Existe um lugar em Fortaleza capaz de reativar a paz. Fica no Mondubim, entre cores e aromas de sossego. O Minimuseu Firmeza foi a morada do casal de artistas Estrigas (1919-2014) e Nice Firmeza (1921-2013) durante 50 anos. Transpira carinho. Criatividade também, claro: por onde se olha, uma nova obra a desbravar, detalhes com sede de gente.
Chegamos ao local com certa dificuldade. Explico: a estrada que dá acesso a ele aguarda reforma e urbanização por parte do poder público há anos. Nada que deixe o lar inacessível, porém. O muro baixo, em tinta branca, anuncia ser ali o recanto da ternura. É como se adentrássemos um portal em plena metrópole. A estrutura do equipamento tem o tom exato de sítio, de chácara. Deixa a gente à vontade.
Quem nos recebe é Paula Machado, historiadora e coordenadora do Minimuseu. “Vamos entrando, sejam bem-vindos”, sorri. Desde 2012, ela acompanha e vivencia o espaço, sendo uma das guardiãs do legado de Nice e Estrigas. Herança sentida em cada cantinho. Na varanda, banquinhos, penduricalhos e desenhos dos dois emolduram delicadezas.
A primeira sala a que temos acesso intitula-se Arte e Afeto. Justificável: é onde estão trabalhos de artistas amigos do casal. Fernando França, Cláudio César, Luis Ermano, Raimundo Silva, Luben, entre outros, são presença bonita nas paredes. No mesmo recinto, livros e mais livros do acervo de Estrigas, obras de alunos de Nice, esculturas e poltronas estrategicamente posicionadas para uma boa leitura completam o cenário. Doce refúgio.
Dobrando à esquerda, a sala Nice e Estrigas é bem aquilo a que se propõe: reunião de pinturas do casal, reforçando o porquê de serem tão queridos e referenciados nesse universo inventivo. Entre outros feitos, Estrigas foi um dos principais articuladores da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP). Nice, por sua vez, foi pioneira nas artes plásticas cearenses em um tempo em que não cabia às mulheres tarefas ligadas a essa seara.
“A curadoria dessas obras e das salas foi feita pelo próprio Estrigas. Nós, enquanto mantenedores do minimuseu, mantivemos isso. Mudamos uma coisa ou outra, mas tudo dentro do conceito”, explica Paula Machado, que logo nos leva à sala seguinte, Arte e História. Nela, a história da arte contada pelo próprio dono da casa nos faz reviver grandes projetos e vultos, estéticas e movimentos. Vida entre o figurativo e o abstracionismo.
Singela intimidade
Então mergulhamos no núcleo mais íntimo da casa, ocupando cômodos como o quarto, a cozinha, o ateliê e a biblioteca. O primeiro respira simplicidade e bem-querer. Além da cama – no lugar que deitava Estrigas, foi colocado um livro, e, no lugar de Nice, um pequeno buquê de flores – estão porta-retratos, uma televisão, um telefone e outras minúcias. São faces de duas pessoas apaixonadas por sorrisos, conversas e encontros.
Um pequeno portão separa esse espaço da biblioteca, com mais de dois mil títulos e uma dezena de objetos em alusão ao cenário. São obras que englobam tanto temáticas relacionadas à arte quanto títulos ficcionais. Não é possível empréstimo, mas, enquanto o visitante estiver no recinto, o acesso é livre a todos os títulos, com mesas e cadeiras disponíveis. Rico acervo.
Na cozinha, a mesa com oito cadeiras relembra os momentos de contato com o casal. Nice, certamente, tão boa cozinheira, não deixaria ninguém ir embora sem experimentar um doce feito por ela. Estrigas possivelmente ficaria proseando, sem calcular tempo. As panelas e o filtro de barro, bem como o telhado baixo, reforçam o que mencionei no início: no Minimuseu, estamos em outra era, mais pura e singela.
“E aqui está o ateliê”, apresenta Paula Machado, percorrendo outro cômodo. “São tintas, pincéis e cavaletes que ficaram dos dois. Esse é um espaço com caráter mais de museu, uma vez que as pessoas não podem utilizar para criar as próprias obras. É apenas para visitação mesmo”, sublinha enquanto passeia as mãos pelos outrora instrumentos de trabalho.
“Terminado esse passeio pela casa, vamos lá fora. Quero te mostrar o baobá”. Sigo prontamente o chamado da historiadora: é hora de se conectar ainda mais ao lar. Próximo à árvore quase cinquentenária – irmã do baobá presente no Passeio Público – a presença de Estrigas e Nice se agiganta. As cinzas do artista estão presentes lá e, embora Nice tenha sido enterrada no cemitério São João Batista, ela também está ali, à espreita.
“Tem toda aquela história de o baobá ser morada dos antepassados, existe esse simbolismo. E por ser uma árvore que vive centenas e centenas de anos, acho que é uma forma de os dois permanecerem vivendo”, arrisca a coordenadora da casa. Faz sentido. Na completa extensão do terreno, das mangas que caem do pé aos banquinhos descansando sob as copas, o casal ainda está e permanece. Sibilam por entre os galhos.
Estreitar o contato
Um passo recente do Minimuseu e que tem sido alimentado a todo vapor é um maior contato com o público – sobretudo após o período de pausa compulsória devido à pandemia de Covid-19. Antes constantemente frequentado por artistas de todas as partes do Ceará e do Brasil, agora o equipamento almeja incentivar ainda mais essa proximidade, abraçando também a comunidade ao redor da casa, pertencente ao bairro Parque Santana.
Para isso, a coordenação do espaço tem aperfeiçoado parcerias e buscado inovar por meio das atividades ofertadas. Oficinas de bordado, formação de banda cabaçal, encontros religiosos com crianças, entre outras, são parte desse repertório artístico e cultural.
“Passamos por um momento difícil, quando estávamos sem apoio. Agora, por meio do apoio do Sesc, conseguimos manter o museu aberto todos os dias”, vibra Paula. Com ela, dona Didi e Fábio cuidam das dependências do lugar, e se dizem contentes pela possibilidade de o lar continuar pulsando, com a inquieta calmaria de sempre.
“Falta apenas a questão do difícil acesso ao museu. A gente já esteve na Secretaria de Infraestrutura, junto a representantes do Sesc. Existe um projeto de urbanização da rua, mas ainda não aconteceu. Estamos esperando há bastante tempo. Mas o projeto existe. No período de chuva fica bem difícil, não é possível passar por aqui. Por isso, temos procurado mais contatos da Prefeitura, do Estado, do Metrofor, e também junto à comunidade”.
Haja o que houver, venha o que vier, na rua de nome Nilo Firmeza há esse recanto que convoca, estimula, anima e descansa a alma. Estar no Minimuseu é privilégio. Verdadeira sede da beleza.
Serviço
Minimuseu Firmeza
Avenida Waldir Diogo, Mondubim. Visitas somente por meio de agendamento. Mais informações pelo perfil do equipamento, no instagram, e por meio do contato (85) 99959-2786 - Paula Machado