragédia se instala na vida dos Usher. Camille L’Espanaye (Kate Siegel, atriz casada com Mike Flanagan) é uma implacável chefe de relações públicas que usa sua influência para manipular, difamar e obter informações privilegiadas das quais tira vantagem. Ao mesmo tempo, ela humilha e explora sexualmente seus jovens funcionários. Para ela, cujo nome foi retirado do conto “Os Assassinatos na Rua Morgue”, o “castigo” sobrenatural se dá mediante um embate que quase chega a ser cômico. Quase...

O alvo seguinte é Napoleon “Leo” Usher (Rahul Kohli). Cheio de grana e de vazios existenciais, ele recorre às drogas para encarar a vida. Não demora para se ver atormentado, sem saber o que é real ou alucinação. Seu pavor faz referência ao conto ‘O Gato Preto’, lançado por Poe em 1843.

Humor ácido

A essa altura, os episódios ficam mais e mais aterrorizantes. Mais e mais reveladores e sangrentos. Em um flashback, vemos a origem do império de privilégios, luxo e poder da família: um crime, um bar, um pacto.

Aos poucos Madeline começa a associar as mortes do presente, com os fatos do passado e entende que nenhum Usher está a salvo. Roderick, por sua vez, sucumbe cada vez mais ao medo. Seus “esqueletos” escaparam do armário e uma doença inesperada pode virar uma bomba relógio.
Por isso, pressiona sua filha Victorine Lafourcade (T’Nia Miller) a avançar com uma pesquisa que poderia garantir alguns anos. Filha e pai, porém, esquecem que para toda ação há uma reação.

No episódio mais divertido de todos, Tamerlane Usher (Samantha Sloyan), vê o seu sonho de se tornar uma empresária descolada do ramo de lifestyle, virar uma piada cortante. A personagem, aliás, teve seu nome inspirado no poema “Tamerlane”, onde o personagem-título é um guerreiro com o coração partido. É Allan Poe na veia!.

Por último, o primogênito Frederick (Henry Thomas) é a imagem do homem fraco, um zero à esquerda que se revela um machista covarde. Na busca cega para ganhar o respeito do pai, a insanidade acaba por levá-lo ao limite.

Essência de Allan Poe

Transpor as obras de Edgar Allan Poe para a tela, de forma elegante e com fidelidade ao estilo não é tarefa fácil. O último filme a entrar nesse universo foi ‘O Pálido Olho Azul’, um trhiller que coloca o próprio Poe como personagem (vivido por Harry Melling), em meio a mortes e mistérios investigados por Auguste Landor (Christian Bale) em West Point. Um detalhe interessante, já que o jovem Poe realmente serviu na renomada academia militar por dois anos.

A estreia de ‘A Queda da Casa de Usher’ leva os contos sombrios do autor a um patamar artístico diferente. Primeiro porque o traz para os dias atuais. Ainda assim, os elementos fantásticos se encaixam sem dificuldade. Os monstros da vida real rivalizam à altura com as criaturas do submundo e essa composição flui perfeitamente com a condução de Flanagan.

Os cenários ora opulentos e belos (mesmo que solitários), ora decadentes, escuros e opressores, representam bem a dualidade presente na trama. Descaso e culpa, amor e ódio, começo e fim. Está tudo lá. Tudo envolto em fantasia, ação, suspense e drama.

Mérito de Poe que atravessou séculos com suas histórias incomparáveis e mérito também de Flanagan. O diretor tem uma maneira bem própria de contar histórias de suspense e terror. Sem apelar para os sustos previsíveis, o cineasta valoriza mais o texto e as interpretações.

Com o elenco que escalou para essa nova empreitada, o espectador rapidamente entra em sintonia com o enredo, se deixa fisgar pelo mistério e, acredite, perde a noção do tempo. Difícil não querer emendar um episódio no outro, até finalizar a maratona.

Um dos pontos altos é o diálogo entre Auguste Dupin e Roderick Usher, num casarão decadente, onde tudo começou. De um lado o detetive que perseguiu a verdade por toda a vida. Do outro, o homem poderoso que foi reduzido a um ser atormentado pelo que fez e pelo que deixou de fazer.

Por fim, antes que a Casa de Usher desmorone ou se perca em meio a milhares de opções nos streamings, fica a dica para aproveitar uma história de terror imponente e sombria que oferece diversão da melhor qualidade. Mike Flanagan acertou de novo.